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Leandro Vilar

domingo, 26 de maio de 2013

Papai Noel Supliciado

PAPAI NOEL SUPLICIADO(1)



Claude Leví-Strauss


As imagens expostas aqui foram escolhidas por mim para referendar o conteúdo e assunto abordado pelo autor. 


As festas de Natal de 1951 foram marcadas na França por uma polêmica à qual a imprensa e a opinião pública pareceram se mostrar bastante sensíveis, introduzindo uma nota de inusitado azedume na atmosfera jubilosa habitual desse período do ano. Já fazia vários meses que as autoridades, pela voz de alguns prelados, vinham expressando desaprovação à crescente importância atribuída pelas famílias e pelos comerciantes ao personagem do Papai Noel. Denunciavam uma “paganização” inquietante da festa da Natividade, desviando o espírito público do significado propriamente cristão desta comemoração, em proveito de um mito sem valor religioso.

Estes ataques cresceram na véspera do Natal. Com mais discrição, sem dúvida, mas com igual firmeza, a Igreja protestante juntou sua voz à da Igreja católica. Em sentidos diversos, mas geralmente hostis à posição eclesiástica, cartas de leitores e artigos apareceram nos jornais testemunhando o interesse despertado pela questão. O ponto culminante foi atingido em 24 de dezembro, por ocasião de uma manifestação que o correspondente do jornal France Soir relatou nos seguintes termos:

DIANTE DE CRIANÇAS DOS PATRONATOS PAPAI NOEL FOI QUEIMADO NO ÁTRIO DA CATEDRAL DE DIJON

Dijon, 24 de dezembro.

Papai Noel foi enforcado ontem à tarde nas grades da catedral de Dijon e publicamente queimado no adro. A espetacular execução se deu na presença de várias centenas de crianças de patronatos e foi decidida com a concordância do clero, que condenou Papai Noel como usurpador e herético, acusando-o de paganizar a festa de Natal e de nela se ter instalado como um intruso que ocupa espaço cada vez maior. Papai Noel foi censurado principalmente por se ter introduzido em todas as escolas públicas, de onde se baniu cuidadosamente o presépio.

Domingo, às três horas da tarde o infeliz velhinho de barba branca pagou, como muitos inocentes, pelo erro cometido por aqueles que aplaudiam a execução. O fogo abrasou-lhe a barba e ele se esvaiu na fumaça.

No final, divulgou-se um comunicado que no essencial dizia o seguinte: “Representando os lares cristãos da paróquia que desejam lutar contra a mentira, 250 crianças agrupadas diante da porta principal da catedral de Dijon queimaram Papai Noel.

Vista contemporânea da Catedral de Santa-Benigna de Dijon, onde em 1951 uma imagem do Papai Noel foi queimada publicamente em protesto por alguns religiosos e civis contra  comercialização de artigos natalinos, e a difusão do sincretismo do Papai Noel em vez do verdadeiro significado do Natal, o nascimento de Jesus Cristo. 
Não se tratou de uma atração, mas de um gesto simbólico. Papai Noel foi sacrificado em holocausto. A mentira não pode despertar o sentimento religioso na criança e não é absolutamente um método de educação. Que outros digam ou escrevam o que quiserem e que façam de Papai Noel o contrapeso do Pai Fouettard(2). Para nós, cristãos, a festa de Natal deve continuar sendo a festa de aniversário do nascimento do Salvador”.

A execução de Papai Noel no adro da catedral foi apreciada de modo diversificado pela população e provocou vivos comentários mesmo entre os católicos. Aliás, esta manifestação intempestiva promete conseqüências não previstas por seus organizadores. O assunto divide a cidade em dois campos. Dijon aguarda a ressurreição de Papai Noel, assassinado ontem no adro da catedral. Ele vai ressuscitar esta tarde às 18 horas, na Prefeitura.

Um comunicado oficial anunciou que Papai Noel estava convocando as crianças de Dijon, como faz todos os anos, na praça da Libertação. E que ele iria falar a elas, sob a luz de holofotes, do alto do telhado da Prefeitura. O cônego Kir, deputado-prefeito de Dijon, se absteve de tomar partido nesse caso delicado.

No mesmo dia, o suplício de Papai Noel passou às primeiras páginas. Não houve jornal que não comentasse o incidente. Alguns – como o France Soir, de maior tiragem na imprensa francesa – chegaram até a lhe dedicar um editorial. De maneira geral, a atitude do clero de Dijon foi desaprovada – a tal ponto, segundo parece, que as autoridades religiosas julgaram conveniente bater em retirada, ou pelo menos observar uma discreta reserva. Diz-se, entretanto, que os nossos ministros estão divididos sobre a questão.

O tom da maioria dos artigos é o de uma cuidadosa sensibilidade: é tão bonito acreditar em Papai Noel; isto não faz mal a ninguém; as crianças têm nisso um enorme prazer; fazem disso uma deliciosa provisão de lembranças para quando forem adultos… Na verdade, foge-se da questão em vez de respondê-la. Porque o problema não é justificar as razões pelas quais Papai Noel agrada às crianças. Mas explicar as que levaram os adultos a o inventar.

De qualquer maneira, essas reações são tão unânimes que não se pode duvidar da existência de um divórcio, neste ponto, entre a opinião pública e a Igreja. Apesar do caráter minúsculo do incidente, o fato é importante porque a evolução francesa desde a ocupação se tinha feito na direção de uma reconciliação progressiva com a religião de uma opinião largamente descrente: o acesso aos conselhos de governo de um partido tão nitidamente confessional como o MRP é uma prova disso.

Os anti-clericais imediatamente perceberam a ocasião especial que lhes estava sendo oferecida: são eles que, em Dijon e em outros lugares, se fazem protetores do Papai Noel ameaçado. Papai Noel, símbolo da irreligião. Que paradoxo! Neste assunto tudo se passa como se a Igreja adotasse um espírito crítico, ávido de franqueza e de verdade, ao passo que os racionalistas se transformam em guardiões da superstição. A inversão aparente dos papéis basta para sugerir que este episódio ingênuo acoberta realidades mais profundas. Estamos na presença de uma manifestação sintomática de uma evolução muito rápida dos costumes – primeiro na França, mas sem dúvida também em outros lugares.

Não é todos os dias que o etnólogo encontra a ocasião de observar em sua própria sociedade o crescimento súbito de um rito e, mesmo, de um culto. A ocasião de pesquisar suas causas e de estudar seu impacto sobre outras formas de vida religiosa. A oportunidade de tentar compreender a que transformações de conjunto, ao mesmo tempo mentais e sociais, estão ligadas certas manifestações visíveis sobre as quais a Igreja, com a força de sua experiência tradicional nessas matérias, não se equivocou. Pelo menos na medida em que se limitou a lhes atribuir um significativo valor.

* * *

Há cerca de três anos, depois que a atividade econômica voltou a ser mais ou menos normal na França, a celebração do Natal passou a assumir uma amplitude desconhecida antes da Guerra. É certo que, tanto por sua importância material como pelas formas segundo as quais se produziu, este desenvolvimento é resultado direto da influência e do prestígio dos EUA. Vimos simultaneamente aparecerem, iluminados à noite, os grandes pinheiros nos cruzamentos e nas avenidas principais; os papéis de embrulho próprios para presentes de Natal; os cartões de boas-festas com o costume de os expor nas lareiras dos destinatários durante a semana festiva; os pedidos do Exército da Salvação com auxílio de seus caldeirões típicos, suspensos nas praças e nas ruas como se fossem pires de cegos; enfim, nas lojas de departamentos, os personagens fantasiados de Papai Noel, para receber os pedidos das crianças.

Todos esses usos – que ainda há poucos anos pareciam pueris e extravagantes aos franceses que visitavam os EUA e que eram os signos mais evidentes da incompatibilidade fundamental entre as duas mentalidades – implantaram-se e se aclimataram na França com uma facilidade e uma generalidade tais que constituem uma lição sobre a qual o historiador das civilizações deve meditar.

Neste terreno, como em outros, estamos assistindo a uma vasta experiência de difusão, não muito diferente daqueles fenômenos arcaicos que estávamos habituados a estudar a partir de exemplos longínquos como o acendedor de fogo por fricção ou a piroga de balancim. No entanto, é ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil raciocinar sobre fatos que se desenrolam sob nossos olhos e dos quais a nossa própria sociedade é o teatro. Mais fácil, uma vez que a continuidade da experiência está salvaguardada em todos os seus momentos e em cada um dos seus matizes.

Mais difícil, porque é em tais ocasiões raríssimas que percebemos a complexidade extrema das transformações sociais, mesmo das mais tênues; e porque as razões aparentes que atribuímos aos acontecimentos de que somos atores são muitíssimo diferentes das causas reais que neles nos conferem um papel.

Seria demasiado simples explicar o desenvolvimento das celebrações de Natal na França apenas com base na influência dos EUA. O empréstimo é um fato, mas suas razões são muito incompletas para explicar o fenômeno. Enumeremos rapidamente as razões que são evidentes: há na França um número maior de americanos, celebrando o Natal à sua maneira; o cinema, os digests, os romances americanos e também algumas reportagens dos grandes jornais tornaram conhecidos os costumes estadunidenses, que se beneficiaram do prestígio ligado à potência militar e econômica daquele país. Não está excluído que o Plano Marshall tenha direta ou indiretamente favorecido a importação de algumas mercadorias ligadas aos ritos de Natal. Mas isso tudo ainda seria insuficiente para explicar o fenômeno.

Costumes importados dos Estados Unidos impõem-se até em camadas da população que não estão conscientes da origem dos mesmos. Os meios operários, onde a influência comunista tenderia a desacreditar tudo o que apresenta a marca made in USA, adotam tais costumes com a mesma facilidade que as demais camadas sociais. Além da simples difusão, convém portanto evocar este processo tão importante que Kroeber, primeiro a identificá-lo, designou de difusão por estímulo (stimulus diffusion): o uso importado não é assimilado; desempenha papel de catalisador, isto é, apenas por sua presença suscita a aparição de um uso análogo, que já estava presente em estado potencial no segundo ambiente.

Desenho de Santa Claus feito por Thomas Nast em 1881, nos EUA. Nast em 1863 havia desenhado a primeira imagem de Santa Claus, a qual serviu de base para a atual imagem que temos do "bom velhinho". 
Ilustremos este ponto com um exemplo que toca o nosso assunto diretamente. Um industrial, fabricante de papel, viaja aos Estados Unidos, convidado por seus colegas americanos, ou como membro de uma missão econômica; constata que neste país se fabricam papéis especiais para embrulhos de Natal; toma a idéia emprestada.

Aí está um fenômeno de difusão. A dona-de-casa parisiense, que vai à papelaria de seu bairro comprar papel para embrulhar presentes, vê papéis mais bonitos na vitrine, com acabamento mais cuidadoso que o daquele que ela normalmente compraria. Ela ignora tudo dos hábitos americanos; mas este papel satisfaz uma exigência estética e exprime uma disposição afetiva já presentes, embora privadas de meio de expressão. Adotando-o, a dona-de-casa não pega diretamente emprestado um hábito estrangeiro (como o fabricante); mas, assim que este uso se torna conhecido, estimula o nascimento de um costume idêntico.

Em segundo lugar, não se deve esquecer que a celebração do Natal já seguia uma caminhada ascendente na França e em toda a Europa. Tal fato se liga, inicialmente, à melhoria progressiva do nível de vida. Mas comporta igualmente causas mais sutis. Com os traços que lhe reconhecemos, o Natal é essencialmente uma festa moderna, apesar da multiplicidade de suas características arcaizantes. O uso do visgo não é, ao menos imediatamente, uma sobrevivência druídica, pois parece ter sido recolocado em moda na Idade Média. O pinheiro de Natal não é mencionado em nenhum lugar antes de alguns textos alemães do século XVII; no século XVIII, passou à Inglaterra e somente no XIX à França.

Littré parece que mal o conheceu – ou pelo menos o conhecia por uma forma bastante diferente da nossa – uma vez que o define (art. Noël) como consistindo “em alguns países de um ramo de pinheiro ou de azevinho diversamente adornado, guarnecido de doces e brinquedos para se dar às crianças, que com isto fazem uma festa”. A variedade de nomes atribuídos ao personagem que tem o papel de distribuir os brinquedos – Papai Noel, São Nicolau, Santa Clauss, etc. – também mostra que é produto de um fenômeno de convergência e não um protótipo antigo conservado por toda parte.

Ícone russo do século XIII, retratando São Nicolau (270-343), personagem de onde teria surgido a lenda do Papai Noel. 
O desenvolvimento moderno não inventa, porém: ele se limita a recompor com peças e fragmentos uma velha celebração, cuja importância nunca foi totalmente esquecida. Se, para Littré, a árvore de Natal é quase uma instituição exótica, Cheruel observa de maneira significativa no seu Dictionnaire historique des institutions, moeurs et costumes de la France (que, como o próprio autor confessa, não passa de uma modificação do Dictionnaire des antiquités nationales de Sainte Palaye, 1697-1781): “O Natal foi, durante vários séculos, e até uma época recente (nós é que grifamos), ocasião de regozijos de família”. Segue-se uma descrição das festas de Natal no século XIII, que em nada parecem inferiores às nossas. Estamos, portanto, na presença de um ritual cuja importância já flutuou bastante na história, conhecendo apogeus e declínios. A forma americana é apenas o mais moderno desses avatares.

Diga-se de passagem que essas rápidas indicações são suficientes para demonstrar o quanto é necessário, diante de problemas desse tipo, desconfiar das explicações demasiado fáceis que recorrem automaticamente aos “vestígios” e às “sobrevivências”. Se nunca tivesse havido, nos tempos pré-históricos, um culto às árvores, que continuou em diversos costumes folclóricos, a Europa moderna não teria sem dúvida “inventado” a árvore de Natal.

Porém, como se demonstrou acima, trata-se de uma invenção recente. Mas esta invenção não nasceu a partir do nada, pois outros usos medievais estão perfeitamente atestados: a acha de Natal (que se transformou em um tipo de pâtisserie em Paris) feita de um tronco bastante grosso para queimar durante toda a noite; as velas de Natal, de tamanho propício a assegurar o mesmo resultado; a decoração dos prédios com ramos verdejantes (desde as Saturnálias romanas, a que retornaremos): heras, azevinho, pinheiro. Enfim, e sem qualquer relação com o Natal, os romances da Távola Redonda dão conta de uma árvore sobrenatural, coberta de luzes.

Gravura retratando a Rainha Victoria da Inglaterra com familiares, diante de uma árvore de Natal. 1848. As árvores de Natal são uma tradição alemã do início do XIX, possivelmente anterior a isso. 
Nesse contexto, a árvore de Natal surge como uma solução sincrética, quer dizer, concentrando em um só objeto exigências que até então se apresentavam de maneira dispersa: árvore mágica, fogo, luz duradoura, verde persistente. Inversamente, Papai Noel é, em sua forma atual, uma criação moderna. E é ainda mais recente a crença segundo a qual seu meio de transporte seja um trenó puxado por renas e seu domicílio seja na Groenlândia (possessão dinamarquesa – o que obriga a Dinamarca a manter uma agência especial de correio para responder as cartas das crianças de todo o mundo).

Diz-se mesmo que este aspecto da lenda se desenvolveu sobretudo no curso da última guerra, em razão da permanência de algumas forças americanas na Islândia e na Groenlândia. Entretanto, as renas não estão na lenda por acaso, uma vez que documentos ingleses da Renascença mencionam troféus de rena exibidos por ocasião das danças de Natal, isto é, anteriormente a qualquer crença em Papai Noel e, mais ainda, à formação de sua lenda.

Elementos muito antigos, portanto, foram mesclados e recombinados. Outros foram introduzidos. Encontramos fórmulas inéditas para perpetuar, transformar ou revivificar antigos usos. Nada há de especificamente novo no que se poderia designar, sem trocadilho, de renascimento do Natal. Por que, então, este renascimento suscita semelhante emoção e a que se deve que a animosidade de alguns indivíduos se concentre no personagem Papai Noel?

* * *

Papai Noel se vestiu de escarlate: é um rei. Sua barba branca, suas peles, botas e o trenó em que viaja, evocam o inverno. Chamam-no de “pai” e é um ancião encarnando a forma benevolente da autoridade dos idosos. Tudo isto está bastante claro. Mas em que categoria convém classificá-lo, do ponto de vista da tipologia religiosa? Não é um ser mítico, pois não há um mito que dê conta de sua origem e de suas funções; ainda menos é um personagem de lenda, pois nenhum relato semi-histórico lhe está associado. Na verdade, este ser sobrenatural e imutável, eterna mente fixado na sua forma e definido por uma função exclusiva e por um retorno periódico, descende principalmente da família das divindades.

Recebe, aliás, um culto por parte das crianças, em certas épocas do ano, sob a forma de cartas e de pedidos. Recompensa os bons e exclui os malvados. É a divindade de uma classe de idade de nossa sociedade – classe esta que a própria crença em Papai Noel basta para caracterizar. A única diferença em relação a uma divindade verdadeira é que os adultos não acreditam em Papai Noel, embora estimulem suas crianças a crer nele e sustentem esta crença por um grande número de mistificações.

Papai Noel é, então, em primeiro lugar, expressão dos estatutos diferentes de crianças, por um lado, adolescentes e adultos, por outro. Sob este aspecto, liga-se a um vasto conjunto de crenças e de práticas que os etnólogos estudaram na maior parte das sociedades, os ritos de passagem e de iniciação. Há poucos grupos humanos em que, de uma forma ou de outra, as crianças (às vezes também as mulheres) não sejam excluídas da sociedade dos homens pela ignorância de certos mistérios, ou pela crença cuidadosamente mantida em alguma ilusão que os adultos se reservam o direito de desvelar no momento oportuno – consagrando assim a agregação das jovens gerações à sua.

Às vezes esses ritos se assemelham de modo surpreendente aos que estamos examinando. Como não registrar a analogia que existe entre Papai Noel e os katchina dos índios do sudeste dos Estados Unidos? Trata-se aqui de personagens fantasiados e mascarados, que encarnam deuses e ancestrais; retornam periodicamente para visitar a aldeia, para dançar, para punir e premiar as crianças; dá-se um jeito para que estas não reconheçam seus pais ou parentes sob o disfarce tradicional. Papai Noel pertence certamente à mesma família, com outros companheiros hoje relegados a segundo plano: Croquemitaine(3), Pai Fouettard, etc.

É extremamente significativo que as mesmas tendências educacionais, que hoje repelem o recurso a esses katchina punitivos, tenham terminado por exaltar o personagem bondoso de Papai Noel, em vez de englobá-lo na mesma condenação – como o desenvolvimento do espírito positivo e racionalista poderia nos deixar supor.

Índios Hopi nos Estados Unidos, fantasiados para a celebração do rito dos katchina. 
Sob este aspecto, não houve racionalização dos métodos educacionais, já que Papai Noel não é mais “racional” que Pai Fouettard (a Igreja tem razão neste ponto). Assistimos sobretudo a um deslocamento mítico. E é isto que se trata de explicar.

Está bastante assentado que os ritos e mitos de iniciação têm uma função prática nas sociedades humanas: ajudam os mais velhos a manter os mais novos na ordem e na obediência. Durante todo o ano invocamos a visita de Papai Noel, para lembrar às crianças que a generosidade dele será medida pelo bom comportamento delas; e o caráter periódico da distribuição dos presentes tem a utilidade de disciplinar as reivindicações infantis, de reduzir a um período curto o momento em que estas têm verdadeiramente o direito de exigir presentes.

Este simples enunciado basta para fazer explodirem os quadros da explicação utilitária. Porque, de onde surge que as crianças tenham direitos e que estes direitos se imponham de modo tão imperioso aos adultos, a ponto que estes sejam obrigados a elaborar uma mitologia e um ritual custosos e complicados para os conseguir conter e limitar? Vê-se imediatamente que a crença em Papai Noel não é apenas uma mistificação infligida agradavelmente pelos adultos às crianças.

É, em grande medida, resultado de uma transação muito onerosa entre duas gerações. Acontece com o ritual inteiro o mesmo que com as plantas – pinheiro, azevinho, hera, visgo – com que decoramos nossas casas. Hoje luxo gratuito, foram antigamente, ao menos em algumas regiões, objeto de uma troca entre duas classes da população: na véspera do Natal, na Inglaterra, ainda até o fim do século XVIII, as mulheres iam a gooding, isto é, pedir de casa em casa, retribuindo os doadores com ramos verdes. Reencontramos as crianças na mesma posição de intercâmbio. E convém observar que, para pedir de porta em porta na festa de São Nicolau, as crianças às vezes se fantasiavam de mulheres. Crianças, mulheres, quer dizer, em ambos os casos, não-iniciados.

Ora, embora esclareça a natureza destes mais profundamente do que as considerações utilitárias evocadas acima, há um aspecto muito importante nos ritos de iniciação ao qual nem sempre se dedicou atenção suficiente. Tomemos como exemplo o ritual dos índios Pueblo, de que já falamos. Se as crianças são mantidas na ignorância da natureza humana dos personagens que encarnam os katchina, é apenas para que os temam ou respeitem, e para que se comportem de modo compatível? Sim, sem dúvida. Mas esta é apenas a função secundária do ritual, pois há uma outra explicação que o mito de origem traz perfeitamente à tona. Este mito explica que os katchina são almas das primeiras crianças indígenas, que se afogaram dramaticamente em um rio no tempo das migrações ancestrais. Os katchina são, portanto, ao mesmo tempo, prova da morte e testemunhas da vida após a morte. Mas há mais: quando os ancestrais dos indígenas atuais finalmente se fixaram em sua aldeia, relata o mito que os katchina retornavam a cada ano para os visitar, levando crianças ao partir.

Desesperados por perderem sua prole, os indígenas conseguiram, então, a anuência dos katchina em permanecer no outro mundo, em troca da promessa de os representar todos os anos por instrumento de máscaras e de danças. Se as crianças são excluídas dos mistérios dos katchina, não é, nem em princípio, nem principalmente, para as amedrontar. Diríamos, antes, que é pela razão inversa: porque as crianças são os katchina.

Elas são excluídas da mistificação porque representam a realidade com a qual a mistificação constitui uma espécie de compromisso. O lugar delas é alhures: não com as máscaras e com os vivos, mas com os deuses e com os mortos; com os deuses que são os mortos. E os mortos são as crianças.

Cremos que esta interpretação pode ser estendida a todos os ritos de iniciação e mesmo a todas as situações em que uma sociedade se divide em dois grupos. A “não-iniciação” não é simplesmente um estado de privação, definido pela ignorância, pela ilusão, ou por outras conotações negativas. A relação entre iniciados e não iniciados
tem um conteúdo positivo.

É uma relação complementar entre dois grupos, um dos quais representa os mortos e o outro, os vivos. No transcorrer do rito, os papéis se intercambiam com frequência e repetidamente, pois a dualidade engendra uma reciprocidade de perspectivas que, como no caso de espelhos colocados frente a frente, pode repetir-se infinitamente: se os não-iniciados são os mortos, também são super-iniciados; e se, como acontece muitas vezes, são os iniciados que personificam os fantasmas dos mortos para apavorar os neófitos, é a estes que caberá, em um momento ulterior do ritual, dispersá-los e impedir que retornem. Sem levar mais adiante estas considerações, que nos afastariam de nosso propósito, basta lembrar que, na proporção em que os ritos e crenças ligados a Papai Noel dependem de uma sociologia iniciática (e não há dúvida sobre isto), colocam em evidência uma oposição ainda mais profunda entre mortos e vivos, por trás da oposição entre crianças e adultos.

* * *

Chegamos à conclusão precedente por uma análise puramente sincrônica da função de certos rituais e do conteúdo dos mitos que servem para os fundar. Mas uma análise diacrônica ter-nos-ia conduzido ao mesmo resultado. Isto porque é geralmente admitido, pelos historiadores das religiões e pelos folcloristas, que a origem longínqua de Papai Noel encontra-se no Abade de Liesse, Abbas Stultorum, Abade do Desgoverno, que traduz exatamente o inglês Lord of Misrule – personagens que por um determinado período foram reis de Natal e que são reconhecidos como herdeiros do rei das Saturnais da época romana.

Ora, as Saturnais eram a festa das larvae, ou seja, dos que morreram por violência ou que foram deixados sem sepultura. Por trás do ancião Saturno, devorador de crianças, perfilam-se, como tantas imagens simétricas: o bom velhinho Noel, benfeitor das crianças; o Julebok escandinavo, demônio chifrudo do mundo subterrâneo, portador de presentes para as crianças; São Nicolau, que as ressuscita e as cobre de presentes; enfim, os katchina, crianças que morreram precocemente e que renunciam ao papel de assassinos de crianças para se transformarem em dispensadores de castigos e de presentes alternadamente.

Acrescentemos que, como os katchina, o protótipo arcaico de Saturno é um deus da germinação. De fato, o personagem moderno de Santa Claus ou de Papai Noel resulta da fusão sincrética de vários personagens: o Abade de Liesse, menino-bispo, eleito sob a invocação de São Nicolau; o próprio São Nicolau, a cuja festa remontam as crenças relativas às meias e aos sapatos nas lareiras. O Abade de Liesse reinava em 25 de dezembro; o dia de São Nicolau é 6 de janeiro; os bispos-crianças eram escolhidos em 28 de dezembro, no dia dos Santos Inocentes; o Jul escandinavo era celebrado em dezembro. Somos diretamente remetidos à libertas decembri de que Horácio fala e que du Tillot invocou, no século XVIII, com a finalidade de associar o Natal às Saturnais.

As explicações pela sobrevivência são sempre incompletas, pois os costumes não desaparecem ou sobrevivem sem razão. Quando sobrevivem, a causa está menosna viscosidade histórica do que na permanência de uma função que a análise do presente deve permitir desvendar. Se demos aos índios Pueblo um lugar relevante na nossa discussão, é precisamente porque (se excluirmos certas influências espanholas tardias no século XVII) a ausência de qualquer relação histórica concebível entre suas instituições e as nossas mostra com clareza que, com os ritos de Natal, estamos na presença não apenas de vestígios históricos, mas de formas de pensamento e de conduta que dependem de condições mais gerais da vida em sociedade.

As Saturnais e a celebração medieval do Natal não contêm a razão última de um ritual que de outra maneira seria inexplicável e desprovido de significação. Mas fornecem um material comparativo útil para se depreender o sentido profundo de instituições recorrentes. Não é surpreendente que os aspectos não-cristãos da festa de Natal se pareçam com as Saturnais, pois temos boas razões para supor que a Igreja tenha fixado a data da Natividade em 25 de dezembro (em vez de março ou janeiro) para substituir por sua comemoração as festas pagãs que primitivamente se desenrolavam em 17 de dezembro, mas que no final do Império se estendiam por sete dias, isto é, até 24.

Quadro retratando a celebração da Saturnália na Roma Antiga. 
De fato, desde a Antiguidade até à Idade Média as “festas de dezembro” oferecem as mesmas características. Primeiro, decoração dos prédios com plantas verdes; depois, presentes trocados ou dados às crianças; alegria e festividades; finalmente, confraternização entre ricos e pobres, entre senhores e servidores.

Quando se examinam os fatos mais de perto, surgem certas analogias de estrutura igualmente notáveis. Como as Saturnais romanas, o Natal medieval oferece duas características sincréticas e opostas. Em primeiro lugar, é uma reunião e uma comunhão: a distinção entre as classes e os estratos é abolida temporariamente, escravos ou servos sentam-se à mesa dos senhores e estes se tornam criados daqueles; ricamente postas, as mesas estão abertas a todos; os sexos trocam as roupas. Ao mesmo tempo, entretanto, o grupo social se cinde em dois: a juventude se constitui em corpo autônomo, elege seu soberano, o abade da juventude – ou, como na Escócia, o abbot of unreason – e, como este título indica, entrega-se a uma conduta irracional, que se traduz em abusos cometidos contra o resto da população.

Tais licenças assumiam as formas mais extremas até a Renascença: blasfêmias, roubos, violações e mesmo assassinatos. Durante o Natal, como durante as Saturnais, a sociedade funciona segundo um duplo ritmo de solidariedade aumentada e de antagonismo exacerbado – e ambos os caracteres são dados como um par de oposições correlativas. O personagem do Abade de Liesse efetua uma espécie de mediação entre estes dois aspectos.

Ele é reconhecido e mesmo entronizado pelas autoridades regulares; sua missão é comandar os excessos, ao mesmo tempo que os contém dentro de certos limites. Que relação há entre este personagem e sua função, de um lado, e, de outro, o personagem e a função do Papai Noel, seu longínquo descendente?

Aqui é necessário cuidadosamente distinguir entre o ponto de vista histórico e o estrutural. Dissemos que, historicamente, o Papai Noel da Europa ocidental e a sua predileção por lareiras e calçados resultam pura e simplesmente de um deslocamento recente da festa de São Nicolau, assimilada à celebração do Natal três semanas mais tarde. Isso explica a razão pela qual o jovem abade se tenha transformado em ancião. Mas somente em parte, porque as transformações são mais sistemáticas do que o acaso das conexões históricas e dos calendários nos poderia fazer admitir.

Um personagem real transformou-se em personagem mítico. Uma emanação da juventude, simbolizando seu antagonismo relativamente aos adultos, fez-se símbolo de idade madura, cujas disposições benevolentes a respeito da mocidade ele traduz.

Gravura num livro do século XVI, retratando Sinterklass ou Sint Nikólas entregando uma cesta com brinquedos. 
O apóstolo da conduta pouco regrada se encarrega de sancionar o bom comportamento. A adolescentes abertamente agressivos contra seus pais, substituem-se pais que se escondem atrás de barbas postiças para a agradar às crianças. O mediador imaginário substitui o mediador real e, ao mesmo tempo em que muda de natureza, põe-se a funcionar no outro sentido.

Descartemos imediatamente uma ordem de considerações não essenciais ao debate, mas que oferecem risco de manter a confusão. A “juventude” desapareceu em grande medida enquanto classe de idade da sociedade contemporânea (embora assistamos desde alguns anos a certas tentativas de reconstituição, que ainda é muito cedo saber em que vão resultar). Um ritual que se distribuía antigamente entre três grupos de protagonistas – crianças, juventude e adultos – atualmente envolve apenas dois (pelo menos no que concerne ao Natal): os adultos e as crianças. A “desrazão” do Natal perdeu bastante do seu ponto de apoio. Deslocou-se e ao mesmo tempo se atenuou: no grupo dos adultos, sobrevive apenas durante o réveillon, no cabaré, e durante a noite de São Silvestre, em Times Square. Examinemos, entretanto, o papel das crianças.

Na Idade Média as crianças não aguardam pacientemente a descida dos brinquedos pela chaminé da lareira. Geralmente disfarçadas e reunidas em grupos – que o francês arcaico chama, por esta razão, de guisarts – as crianças vão de casa em casa cantar e apresentar seus votos, recebendo em troca frutas e doces. Fato significativo, elas invocam a morte para fazer valerem suas credenciais. Assim, na Escócia, no século XVIII, elas cantam os seguintes versos:

Rise up good wife, and be no swier (lazy)
To deal your bread as long’s you’re here;
The time will come when you’ll be dead;
And neither want nor meal nor bread(4)

Mesmo se não possuíssemos essa preciosa indicação e a não menos significativa indicação da fantasia que transforma os atores em espíritos ou fantasmas, ainda teríamos outras, extraídas do estudo dos pedidos das crianças. Sabemos que estes não estão limitados ao Natal(5). Acontecem durante todo o período crítico do outono – em que a noite ameaça o dia, como os mortos se fazem amedrontadores dos vivos.

Os pedidos de Natal começam várias semanas antes da Natividade, geralmente três, estabelecendo assim a ligação com as festas, também a fantasia, de São Nicolau, que ressuscitou as crianças mortas. E o seu caráter está ainda mais marcado no pedido inicial da estação, a do Hallow-Even – que se tornou véspera de Todos os Santos por decisão eclesiástica – festividade em que, ainda hoje nos países anglo-saxônicos, crianças vestidas de fantasmas e de esqueletos perseguem os adultos, a não ser que estes comprem sua tranquilidade mediante pequenos presentes.

Snape-Apple Night (1832) pintado por Daniel Maclise retratando uma tradicional celebração no Hallow-even ("Véspera do Dia de Todos os Santos"), conhecido hoje como Halloween. De fato, o Halloween que se comemora hoje, perdeu muito do seu significado religioso e original, se tornando apenas uma festa a fantasia. 
O progresso do outono, do início ao solstício, que marca a recuperação da luz e da vida, é assim acompanhado, no plano ritual, por um procedimento dialético, cujas principais etapas são: a volta dos mortos, sua conduta de ameaça e de perseguição, o estabelecimento de um modus vivendi com os vivos por meio de troca de serviços e de presentes – finalmente, o triunfo da vida, quando, no Natal, os mortos carregados de presentes abandonam os vivos para os deixar em paz até o outono seguinte. É revelador que os países latinos e católicos, até o século XIX, tenham enfatizado a festa de São Nicolau, isto é, a forma mais balanceada da relação, enquanto os países anglo-saxões a tenham desdobrado em duas formas extremas e antitéticas: a do Halloween, em que crianças fingem serem mortos, para se fazerem exatores dos adultos, e a do Christmas, em que adultos cumulam as crianças de presentes, para lhes exaltar a vitalidade.

* * *

A partir daí as características aparentemente contraditórias dos ritos de Natal se esclarecem: durante três meses a visita dos mortos aos vivos se faz de maneira cada vez mais insistente e opressiva. No dia de sua partida é possível festejá-los e permitir-lhes uma última ocasião de se manifestarem com liberdade, ou, como se diz fielmente em inglês, to raise hell. Mas, quem pode personificar os mortos em uma sociedade de vivos, a não ser aqueles que de um modo ou de outro estão incompletamente incorporados ao grupo, isto é, aqueles que participam desta alteridade que é a própria marca do supremo dualismo: mortos e vivos? Não nos surpreendemos, pois, em ver estrangeiros e escravos tornando-se os principais beneficiários da festa.

A inferioridade de estatuto político ou social e a desigualdade das idades fornecem sob este aspecto critérios equivalentes. Com efeito, temos inúmeros testemunhos, sobretudo nos mundos eslavo e escandinavo, que revelam uma refeição oferecida aos mortos como qualidade própria do réveillon, em que os comensais desempenham papel de mortos, assim como as crianças interpretam anjos, e os próprios anjos, mortos. Portanto, não é surpreendente que o Natal e o Ano Novo (seu dublê) sejam festas de troca de presentes: a festa dos mortos é essencialmente a festa dos outros, já que o fato de ser outra é a primeira imagem aproximada que se pode fazer da morte.

Eis-nos em condições de dar uma resposta às duas perguntas formuladas no início deste estudo: por que o personagem Papai Noel se desenvolve e por que a Igreja observa este desenvolvimento com inquietude?

Vimos que Papai Noel é herdeiro e simultaneamente antítese do Abade da Desrazão. Esta transformação é primeiramente indício de uma melhoria de nossas relações com a morte: não mais julgamos que devamos lhe permitir a subversão periódica da ordem e das leis, para ajustar nossas contas com ela. Agora a relação está dominada por um espírito de benevolência um pouco desdenhosa: podemos ser generosos, tomar a iniciativa, uma vez que não mais se trata de lhe oferecer presentes, e mesmo brinquedos, isto é, símbolos. Mas este enfraquecimento da relação entre mortos e vivos não se faz às custas do personagem que a encarna: dir-se-ia, pelo contrário, que este se desenvolve melhor.
Gravura inglesa do Pai Natal. 1686. 
Esta contradição seria insolúvel se não se admitisse que uma outra atitude em relação à morte continua a prosperar entre nossos contemporâneos, constituída, talvez não pelo medo tradicional de espíritos e de fantasmas, mas de tudo aquilo que a morte representa, em si mesma e também na vida, de empobrecimento, de secura e de privação.

Interroguemo-nos sobre o terno cuidado que manifestamos em relação a Papai Noel; sobre as privações e os sacrifícios que permitimos para manter intacto o seu prestígio junto às crianças. Não é verdade que no fundo de nós reside o desejo de crer, por pouco que seja, em uma generosidade sem controle, em uma gentileza desinteressada, em um breve intervalo durante o qual estejam suspensos todo temor, toda inveja e toda amargura?

Sem dúvida, não podemos participar plenamente da ilusão. Mas o que justifica nossos esforços é que, mantida pelos outros, esta ilusão nos oferece ao menos a ocasião de nos aquecer pela chama acesa nessas jovens almas. A crença que incutimos em nossas crianças, de que os brinquedos provêm do Além, oferece um álibi ao movimento secreto que de fato nos incita a oferecê-los ao Além sob pretexto de os ofertar às crianças. Por este meio, os presentes de Natal permanecem um sacrifício verdadeiro à doçura de viver – que consiste, antes de tudo, em não morrer.

Com muita profundidade Salomon Reinach escreveu certa vez que a grande diferença entre as religiões antigas e as modernas está no fato de que “os pagãos suplicavam aos mortos enquanto os cristãos rogam pelos mortos”6. Sem dúvida, há uma distância entre a prece aos mortos e esta prece toda misturada com conjurações que a todo ano, cada vez mais, dirigimos às crianças – encarnação tradicional dos mortos – para que, acreditando em Papai Noel, consintam em nos ajudar a acreditar na vida.

Acabamos, entretanto, de desembaraçar os fios que testemunham a continuidade entre essas duas expressões de uma mesma realidade. Mas a Igreja seguramente não está errada quando denuncia, na crença em Papai Noel, o mais sólido reduto e um dos focos mais ativos do paganismo no homem moderno. Resta saber se este não pode também defender o seu direito de ser pagão.

Façamos, ao terminar, uma última observação: é longo o caminho entre o rei das Saturnais e o Bom Velhinho. Neste trajeto, um traço essencial do primeiro – talvez o mais arcaico – parece ter-se perdido definitivamente. Frazer mostrou que o próprio rei das Saturnais é herdeiro de um protótipo antigo que, depois de ter personificado o rei Saturno e de, durante um mês, se ter permitido todos os excessos, era solenemente sacrificado sobre o altar do deus. Graças ao auto-de-fé de Dijon, eis aqui nosso herói reconstituído com todas as suas características. E não é o paradoxo menor deste caso singular que, querendo acabar com Papai Noel, os religiosos de Dijon, sob o pretexto de a destruir, apenas tenham restaurado em sua plenitude uma figura ritual cuja perenidade, após um eclipse de alguns milênios, eles mesmos se encarregaram de comprovar.

Representação atual do Papai Noel.
NOTAS
1. Este artigo foi publicado primeiramente em português na Revista Anhembi, n. 16, ano II, vol. VI, 1952, São Paulo. Agradecemos ao Professor Lévi-Strauss a autorização da presente publicação, a partir da versão francesa de “Le Père Noël Supplicié”, que veio à luz em Les Temps Modernes, n. 77, 1952. Tradução de José Carlos Rodrigues.
2. Personagem do folclore francês que pune fisicamente as crianças que se comportam mal.
3. Personagem às vezes invocado para amedrontar as crianças.
4. Citado por J. Brand, Observations on popular antiquities, n. ed., Londres, 1900, p. 243.
5. Ver sobre este ponto A. Varagnac, Civilization traditionelle et genres de vie, Paris, 1948, pp. 92, 122 e passim.
6. S. Reinach, L’origine des prières pour les morts, em: Cultes, mythes, religions. Paris, 1905, Tomo I, p. 319.


segunda-feira, 13 de maio de 2013

Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira


Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira


Conceição Evaristo
Doutoranda em Literatura Comparada
Universidade Federal Fluminense –  UFF


Ao propormos uma leitura em torno da Literatura negra, julgamos necessária mesmo que ligeira, uma reflexão sobre a transposição e a continuidade das culturas africanas em solo brasileiro.

O primeiro exercício de sobrevivência efetuado pelos africanos deportados no Brasil, assim como em toda diáspora, foi talvez o de buscar recompor o tecido cultural africano que se desteceu pelos caminhos, recolher fragmentos, traços, vestígios, acompanhar pegadas na tentativa de reelaborar, de compor uma cultura de exílio refazendo a sua identidade de emigrante nu. (GLISSANT, 1996)1.

O homem africano no movimento de reterritorialização encontra no culto da tradição a possibilidade de viver um continuum apesar de espaço e tempo históricos diferentes. Tradição que para Muniz Sodré (1988)2.

Afirma-se não como forma paralisante, mas como algo capaz de configurar a permanência de um paradigma negro na continuidade histórica.”

Para Edouard Glissant, o emigrante nu, ainda que despojado de tudo, principalmente de sua língua, recompõe, entretanto a partir de vestígios, a sua cultura. Essa recomposição par traces, tratada por Glissant3, é também destacada por Wilson Barbosa (1994) que vê a cultura negra brasileira guardando “grande parte dos instrumentos materiais da cultura africana ainda vivos embora simplificados.” Barbosa exemplifica informando que na África existem sete tipos de gunga ou berimbau, no Brasil, porém, só sobrevive um. Os sete berimbaus africanos guardam significações diferentes entre si, relacionadas a entidades e estados grupais diversos. A quantidade de instrumentos, e a função diferencial de cada um, deixaram de existir na América, porque, ao juntarem-se as variadas culturas africanas, surgiu “um novo significado, uma nova leitura para um conceito síntese.”  E o autor continua:

“(...) pode-se esquecer as formas sagradas do berimbau, mas não se perde o berimbau, e a sua função convocatória. Se a Cultura não pode se reproduzir pelo seu máximo, ela reproduzirá pelo seu mínimo, mas ela ainda será produzida".

É interessante notar o aspecto provocativo de uma cultura que se reprime, ela se reduz, mas ao mesmo tempo, se concentra: ela caminha por uma centralidade, diminui os seus gestos expansivos, mas mantém-se por gestos essenciativos. 5

O africano, emigrante nu, trazido como escravo, tendo perdido o seu território físico, ao chegar na diáspora, busca a reterritorialização no terreiro. Vai ser nesse espaço “território político-mítico-religioso” que o patrimônio simbólico do africano e seus descendentes vai encontrar o seu lugar de transmissão e preservação, conforme pontua Muniz Sodré. (1988)6.

“O espaço do terreiro vai ser o lugar de reterritorialização de uma cultura fragmentada, de uma cultura de exílio. É ali que o indivíduo vai reviver, vai tentar refazer a sua família, e o seu clã, que tal como na África, são formados independentemente de laços sanguíneos  No espaço do terreiro, o indivíduo buscará o sentido de pertencimento a uma coletividade e ritualisticamente vai reencontrar a sua nação".

O terreiro vai induzir em seus filhos posturas, comportamentos, assunções de outras coletividades. Várias criações como os afoxés, congadas, maracatus, folias, grupos de samba podem ser reconhecidas como “desdobramento das matrizes simbólicas dos terreiros, conforme atesta Muniz Sodré.

Com relação aos terreiros, qualquer denominação que recebam, candomblé, Xangô, pajelança, Jurema, catimbó, tambor de mina, umbanda, Muniz Sodré pontua que:

“Em qualquer deles, entretanto permaneceu ainda hoje o paradigma – um conjunto organizado de representações litúrgicas, de rituais nagô – mantidos em sua maior parte pela tradição Ketu.”7

O terreiro é visto como um quilombo, por Marco Antônio Chagas Guimarães em sua Dissertação de Mestrado, em Psicologia, sobre a construção de identidade em comunidade de terreiro.

“(...) Foram e ainda são quilombos as comunidades de terreiro que ao longo da história do negro no Brasil mostraram ter sido o lócus de engendramento por suas características especiais de útero mítico, que possibilitou a reaglutinação dos elementos fundamentais para a manutenção do negro enquanto grupo e cultura.”8

 A Mística do Quilombo na Literatura Negra Brasileira


A palavra poética é um modo de narração do mundo. Não só de narração, mas talvez, antes de tudo, de revelação do utópico desejo de construir um outro mundo. Pela poesia, inscreve-se, então, o que o mundo poderia ser. E, ao almejar um mundo outro, a poesia revela o seu descontentamento com uma ordem previamente estabelecida.

Para determinados povos, principalmente aqueles que foram colonizados, a poesia torna-se um dos lugares de criação, de manutenção e de difusão de memória, de identidade. Torna-se um lugar de transgressão ao apresentar fatos e interpretações novas a uma história que antes só trazia a marca, o selo do colonizador. É também transgressora ao optar por uma estética que destoa daquela apresentada pelo colonizador.

Pela poesia, o colonizado, segundo Homi Bhabha, não só encena o “direito de significar” como também questiona o direito de nomeação que é exercido pelo colonizador sobre o próprio colonizado e seu mundo. (BHABHA, p. 321).

Viver a poesia em tais circunstâncias, de certa forma, é assegurar o direito à fala, pois pela criação poética pode-se ocupar um lugar vazio apresentando uma contra-fala ao discurso oficial, ao discurso do poder.

Nas sociedades ágrafas, a poesia conta/canta a tradição, os mitos de fundação, as histórias, os provérbios, a sabedoria. O canto poético planta e rega a memória coletiva.

A poesia oral, presente nas culturas tradicionais africanas, foi incorporada à literatura produzida pelos poetas, contistas e romancistas africanos comprometidos com a luta de libertação do povo. A poesia foi arma, foi estratégia de luta.

No Brasil, podemos encontrar, sobretudo na voz dos descendentes de africanos, uma poética que rememora a Mãe África, denuncia a condição de vida dos afro-brasileiros, e, nas últimas décadas, apresenta-se afirmando um sentimento positivo de etnicidade.

Tendo sido o corpo negro, durante séculos, violado em sua integridade física, interditado em seu espaço individual e social pelo sistema escravocrata do passado e, hoje ainda por políticas segregacionistas existentes em todos, se não em quase todos, os países em que a diáspora africana se acha presente, coube aos descendentes de africanos, espalhados pelo mundo, inventar formas de resistência. Vemos, pois, a literatura buscar modos de enunciação positivos na descrição desse corpo. A identidade vai ser afirmada em cantos de louvor e orgulho étnicos, chocando-se com o olhar negativo e com a estereotipia lançados ao mundo e às coisas negras.

O corpo negro vai ser alforriado pela palavra poética que procura imprimir e dar outras re-lembranças às cicatrizes das marcas de chicotes ou às iniciais dos donos-colonos de um corpo escravo. A palavra literária como rubrica-enfeite surge como assunção do corpo negro. E como quelóides –  simbolizadores tribais – ainda presentes em alguns rostos africanos ou como linhas riscadas nos ombros de muitos afro-brasileiros – indicadores de feitura nos Orixás – o texto negro atualiza signos-lembranças que inscrevem o corpo negro em uma cultura específica.

Preocupações surgem quanto ao termo literatura negra, pois há a argumentação de que a arte é universal, não tem fronteiras. Sim, mas dentro dessa universalidade, há o particular, há o específico, há no caso, da literatura negra, a identidade étnica e cultural, revelando-se em momentos discursivos quando se busca uma ação afirmativa, construída pela palavra literária, e que dá um sentido positivo à etnicidade negra.

Luiza Lobo, (1989)9 ao procurar conceituar o que seria literatura negra, levanta o dado étnico, que em sua definição é marca substancial. Pontua que a existência da literatura negra se dá a partir do momento em que o negro deixa de ser somente tema, deixa de ser objeto para uma literatura alheia e passa a criar a sua própria, assumindo o papel de sujeito. Para ela, essa mudança de posição, de papel, define o surgimento da literatura negra no Brasil.

“Um dos aspectos primordiais que ao meu ver define a literatura negra, muito embora não seja um elemento norteador, em geral, dos estudos sobre o assunto, é o fato de a literatura negra do Brasil – ou afro-brasileira – ter surgido quando o negro passa de objeto a sujeito dessa literatura e cria a sua própria história; quando o negro visto geralmente de forma estereotipada, deixa de ser tema para autores brancos para criarem sua própria escritura no sentido de Derrida: a sua própria visão de mundo. Só pode ser considerada literatura negra, portanto, a escritura de africanos e seus descendentes que assumem ideologicamente a identidade de negros”(1988).10

Zilá Bernd indaga11: “que fator será o determinante da fissura a partir da qual se pode falar em literatura negra e não apenas em temática da escravidão?

E responde:

“que esse demarcador de fronteiras é o surgimento de um sujeito de enunciação no discurso poético, revelador de um processo de conscientização de ser negro entre brancos”.12 

Reafirmando que não é somente a cor da pele do escritor que vai definir, situar o seu texto como literatura negra, mas também a sua postura ideológica, a maneira como ele vai viver em si a condição e a aventura de ser um negro escritor, concordamos com Márcio Barbosa, (1985)13 quando o escritor do Quilombhoje diz que a “existência da literatura negra é posterior à existência de uma consciência negra”.

Márcio Barbosa, tomando como referencial de negro escritor o poeta Cruz e Sousa, impõe e responde a questão: “Pode-se falar de uma literatura negra?”

Tomamos o caso específico da poesia: Cruz e Sousa entra para a história da literatura, entra como um escritor que, por casualidade, era negro. O fato de ser negro nunca foi nos apresentado pela história como condição essencial e anterior à sua condição de escritor. A diferença é fundamental: a anterioridade da condição de escritor lhe determina um papel social diferente daquele que seria determinado pela anterioridade da condição de ser negro. A anterioridade de ser um escritor (que por acaso era negro) lhe dá uma especificidade que tem a ver com o papel social dos demais escritores. A anterioridade da condição de ser negro (por acaso escritor) lhe daria uma especificidade que teria a ver com o papel social dos demais negros. O fato de ser escritor lhe garante uma universalidade em que as demais coisas lhe aparecem como qualidades adicionais.

O fato de ser negro lhe daria uma particularidade que o envolveria nas responsabilidades do seu presente político, na sua especificidade cultural enquanto oprimido. Esta diferença é, sobretudo, temporal e gerada por uma opção consciente. Uma opção que depende unicamente do escritor e seu direcionamento aos problemas do grupo social é que vai defini-la. Por isso a existência de uma li-teratura negra é posterior à existência de uma consciência negra. 14

A literatura negra apresenta um forte teor ideológico, pelo fato de lidar, de tomar como pano de fundo e de eleger como sua temática a história do negro, a sua inserção e as relações étnicas da sociedade brasileira.

Há muito tempo que a literatura negra se insinua na literatura brasileira. Otavio Ianni (1988)15 aponta Luís Gama (1830-1882), Cruz e Souza (1861-1898), Lima Barreto (1881-1922) e, até mesmo, o polêmico, no que se refere à sua assunção como negro, Machado de Assis, como vozes precursoras de um discurso literário negro. Uns se revelando de forma patente, outros, de maneira latente, mas onde é possível perceber a condição negra em seus textos.

A literatura negra tem o negro como protagonista do discurso e protagonista no discurso, –  “sujeito que produz e que está reproduzido naquilo que produz”.16 

Quando falamos de sujeito na literatura negra, não estamos falando de um sujeito particular, de um sujeito construído segundo uma visão romântico-burguesa, mas de um sujeito que está abraçado ao coletivo.

O sujeito da literatura negra tem a sua existência marcada por sua relação, e por sua cumplicidade com outros sujeitos. Temos um sujeito que, ao falar de si, fala dos outros e, ao falar dos outros, fala de si. (ORLANDI, 1988)17

A voz do poeta não é uma fala única, solitária, mas a ressonância de vozes plurais. Realiza a fusão Eu/Nós, apresentando uma das características da literatura menor, apontada por Deleuse e Guatarri: “Tudo adquire um valor coletivo”.18

A literatura negra nos traz a revivência dos velhos griots africanos, guardiões da memória, que de aldeia em aldeia cantavam e contavam a história, a luta, os heróis, a resistência negra contra o colonizador. Devolve-nos uma poética do solo, do homem africano, transplantada, reelaborada nas terras da diáspora.

O que caracteriza uma literatura negra não é somente a cor da pele ou as origens étnicas do escritor, mas a maneira como ele vai viver em si a condição e a aventura de ser um negro escritor. Não podemos deixar de considerar que a experiência negra numa sociedade definida, arrumada e orientada por valores brancos é pessoal e intransferível. E, se há um comprometimento entre o fazer literário do escritor e essa experiência pessoal, singular, única, se ele se faz enunciar enunciando essa vivência negra, marcando ideologicamente o seu espaço, a sua presença, a sua escolha por uma fala afirmativa, de um discurso outro –  diferente e diferenciador do discurso institucionalizado sobre o negro –  podemos ler em sua criação referências de uma literatura negra.

David Brookshaw (1983), reconhece que os escritores negros podem produzir internalizando e defendendo estereótipos contra eles mesmos, todavia faz uma ressalva:

“(...) O aspecto importante a emergir da obra dos escritores negros, como veremos, é que, embora possam defender e mesmo internalizar estereótipos criados pela tradição branca a respeito deles,suas obras raramente limitam-se a isso, mas inevitável e desejavelmente, transmitem um conhecimento mais íntimo da posição do negro na América Latina e uma perspectiva mais pessoal e honesta de suas aspirações.”19

Apropriar-se de sua história e de sua cultura, reescrevê-la segundo a sua vivência, numa linguagem que possa ser libertadora, é o grande desafio para o escritor afro-brasileiro. Ele escreve, se comunica através de um sistema linguístico que veio aprisioná-lo também, enquanto código representativo de uma realização linguística da cultura hegemônica.

O predomínio da língua portuguesa, conforme expõe Alberto Musa (1990)20, tomando como exemplo o caso brasileiro, marcou seus efeitos, desde o início da colonização, já que era o idioma de quem mantinha o poder político-econômico. A preponderância da língua do colonizador se fará notar em relação às línguas indígenas e africanas, utilizadas nas comunicações intergrupais das várias etnias que aqui aportaram. A língua portuguesa significava a continuidade de um estado de poder, guardando também um status superior na hierarquia das línguas. A sua assimilação servia para diminuir a capacidade de um levante da população escrava e dificultava a construção de um compromisso ideológico entre os africanos e os seus primeiros descendentes já nascidos no Brasil.

Apesar da comunidade negra brasileira ter perdido quase toda a referência das línguas africanas, com exceção de adeptos do candomblé, a produção literária negro-brasileira se aproxima ora mais, ora menos de uma expressividade oral, herança das culturas africanas no solo brasileiro. Oralidade que garantiu a nossa memória e se presentifica na escrita afro-brasileira.

Luiza Lobo (1987), ao analisar textos de literatura negra brasileira, tem um parecer sobre oralidade presente nessa produção.

“A diferença entre o escrito e o falado, entre o significado lógico e o sentido pragmático que tem marcado toda cultura ocidental, notadamente o Primeiro Mundo, tem sido conscientemente abandonada pelos escritores de origem africana, até mesmo na tentativa de encontrar um universo simbólico discursivo próprio.”21

A literatura negra brasileira, ao apresentar um discurso outro que pretende uma auto-apresentação do negro – discordante de um discurso de representação do negro produzido pela literatura dominante –  vale-se da paródia como maneira de inverter, de subverter um discurso que, muitas vezes, ainda consagra o negro como res, coisa “ex-ótica” e que não cabe no campo de visão de um olhar viciado, limitado, que não compreende a alteridade, a não ser por um juízo de valor.

O discurso paródico da literatura negra, por meio de um enfrentamento ideológico, desenha novos caminhos, novos contornos para a alteridade negra, redefinindo o lugar da diferença.

A paródia como a “intertextualidade das diferenças” (Afonso Romano de Sant’Anna, 1991)22 torna-se um excelente recurso para uma literatura que se faz na “contramão”23, nos interstícios de uma outra, que brota dos lugares de um suposto silêncio e que vem virando pelo avesso, comendo pelas beiradas um discurso que já se sacramentou a respeito do negro.

Como apropriação de um discurso alheio, a paródia se torna o pulo do gato da literatura negra, quando o texto negro-brasileiro consegue quebrar violentamente o “espelho”24 no qual fingidamente começou a se contemplar, ou quando constrói uma invertida imagem.

A transgressão oferecida pelos textos paródicos da literatura negra-brasileira pode ser observada nos textos em que a palavra literária vem reconstruindo a história. A literatura negra toma como parte do corpus a História do povo negro vivida e interpretada do ponto de vista negro, propondo uma leitura transgressora da História oficial e escrevendo a história dos dominados.

Reverter os valores, introduzir personagens na história, dar-lhes um espaço/ tempo e uma outra movimentação a partir de uma ótica e de uma criação próprias, encontrar seus heróis e construir uma épica negra é uma das constantes que pode ser observada na literatura negra.

A saga Palmarina vai ser sempre retomada. Mulheres como Dandara, Luiza Mahin, Aqualtume serão temáticas do canto poético negro.

Abdias Nascimento (1980) partindo do modelo de organização quilombola formula uma espécie de “práxis afro-brasileira –  o quilombismo”, que pode ser reconhecida nos vários tipos de organizações coletivas negras. Essa práxis afro-brasileira nascida nos quilombos, pontos de resistência ao sistema escravagista, de certa forma vai estar presente em “outros focos de resistência física e cultural” ao longo da história do negro brasileiro, como nas irmandades religiosas, clubes, terreiros, escolas de samba etc.25,  desempenhando um papel relevante na sustentação da continuidade africana” (p.225).  Há uma mística quilombola latente ou patente, como forma defensiva e afirmativa do negro, na sociedade brasileira.  A retomada do nome Quilombo e/ou Palmares em várias organizações do passado, e ainda no presente, aponta para o significado da ação quilombola como um paradigma de organização social entre os negros brasileiros.  Abdias Nascimento acrescenta ainda:

“Com efeito, o quilombismo tem se revelado fator capaz de mobilizar disciplinarmente as massas negras por causa do profundo apelo psicossocial cujas raízes estão entranhadas na história, na cultura e na vivência dos afro-brasileiros.”26

Há uma “idéia-força” advinda do modelo quilombista que promove uma “reatualização” do quilombismo nas afirmações afro-brasileiras. Há “um ideal forte e denso que via de regra permanece reprimido pelas estruturas dominantes” podendo também passar por um processo de sublimação pelos mecanismos de defesa do inconsciente individual ou coletivo, afirma ainda o estudioso e político afro-brasileiro (p.256).

A historiadora Beatriz Nascimento27, também destaca a organização quilombola, como paradigma organizativo de estratégias afirmativas dos negros que foram trazidos para as Américas.

Após a Abolição, a mística quilombola interiorizou-se nos descendentes livres de africanos. Não mais como uma mística de “guerra bélica declarada, mas como esforço de combate pela vida”.  A força vital, experimentada pelo jovem que se iniciava no Kilombo, componente do sistema filosófico bantu, está no modo de ser do brasileiro.  “A aparente aceitação das dificuldades”, diz a estudiosa da temática, fundamenta-se nesta filosofia, mas é preciso fortalecer o corpo e a mente como instrumentos de luta.28 As religiões afro-brasileiras, tanto as de origem bantu como as de fundamento nagô operam com “essa força vital, máquina-de-guerra existencial e física.29 A religião marca o adepto como no quilombo ancestral quando ele era marcado por ritos de iniciação.

Ao apropriar-me do conceito de quilombismo proposto por Abdias Nascimento e por Beatriz Nascimento, acrescento um outro aspecto talvez implícito nas considerações dos dois estudiosos. Enfatizo a diferença entre quilombo e gueto. Aprofundo aqui um pensamento de Mirian Alves30, quando a poetisa afro-brasileira diz que enquanto gueto supõe impotência, quilombo traz em si a ideia de resistência, de organização.

Podemos pensar o quilombo como um espaço de vivência marcado pelo enfrentamento, pela audácia de contradizer, pelo risco de contraviver o sistema.

O quilombo não garantia ao escravo a liberdade. Era escravo e escravo fugido redo-brando assim a sua exclusão social. O quilombola era o marginal, o fora-da-lei, como ob-serva Zila Bernd31. (1988, p.80).

Distingo ainda quilombo de senzala, porque quilombo é um lugar de escolha, senzala, como gueto, guarda um sentido de lugar vivido por imposição. Entretanto, a senzala subverte também a ordem, na medida em que é a oposição da casa-grande, constituindo-se um pólo ameaçador.

A mística do quilombo vai estar presente em várias criações da literatura negra brasileira. O fato-símbolo da resistência negra, Quilombo dos Palmares, vai ser reverenciado. Zumbi é o herói e a vítima do cotidiano.

Interessante observar que Lima Barreto, um dos precursores da literatura negra, nomeia o seu espaço particular, a sua casa, o seu referencial familiar como “Vila Quilombo”, conforme assinala Regis de Morais (1983)32. Poderíamos pensar em uma reapropriação de um território cultural, nomear negramente seu mundo.

A literatura negra brasileira não está desvencilhada das pontuações ideológicas do Movimento Negro. E embora durante quase todo o processo de formação da literatura brasileira existissem vozes negras desejosas em falar por si e de si, a expressividade negra vai ganhar uma nova consciência política sob inspiração do Movimento Negro, que volta para a reafricanização, na década de 70. O Movimento de Negritude, no Brasil, tardiamente chegado, vem misturado aos discursos de Lumunba, Black Panter, Luther King, Malcon X, Angela Davis e das Guerras de Independência das colônias portuguesas. Esse discurso é orientado por uma postura ideológica que levará a uma produção literária marcada por uma fala enfática, denunciadora da condição do negro no Brasil, mas igualmente valorativa, afirmativa do mundo e das coisas negras, fugindo do discurso produzido nas décadas anteriores carregado de lamentos, mágoa e impotência.

A literatura negra não é feita só de banzo; para isso o samba existe. O corpo esteve escravo, mas houve e sempre há a esperança de quilombo.

Na Literatura Negra, encontramos um canto nascido no novo Ayê, na nova terra. E, na “História para ninar Cassul-Buanga”, de Nei Lopes (1996)33, ouvimos na voz da diáspora uma louvação à chegada, ao trabalho, à resistência e à fundação de um novo mundo. O poeta canta para que a memória não se aparte de nós.

História para ninar Cassul-Buanga
(com acompanhamento de marimbas)

Um dia, Cassul-Buanga, alguns chegaram:
A pólvora no peito, uma bússola nos olhos
E as caras inóspitas vestidas de papel.

Vieram numa nau de velas caras,
Bordadas de Cifrões.
Suas mãos eram de ferro
E falavam um dialeto
De medo e ignorância.

E fomos.
Amontoados, confundidos, fundidos, estupefatos
Nossas dignidades eram dadas mar atrás
Aos peixes.

Chegamos:
Nosso suor foi o doce sumo de suas canas
nós bagaços
Nosso sangue eram as gotas de seu café
 nós borras pretas.
Nossas carapinhas eram nuvens de algodão,
Brancas,
Como nossas negras dignidades
Dadas aos peixes.
Nossas mãos eram sua mão-de-obra
Mas vivemos, Cassul. E cantamos um blue!
E na roda um samba
De roda
Dançamos.
Nossos corpos tensos

Nossos corpos densos
Venceram quase todas as competições.
Nossos poemas formaram um grande rio.
E amamos e nos demos.
E nos demos e amamos.
E de nós fêz-se um mundo.

Hoje, Cassul, nossas mulheres
 os negros ventres de veludo-
Manufaturam, de paina, de faina
Os travesseiros
Onde nossos filhos,
Meninos como você, Cassul-Buanga,
Hão de sonhar um sonho tão bonito...
Porque Zâmbi mandou. E está escrito.

Notas Bibliográficas:

1. EDOUARD GLISSANT, Introduction à Une Poétique Du Divers, Paris, Editions, Gallimand, 1996, p.15.
2. MUNIZ SODRÉ , O Terreiro e a Cidade, Petrópolis, Vozes, 1988, p.56.
3. EDOUARD GLISSANT, Introduction à Une Poétique Du Divers, p.16.
4. WILSON BARBOSA, Atrás do Muro da Noite, Brasília, Fundação Cultural Palmares, 1994, p.31.
5 Idem, p.31.
6. MUNIZ SODRÉ, O Terreiro e a Cidade, p.50.
7. Idem, p.51.
8 MARCOS ANTÔNIO GUIMARAES, É um Umbigo, não é? A Mãe-criadeira: um estudo sobre o processo de construção de identidade em comunidade de Terreiro – Dissertação de Mestrado. PUC/RJ, 1990, p.24.
9. LUIZA LOBO, “A Pioneira Maranhense Maria Firmina dos Reis” in Estudos                      Afro-Asiáticos, RJ -  nº 16 - 1989, p.91.
10. Idem., p. 91.
11. ZILÁ BERND,  Introdução à Literatura Negra, São Paulo, Brasiliense, 1988, p.48.
12. Idem, p.48.
13. MARCIO BARBOSA, “Questões sobre Literatura Negra” in Reflexões sobre a Literatura Afro-Brasileira, Quilombhoje, São Paulo, Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, 1985, p.51.
14. Idem, pp 50-51.
15. OTÁVIO IANNI, “Literatura e Consciência” in Estudos Afro-Asiáticos, RJ, nº 15, 1988, p. 208, 209.
16. ENI PULCENELLI ORLANDI, “Incompletude do Sujeito” in Sujeito e Texto, São Paulo/PUC/1988, p.11.
17. Idem, p.15.
18. GUATARRI, F. & DELEUSE, Kafka: Por uma Literatura Menor, 1977, p.25.
19. DAVID BROOKSHAW,  Raça e Cor na Literatura Brasileira, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983, p. 145, 146.
20.ALBERTO BAETA NEVES MUSA, “Origens da Poesia Afro-Brasileira: Condicionamentos Lingüísticos in Estudos Afro-Asiáticos nº 19, 1990, p.56.
21. LUIZA LOBO, “Literatura Negra Brasileira Contemporânea“ Estudos Afro-Asiáticos nº 14, 1987, p.116.
22. AFONSO ROMANO DE SANT’ANNA, Paródia, Paráfrase & Cia, São Paulo, Ática, 1991, p.28
23. ZILÁ BERND, Negritude e Literatura na América Latina, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1987, p.17.
24. AFONSO ROMANO DE SANT’ANNA, Paródia, Paráfrase & Cia, p.32.
25. ABDIAS NASCIMENTO,  O Quilombismo, Petrópolis, Vozes,  1980, p. 255.
26. Idem, p. 225.
27. BEATRIZ NASCIMENTO, “Kilombo” texto mimeografado, s/d.
28. Idem.
29. Idem.
29. Mirian Alves, poetisa paulista, uma das mais ativas participantes do grupo Quilombhoje Literatura.
30. ZILÁ BERND, Introdução à Literatura Negra, São Paulo, Brasiliense, 1988, p.29.
31. REGIS DE MORAIS, Lima Barreto, São Paulo, 1983, p.17.
32. NEI LOPES, Incursões sobre a Pele, Rio, Artium, 1996, pp 23, 24.

Referências Bibliográficas:

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