Pesquisar neste blog

Comunicado

Comunico a todos que tiverem interesse de compartilhar meus artigos, textos, ensaios, monografias, etc., por favor, coloquem as devidas referências e a fonte de origem do material usado. Caso contrário, você estará cometendo plágio ou uso não autorizado de produção científica, o que consiste em crime de acordo com a Lei 9.610/98.

Desde já deixo esse alerta, pois embora o meu blog seja de acesso livre e gratuito, o material aqui postado pode ser compartilhado, copiado, impresso, etc., mas desde que seja devidamente dentro da lei.

Atenciosamente
Leandro Vilar

domingo, 19 de julho de 2020

Devoradores de homens: os leões assassinos de Tsavo

No final do século XIX, a região de Tsavo, no Quênia, tornou-se palco de uma história violenta, sangrenta e assustadora. Falava-se que leões devoradores de homens estavam mantando muitas pessoas naquele local. Realmente aquela história foi real, inclusive inspirou livros e filmes. E nesta postagem contarei um pouco dessa sinistra história, apontando as diferenças entre ficção e fato.

Os leões de Tsavo, empalhados no Museu Field de História Natural, em Chicago. 

A ponte de Tsavo

Durante o período do neocolonialismo em África, países como Inglaterra, França e Bélgica, dominava várias colônias naquele continente. No caso dos ingleses, em 1895 eles deram início a Estrada de Ferro de Uganda, a qual iniciava-se no atual território de Uganda, mas adentrava as terras do Quênia, rumo a Mombaça e o litoral. A ideia daquela ferrovia era criar um caminho da costa até o interior do continente, facilitando o transporte e escoamento de produtos. A medida que esse caminho férreo era construído, ele chegou até o rio Tsavo no Quênia, onde se viu que era necessário construir uma ponte ali. Na época a Companhia Britânica da África Oriental, nomeou o capitão John Henry Patterson (1867-1947) para supervisionar as obras da ponte de Tsavo. Naquele tempo era comum os militares exercerem cargos nas companhias coloniais do Império Britânico, com isso Patterson seguiu para o Quênia. (PATTERSON, 1925, p. 91). 

Fotografia da ponte de Tsavo, Quênia. A ponte ainda hoje existe, embora não seja com a mesma estrutura. 

As obras da ponte já estavam em andamento quando Patterson chegou por volta de março e 1898. Na ocasião empregavam-se trabalhadores locais, mas também havia indianos, recordando que a Índia naquele tempo também era colônia britânica. Com isso muitos indianos que passavam a trabalhar para as companhias coloniais inglesas, seguiam para outros países. Patterson comenta que poucos dias após ele ter chegado a Tsavo, algo de estranho aconteceu, dois trabalhadores sumiram misteriosamente. (PATTERSON, 1925, p. 98).

Sublinha-se que a região de Tsavo fica em meio as savanas quenianas, sendo um território hostil devido aos grandes predadores desse habitat. Além disso, o sumiço de trabalhadores não era incomum, pois alguns acabavam se perdendo, enquanto iam caçar, e outros também aproveitavam para fugir do trabalho degradante, e as vezes análogo a escravidão. Além disso, havia a ameaça de leões que viviam naquela região. Patterson (1925, p. 98-99) comentou em seu livro que quando soube do sumiço de dois trabalhadores durante à noite, e lhe foi informado que eles teriam sido levados por leões, ele disse que não acreditou naquilo, pois leões normalmente atacavam em bando, e não havia bandos daqueles felinos por vários quilômetros nos arredores. Além disso, o acampamento operário, moravam dezenas de trabalhadores. Seriam muito difícil ninguém conseguir ver tais animais saindo dali, arrastando dois homens adultos. Porém, os oficiais seguiam confirmando que aquilo foi ataque de leões, então Patterson disse que decidiu investigar. Dando início a quase dez meses de terror. 

Fotografia de John Henry Patterson, o caçador dos leões assassinos de Tsavo. 

O relato de Patterson

Quase dez anos depois o ocorrido em Tsavo, Patterson escreveu o livro The man-eating lions of Tsavo (1907), cuja obra o deixou relativamente famoso na época. O livro conta a tensa e assustadora experiência dele em ter vivido aquele ano de 1898, sob a ameaça de dois ferozes leões devoradores de homens. De fato, muito da popularidade dessa história deve-se a publicação desse livro, mesmo que ele tenha saído alguns anos depois dos fatos ali narrados. 

A obra embora tenha sido considerada como um genuíno relato real, hoje é encarada de forma diferente, sendo vista mais como um romanceamento daqueles acontecimentos. Algo perceptível no linguajar de Patterson, que escreveu aquele relato como se fosse um livro de aventura, além de que ele também provavelmente alterou determinados relatos, e um dos mais mais nítidos diz respeito ao número de mortos, onde ele sugeriu que entre 130 a 140 homens foram assassinados por aqueles dois leões. 

Mas apesar do relato romanceado de Patterson, realmente os assassinatos ocorreram. Os leões somente foram abatidos em dezembro, após meses de ataques realizados à noite, onde eles de fato chegavam a invadir o território dos acampamentos, e atacando os empregados que ali andavam, ou estavam ocupados com algum afazer, ou até mesmo dormindo. Patterson também relata que ele e caçadores locais foram atrás daqueles animais em várias ocasiões, mas sempre perdiam seus rastros. Armadilhas foram montadas, mas os leões não caíram em nenhuma delas. 

A medida que os meses passavam, alguns dos trabalhadores começaram a fugir e outros relutavam em trabalhar devido a insegurança. Histórias de assombração começaram a ser difundidas entre os nativos, os quais diziam que tais leões seriam "demônios", "monstros" ou "espíritos vingativos". E a condição de eles atacarem principalmente durante à noite, e de forma sorrateira, contribuía para deixar tais relatos ainda mais vívidos e aterrorizantes. (PATTERSON, 1925, p. 101, 106). 

Embora que biologicamente leões costumam caçar durante à noite, e eles como outros felinos, tendem a ser silenciosos enquanto espreitam suas presas. Logo, isso não seria algo incomum, mas para aquele contexto o era, ainda mais pelo fato daqueles animais terem se especializado em atacar pessoas, sendo algo atípico, pois as presas dos leões nas savanas eram animais, não pessoas. Assim, começou a se dizer que eles tinham "apresso por carne humana".

As feras são abatidas

O primeiro leão foi abatido em 9 de dezembro. Patterson relata que o caçou sozinho durante à noite, tendo o matado com dois tiros e quase sendo morto por ele. Não se sabe exatamente ele fez isso tudo sozinho, ou vangloriou-se da façanha. De qualquer forma, no dia 10, o corpo do animal foi levado ao acampamento. Na ocasião ele tirou uma foto ao lado do animal. A morte daquele leão foi recebida como uma agradável notícia, pois um dos devoradores estava morto. (PATTERSON, 1925, p. 120-122).

Patterson ao lado do primeiro leão. Foto talvez de 10 de dezembro de 1898. 

A morte da segunda fera ocorreu quase no final daquele ano, no dia 29 de dezembro. Patterson relatou uma caçada ainda mais tensa e violenta, onde ele disparou várias vezes para acertar o animal e até consegui-lo matá-lo. Inclusive ele conta que montou um posto de caça numa árvore, e usou bodes como isca. De seu esconderijo ele atirou várias vezes contra a fera, a qual segundo ele, tentou escalar a árvore, mas acabou sendo morta, enquanto fazia isso. (PATTERSON, 1925, p. 125-126).

O segundo leão morto por Patterson. Foto talvez de 30 de dezembro de 1898. 

Uma história que ganhou fama

A ponte de Tsavo foi concluída em 1899, e Patterson foi dispensado dessa missão, deixando posteriormente o Quênia. Ao retornar a Inglaterra, foi parabenizado por sua façanha na África, sendo considerado um bravo caçador e até um herói. Na ocasião, John Patterson conservava consigo as peles e crânios dos dois leões, os quais exibiu para familiares, amigos e admiradores. Em 1907 como dito anteriormente, ele publicou seu livro sobre o ocorrido em Tsavo, e a obra foi bem recebida na Inglaterra. Posteriormente ele continuou a seguir com sua carreira militar.

No ano de 1924, já estando aposentado do Exército, e precisando de dinheiro, ele vendeu as peles e crânios dos leões, para o Museu Field de História Natural em Chicago, por 5 mil dólares. As peles estavam em péssimo estado naquela época, tendo que serem reconstruídas para serem empalhadas. No ano seguinte, Patterson publicou uma segunda edição do livro sobre sua caçada, obra inclusive bancada pelo Museu Field, como forma de atrair o público para exposição dos leões devoradores de homens de Tsavo. Após isso, John Patterson seguiu vivendo nos Estados Unidos com sua esposa Frances Helena, pelo resto da vida. O casal morreu na velhice, sem deixar herdeiros. 

Sua história gerou três filmes: Bwana Devil (1952), Killers of Kilimanjaro (1956) e The Ghost and the Darkness (1996), sendo o terceiro filme o mais famoso dos três e o que levou alguns prêmios como um Oscar e três Globos de Ouro. Além disso, o terceiro filme é o mais fidedigno a história contada por Patterson em seu livro. E inspirou alguns livros de aventura e drama. (PETERHANS; GNOSKE, 2001, p. 2). 

Pôster do filme A Sombra e a Escuridão (The Ghost and the Darkness), estrelando Val Kimer e Michael Douglas, 1996. 

Fatos sobre os leões devoradores de homens em Tsavo

Uma das primeiras coisas que chama atenção é o fato de estes leões não terem juba. Pois normalmente acreditamos que todo leão possui juba, e a ausência dessa seria algo das fêmeas, leões jovens ou doentes. Porém, já se sabe há vários anos que não é bem assim. Existem diferentes tipos de jubas, inclusive leões com pouca juba ou até mesmo "carecas". E isso necessariamente não seria por fator de doença, mas por questões ambientais. Logo, observou-se que leões de zonas quentes e de baixa altitude, tem disposição a terem jubas menores. E no caso de Tsavo, é comum isso acontecer lá. 

Um segundo aspecto salientado por Peterhans e Gnoske (2001, p. 4), diz respeito ao tamanho dos felinos. Patterson chegou a dizer que os dois teriam quase três metros de comprimento, mas em média os leões de Tsavo ficam entre 2,60 a 2,70 m de cumprimento. Ou Patterson errou na medição, ou deliberadamente ele escreveu que eram maiores, para fim de gerar mais impacto. 

Um terceiro ponto questionável diz respeito do porque esses leões atacariam apenas pessoas. Aqui há uma série de casos atípicos. Primeiro, os dois felinos não são irmãos, mas talvez seriam do mesmo bando; segundo, leões não costumam caçar em dupla, geralmente um macho possui um bando e ele coloca as leoas e os leões jovens para caçar. Quando um macho não tem um bando, ele caça por conta própria, mas as vezes pode ocorrer de ele trabalhar ocasionalmente em parceria. Os dois leões de Tsavo eram uma dupla de assassinos que se especializou em caçar humanos, algo realmente incomum. 

Várias teorias foram propostas para tentar responder por que aqueles dois machos se uniram para caçar humanos nas obras da ponte de Tsavo? As mais aceitas sugerem que havia escassez de presas naturais naquela localidade, e devido a abundância de pessoas ali, as quais eram tidas como alvos fáceis, os dois leões decidiram ir caçá-los. Porém, isso por si só não responde o mistério todo. Peterhans e Gnoske (2001, p. 6-8) apontam com base no estudo osteológico dos crânios e dentes dos dois leões, que eles possuíam problemas dentários de má formação, algo que poderia ter atrapalhado na hora de eles caçarem, não concedendo força suficiente para prender e executar animais de grande porte. Logo, eles procuraram por presas menores, e os humanos entraram para seu cardápio. Não obstante, os dois pesquisadores também salientam que ambos os leões não seriam tão velhos, teriam uma idade estimada entre 4 a 6 anos, fator que poderia indicar o porque eles não tivessem um bando, já que normalmente por essa idade leões jovens são expulsos de seus bandos, tendo que viver sozinhos ou procurar por outro grupo. 

Por qual motivo tais felinos teriam escolhido Tsavo para ser seu território de caça, uma das pistas é dada pelo próprio John Patterson, o qual disse que não havia preocupação de se enterrar ou cremar os corpos dos operários que morriam. Seus cadáveres eram jogados em valas ou abandonados ao relento. Além disso, sabe-se que uma rota clandestina de escravos passava por aquela região, e os que morriam durante a viagem, também eram despejados ao relento. Logo, o cheiro de sangue e carne atraía carniceiros e provavelmente atraiu os dois leões. Os quais vendo a abundância de presas naquele território e como era fácil de caçá-los, se estabeleceram por ali. Condição essa plausível, pois os dois animais somente chegaram ali em 1898, antes disso não se sabe de onde vieram. 

Outro ponto analisado por Peterhans e Gnoske (2001, p. 8), diz respeito ao número de vítimas desses leões. Na época a companhia férrea disse que apenas 28 trabalhadores teriam sido mortos por tais animais. Porém, Patterson relatou em seu livro, algo entre 135 a 140 mortes. Todavia, os autores ao analisar o consumo diário de carne que um leão adulto precisaria para sobreviver num ambiente de savana, constataram que o volume de carne gerado pelo abate de mais de cem pessoas seriam algo tremendamente desnecessário e até questionável, pois se um leão conseguisse se alimentar muito bem, ele inclusive nem precisaria comer todos os dias. 

Nesse ponto, Patterson disse que na época que os nativos consideravam que aqueles leões matassem não para comer, mas por vingança ou pura maldade. Animais até podem matar por raiva e até cometem vingança, porém, quais motivos aqueles dois leões teriam para atacar aquelas pessoas, se desconhece, embora que na época dissessem que eles fossem assombrações. De qualquer forma, Peterhans e Gnoske (2001) sugeriram com base em seus dados, que os leões teriam matado entre 30 a 38 pessoas, um valor que se aproxima do sugerido pela companhia, mas bem abaixo apontado por John Patterson. Além disso, tal dado aponta uma média de 3 ataques por mês, o que indicaria que tais felinos não se alimentariam apenas de humanos, pois a carne fornecida por três pessoas não seria suficiente para sustentar tais animais por 30 dias. Sendo assim, os ataques não ocorreriam regularmente como Patterson sugeriu. Mas apesar de tais imprecisões, ainda assim, é uma história real e até incomum. 

NOTA: Os leões de Tsavo não possuíam juba, mas nos filmes eles aparecem com juba, pois lhe concede uma aparência maior, mais bela e intimidadora. 
NOTA 2: Os dois leões empalhados são menores do que realmente foram, o fato deve-se que como as peles estavam tão desgastadas, pois foram usadas como tapete por vários anos, os taxidermistas tiveram que reconstruir parte das peles, com isso, os leões em exposição tem porte menor. 
NOTA 3: Os leões são catalogados como FMNH 23970 (para o primeiro) e FMNH 23969 (para o segundo). Tal numeração consiste no número pelos quais foram registrados no Museu Field. 
NOTA 4: Sombra e Escuridão ou no original Ghost e Darkness, são nomes fictícios criados para o filme homônimo. Patterson historicamente não nomeou propriamente os leões que abateu.
NOTA 5: John Patterson escreveu outros três livros: um segundo sobre outra missão sua na África, intitulado In the grip of the nyika (1909), e os dois últimos sobre sua participação na Primeira Guerra Mundial ao lado de judeus, With Zionists in Gallopili (1916) e With the Judeans in the Palestine Campaign (1922). 
NOTA 6: Patterson lutou na Primeira Guerra, inclusive comandando tropas de judeus, pois ele era defensor da causa sionista, defendendo a criação do Estado de Israel. 

Referências bibliográficas:
PATTERSON, John H. The man-eating lions of Tsavo. Chicago, Field Museum Natural History, 1925. 
PETERHANS, Julian C. Kerbis; GNOSKE, Thomas Patrick. The science of "Man-Eating" among lions Panthera leo with a Reconstruction of the Natural History of the "Man Eaters of Tsavo". Journal of East Africa Natural History, v. 90, n. 1, 2001, p. 1-40. 

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Uma nota sobre as fortalezas modernas

A existência de fortificações é algo que remonta milhares de anos, com a construção de muros, muralhas, fossos, torres, cidadelas, trincheiras, cercas, paliçadas, etc. Os próprios castelos eram essencialmente um tipo de fortaleza antes de ganharem novos contornos e estilos, influenciado pelos palácios. Em essência o papel de uma fortificação é promover estruturas que sirvam para a defesa de uma localidade, seja um forte, um acampamento, base, vila, cidade, posto, assentamento etc. Mas quando se fala em defesa, não significa excluir a possibilidade de atacar, pois tais estruturas possuíam funções diferentes, por exemplo, trincheiras serviam para retardar e dificultar o avanço de tropas, mas também eram pontos para proteger terreno e gerar contra-ataque. Já um muro essencialmente serve para proteger, sendo uma barreira que dificulte que forças inimigas tenham acesso fácil. Porém, o muro por si só não é suficiente, por isso, desenvolveu-se torres, torreões, seteiras, ameias etc. para que soldados ali posicionados, pudessem contra-atacar os invasores. 

No entanto, o objetivo desse breve texto foi comentar um pouco sobre as fortificações militares surgidas a Idade Moderna, na Europa, os chamados fortes abaluartados, forte com bastião, traço italiano, fortificação com pontas, fortaleza-estrela, são alguns nomes dados para um tipo de arquitetura militar que se tornou padrão na Europa dos séculos XV ao XVIII, inclusive tendo sido influenciada devido as formas de como se fazer guerra e a introdução da pólvora e de armas de fogo no continente europeu, o que levou os engenheiros militares a reformular as estruturas defensivas, pois as antigas não eram adequadas para resistir a cercos ou assaltos promovidos com artilharia.

O traço italiano

No século XV os turcos haviam difundido no Oriente Médio e no leste europeu o uso de canhões, inclusive a conquista de Constantinopla em 1453, deveu-se em parte graças ao uso de enormes canhões que bombardearam a capital bizantina por quase dois meses. Mesmo seu sistema triplo de muralhas não barrou o avanço da nova arma de cerco (RUNCIMAN, 1977, p. 232).

Quando os canhões começaram a se difundir pela Itália, os arquitetos militares tiveram que repensar a forma de como projetar as fortalezas e muralhas, e dessa forma surgiram as fortificações com novas estruturas as quais tinham que aguentar o dano explosivo e de impacto dos projeteis das armas de fogo, entre outras características. Com isso originou-se uma nova forma de fortificações com baluartes ou bastiões. Os quais foram uma estrutura da arquitetura militar surgida na Itália, no século XV, sendo aprimorada nos dois séculos seguintes. Os baluartes consistiam em estruturas geralmente com três pontas, as quais se projetavam dos ângulos de uma fortificação. Os baluartes permitiam ampliar os ângulos de ataque, como também gerava reforço para defender os muros em caso de cerco. (TALLET, 1992, p. 34).


Forte de Jaca, Espanha. Um exemplo de fortificação com cinco baluartes. 

“A fortaleza com bastião era uma construção “científica”, o que significava que seu projeto era feito com base em cálculos matemáticos para minimizar da melhor maneira a área da muralha que o tiro podia atingir. Portanto, o ataque tinha de ser “científico” também”. (KEEGAN, 1995, p. 337). 

“Assim, uma bala disparada (em função de determinado ângulo) na direcção do horizonte seguiria inicialmente em linha recta; o projéctil iniciaria depois uma trajectória curva em função do decréscimo do ímpeto aplicado pela carga explosiva, para na terceira e última fase terminar o seu percurso segundo uma trajectória rectilínea na direcção do solo”. (SOUSA, 2013, p. 59).

“O novo sistema de fortificação teria de incorporar características que resistissem ao bombardeio e, ao mesmo tempo, mantivessem a infantaria do inimigo à distância. A solução para esse problema de diminuir a altura e aumentar a espessura foi o bastião angular, que se projetava dos muros, dominava o fosso e era suficientemente forte para não ser destruído por uma concentração de fogo inimigo”. (KEEGAN, 1995, p. 334).

Além do bastião, a arquitetura moderna também empregou novas e velhas estruturas que passaram a complementar a defesa, como hornaveques, coroas, revellins, fossos, escarpas, trincheiras, etc. cujas estruturas garantiam que os disparos viessem a ricochetear, como também serviriam de reforço para muralha, além de minimizar os “ângulos mortos”, locais que apresentavam fraqueza na estrutura (SOUSA, 2013, p. 80). No caso dos fossos, escarpas e das trincheiras, consistiam em formas antigas de manter o exército invasor à distância, inviabilizando a tentativa de se escalar os muros.

Projeto das defesas do Forte da Vila de Santos, no Brasil. 

O modelo italiano ou “traço italiano” como ficou conhecido, tornou-se referência para a construção de fortificações na Europa Ocidental. Ao invés de se fazer um forte ou fortaleza quadrangular como antes, agora fazia-se em disposição geométrica mais variada: pentágono, hexágono, heptágono, etc. Os chamados “fortes estrelas”, nome devido às suas várias pontas. Por sua vez, o bastião não apenas apresentava-se como uma estrutura de defesa nas pontas da muralha, mas também era uma estrutura na qual se armavam baterias para o ataque. Assim, ele tornava-se uma estrutura defensiva e ofensiva ao mesmo tempo (PARKER, 1994, p. 8-9). 

“O pentágono, uma vez mais, permitiria chegar a um equilíbrio entre aquilo que era preconizado pela teoria e as possibilidades militares pragmáticas, alcançando-se assim uma economia de esforços. Os cinco lados permitiam construir plataformas de tiro mais espaçosas em número superior à forma quadrada, evitando-se o excesso decorrente de um circuito com seis ou oito lados que obrigaria a um maior espaçamento entre os bastiões para optimizar as linhas de fogo, aumentando a escala da cidadela para as proporções de uma cidade”. (SOUSA, 2013, p. 84).


Esse fator “científico” foi um ponto que levou, nos séculos XV e XVI, a uma “revolução militar”, no sentido de como se passou a travar as guerras dali em diante. A geometria, a matemática, a perspectiva, a física e a cartografia tornaram-se ciências que passaram a acompanhar não apenas os arquitetos e engenheiros militares que projetavam as fortificações, mas tornaram-se saberes necessários para os artilheiros poderem posicionar os canhões e assim efetuarem os ataques. Dessa forma surgia à balística, ciência que estuda o movimento dos projéteis. 

Fortaleza de Santa Catarina, Cabedelo, no Brasil. Foto de Daniell Mendes. Essa fortificação erguida no final do século XVI, apresenta atualmente quatro baluartes e dois meio-baluartes. 

A Guerra de Flandres

Flandres é uma região atualmente situada no norte da Bélgica, fazendo fronteira com o sul da Holanda (ou Países Baixos). Todavia, a quinhentos anos, esse território foi alvo de disputas entre a República Unida dos Países Baixos contra o Império Espanhol, pois anteriormente o território das Províncias Batavas, pertencia a Espanha, e com a rebelião de sete províncias, as quais formaram uma república, popularmente chamada de Holanda, isso resultou na Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), fator esse, que o governo espanhol de Carlos I e seus sucessores, por vários anos tentaram retomar o controle daquelas províncias, originando a guerra de flandres, que ficou conhecida por ter influenciado na arquitetura militar e nas táticas de batalha. 

“O que se entendia por guerra de Flandres, isto é, a guerra dos Países Baixos entre a Espanha e as Província Unidas, não esgotava obviamente as formas de conflito bélico na Europa da primeira metade do Seiscentos. A guerra de sítio das posições estratégicas constituía o privilégio das áreas mais desenvolvidas, como os citados Países Baixos ou a Lombardia, que eram também os pontos quentes do equilíbrio continental. Representando seu mais sofisticado modelo, a guerra de Flandres foi uma guerra pelo controle das praças-fortes ao longo dos eixos fluviais que sulcam a região; e sua arma fundamental: a artilharia e a minagem”. (MELLO, 2007, p. 247). 

O aumento na quantidade de fortalezas e cidades fortificadas levou os exércitos europeus, principalmente em Flandres, França e na Lombardia, a mudarem suas táticas de batalha, variando de acordo com o contexto bélico. Nesse sentido, Parker (1994, p. 12-13) diz que em fins do século XVI começou a surgir duas formas de combate: as escaramuças promovidas por pequenos grupos (esquadrões) para se efetuar assaltos, emboscadas, encontros ocasionais, ataques rápidos, etc; e os cercos, os quais requeriam maior número de envolvidos e uma estratégia mais elaborada, pois os cercos poderiam durar dias, semanas e até meses.

No entanto, não foi apenas isso que mudou, a própria organização das companhias militares também sofreram mudanças, e na vanguarda dessa “revolução militar”, estiveram os próprios holandeses sob o comando de Maurício de Nassau, o qual reformulou a organização da infantaria.

“Maurício alterou a disposição das tropas em combate. Em vez de falanges de 40 ou 50 filas frontais de lanceiros usadas nas guerras do século XVI, colocou os seus homens em 10 filas. A força de choque das suas formações, mais pequenas, provinha mais do poder de fogo do que das cargas dos lanceiros. [...]. O exército holandês aperfeiçoou sobretudo a técnica do fogo de fileira: a primeira linha descarregava simultaneamente os mosquetes sobre o inimigo, depois parava para recarregar as armas enquanto as outras nove linhas iam ocupando o seu lugar, criando assim uma cortina de fogo constante”. (PARKER, 1994, p. 52).

Formação de mosqueteiros espanhóis no século XVII. Acima a formação adotada para a Batalha de Nordlingen (1634). Abaixo, um esquema tático da fila de mosqueteiros e piqueiros. Ilustração de Gerry e Sam Embleton, 2012. Publicado no livro López e López, The Spanish Tercios: 1536-1704, 2012, p. 29.  

Tal “revolução militar” começou ainda no século XVI, mas foi apenas na segunda metade do século XVII que ela se consolidou no sentido de que, a infantaria passou predominantemente a usar armas de fogo, até lá, a presença de piqueiros era recorrente. Por exemplo, as capitanías, formação usada pelos espanhóis na Itália no século XVI, cujo modelo ainda permaneceu em uso até o final do século, era composta por 500 homens, sendo 200 piqueiros, 200 espadachins e 100 arcabuzeiros. Por sua vez, dez capitanías somadas a duas companhias de piqueiros, formavam uma coronélia, totalizando um regimento com cerca de 6 mil homens, dos quais, 10% seriam arcabuzeiros (LÓPEZ; LÓPEZ, 2012, p. 5).

Por mais que no século XVII o uso de armas de fogo tenha crescido em comparação ao seu emprego no século XV, ainda assim, não foi incomum soldados usarem espadas, lanças e punhais.

“No início do século XVII, à metade, grosso modo, dos soldados de infantaria deviam ser fornecidos piques de treze pés (cerca de quatro metros) e couraças; a outros deviam ser fornecidos mosquetes de mecha (com cinco pés – metro e meio – de comprimento) com as respectivas forquetas de apoio (ou arcabuzes, mais curtos e leves), e também recipientes para a pólvora, balas e mechas de combustão lenta; às tropas de cavalaria, uma meia armadura, pistolas e lanças; e a todos os soldados, elmos e espadas”. (PARKER, 1994, p. 48).

A tomada de Breda, Diego de Velázquez, c. 1634-1635. Nota-se a presença de piques e alabardas. 

Tallet (1992, p. 24) aponta que foi a partir do século XVII que começou a se inverter a proporção de soldados munidos com armas de fogo. Até o final do XVI as infantarias europeias ainda eram formadas na sua maioria por falanges de piqueiros, sendo apoiadas por soldados munidos de armas de fogo. No século seguinte os valores se invertem devido ao crescimento das fábricas de armas, e as mudanças nas táticas de batalha, as quais passaram a se usar mais formações de mosqueteiros em detrimento dos piqueiros.

Essa mudança em parte se deu pelo fato de que a cavalaria bastante poderosa no medievo foi na modernidade perdendo sua ação tática devido ao uso de armas de fogo, canhões, paliçadas e trincheiras. Por outro lado, as batalhas campais começaram a diminuir em detrimento de batalhas entre trincheiras e no cerco de praças-fortes. Se antes presava-se pela força bruta do homem sobre o cavalo, agora passou a se prezar pela força bruta do poder explosivo da pólvora, mas com o diferencial de que ao invés de ser um conflito corpo-a-corpo, os soldados se combatiam a distância.

“A maneira quase universal de alcançar a vitória numa batalha medieval consistia em obter a superioridade no corpo-a-corpo. Os vencedores desta confusa troca de golpes a curta distância deveriam perseguir o inimigo batido, mantendo a pressão de forma a provocar a debandada geral do exército adversário. Em termos de opções tácticas, era uma situação algo limitada; com as principais linhas de batalha empenhadas, qualquer movimento de envolvimento era difícil, para não dizer impossível. No final, a vantagem militar cabia ao general que utilizava em último lugar as suas reservas”. (SOUSA, 2013, p. 119).

Logo, se antes falanges eram eficazes contra a cavalaria a qual era a principal força de combate em batalhas campais, com a diminuição de seu uso, em substituição pelas infantarias artilheiras, e a adoção de um conflito a longa distância e estratégico, já não era mais viável manter uma grande quantidade de piqueiros, pois se tornaram alvos fáceis aos artilheiros, embora que seu emprego se manteve como forma de proteger a artilharia do ataque de soldados com espadas.

Por tal motivo, na segunda metade do XVII o número de piqueiros nos exércitos foi diminuindo cada vez mais. Entretanto, mesmo tendo ocorrido essa mudança na configuração das forças armadas europeias, não significa que a cavalaria caiu em desuso; essa ainda continuou a ser usada ao longo do século XVII e até nos séculos seguintes, embora que numa fração bem menor.

“É certo que, nos primeiros decénios do século, a cavalaria representava menos de 10% da maior parte dos exércitos da Europa Ocidental; em 1635, quando a França declarou guerra à Espanha, foram recrutados 132 000 infantes e apenas 12 400 cavaleiros. [...]. Com o aumento das dimensões dos exércitos europeus e com o aumento proporcional da cavalaria, que na segunda metade do século atingiu 20% do total de um exército, os criadores de cavalos passaram a dispor de um mercado florescente”. (PARKER, 1994, p. 48).

Parker (1994, p. 42), assinala que na primeira metade do século XVII, os exércitos europeus, na maioria das vezes sempre levavam um exército com homens em excesso, pois na maioria dos casos, a deserção era o principal motivo que levava a diminuição dos efetivos militares.

“Um dos motivos por que se tentava recrutar mais homens do que os que teoricamente eram necessários era o facto de os novos recrutas depressa se arrependerem de se terem alistado. Sobretudo na primeira metade do século, as deserções, embora comportassem a pena de morte, eram um grave problema para todos os exércitos, em especial durante os prolongados cercos que constituíam o ponto fulcral das operações militares da época barroca. Em 1622, o exército espanhol da Flandres que cercava Bergen-op-Zoom perdeu cerca de 40% dos seus 20 600 soldados, muitos dos quais por deserção. Das muralhas de Bergen, as sentinelas viam os inimigos abandonar furtivamente os seus postos, fingindo que iam buscar lenha ou legumes, afastar-se a pouco e pouco das trincheiras, e fugir”. (PARKER, 1994, p. 42).

“No exército francês, durante a primeira metade do século, sabia-se que, se se queria levar 1200 homens para a frente de batalha, tinha que se recrutar 2000, porque era normal perder-se 40% dos soldados nos primeiros meses, por deserção e doença. Assim, em 1635, primeiro ano de guerra aberta contra a Espanha, decidiu-se recrutar 145 000 homens para se manter na frente uma força efectiva de apenas 69 000”. (PARKER, 1994, p. 43).

“A fortaleza não é um lugar simplesmente de proteção contra um ataque, mas também de defesa ativa, um centro onde os defensores estão protegidos da surpresa ou da superioridade numérica e uma base da qual podem fazer surtidas para manter os predadores à distância e impor controle militar sobre a área por que se interessam”. (KEEGAN, 1995, p. 155).

 “O assalto de infantaria a um bastião, por mais que este tivesse sido danificado, era sempre um negócio desesperado. Uma prática defensiva universal mandava ter à mão materiais – cestas cilíndricas para encher de terra, chamadas de gabiões, postes, trilhos e barricadas de madeira – com os quais fosse possível improvisar uma defesa interna atrás de uma brecha, ao mesmo tempo em que mosqueteiros e canhoneiros de um bastião vizinho podiam sempre atirar sobre grupos de assalto que atravessassem o fosso ou mesmo chegassem à esplanada inclinada do lado de fora”. (KEEGAN, 1995, p. 337).

Cerco de Goenlo, em 9 de novembro de 1606. Nota-se que a cidade além de ser fortificada, contava com três fortes de suporte. A pintura também mostra batalhões de mosqueteiros, grupos de piqueiros e até cavalaria. 

“A guerra de assédio era demorada e trabalhosa porque os meios de trazer fogo suficiente para acossar uma fortaleza com bastião exigiam um enorme esforço de escavação. A fortaleza com bastião era uma construção “científica”, o que significava que seu projeto era feito com base em cálculos matemáticos para minimizar da melhor maneira a área da muralha que o tiro podia atingir. Portanto, o ataque tinha de ser “científico” também. Os engenheiros de assédio logo estabeleceram os princípios. Era preciso cavar uma trincheira paralela a um dos lados do traçado do bastião, onde se pudessem colocar canhões para iniciar o bombardeio. Sob a proteção desse fogo, trincheiras “de aproximação” eram então cavadas adiante, até que uma nova “paralela” mais próxima pudesse ser cavada, para onde eram levados os canhões, a fim de continuar o bombardeio a distância mais curta”. (KEEGAN, 1995, p. 337).

NOTA: Para Geoffrey Parker (1996, p. 21) os principais marcos da “revolução militar” da Idade Moderna foram: a criação e desenvolvimento das fortificações com baluarte; o emprego recorrente das armas de fogo; o desenvolvimento de uma indústria da guerra; diminuição do uso da cavalaria em detrimento de uma infantaria armada com lanças e mosquetes; reformulação na organização das tropas; mudança nas táticas de batalha; surgimento de escolas militares; aumento na quantidade de soldados nos exércitos.

NOTA 2: Não confundir com João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), o qual se tornou governador da Nova Holanda. Maurício de Nassau (1567-1625) foi um proeminente stadholder (líder político e militar) durante a Guerra dos Oitenta Anos.

Referências bibliográficas: 

KEEGAN, John. Uma história da guerra. Tradução de Pedro Soares Maia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no nordeste, 1630-1654. 3. ed. São Paulo: Ed. 34, 2007.

PARKER, Geoffrey. The Military Revolution: military innovation and the rise of the West, 1500-1800. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

PARKER, Geoffrey. O Soldado. In: VILLARI, Rosario (dir.). O homem barroco. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editoria Presença, 1994.

RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. Tradução de Waltensir Dutra. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. 

SOUSA, Luís Filipe Guerreiro Costa e. Escrita e Prática de Guerra em Portugal: 1573-1612. 2013. 844 f. Tese (Doutorado em História dos Descobrimentos e Expansão) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2013.

TALLETT, Frank. War and Society in early modern Europe, 1495-1715. New York/London: Routledge, 1992. (Collection War in context).