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Leandro Vilar

terça-feira, 29 de outubro de 2024

A Biblioteca Nacional do Brasil

Neste 29 de outubro é comemorado no Brasil o Dia Nacional do Livro, em referência ao decreto-real que autorizou a criação da Biblioteca Nacional do Brasil. Assim, situada no bairro da Cinelândia, no centro da cidade do Rio de Janeiro, o belo prédio da Biblioteca Nacional, guarda entre suas paredes, mais de dois séculos de fundação, mas livros e artefatos bem mais antigos. O presente texto contou um pouco da história do surgimento da maior biblioteca brasileira. 

Uma biblioteca transportada

Antes da Família Real Portuguesa se mudar para o Brasil no ano de 1808, quando se estabeleceram no Paço de São Cristóvão no centro do Rio de Janeiro, a colônia brasileira não dispunha de bibliotecas públicas, apenas privadas. Além disso, a impressão de livros, jornais e revistas era controlada na colônia. Assim, a maior parte desses itens era importada de Portugal. 

Após a corte se mudar para o Rio de Janeiro, somente nos anos seguintes decidiu-se trazer a biblioteca da realeza. Dessa forma, foi em 29 de outubro que o príncipe-regente D. João autorizou o transporte da biblioteca portuguesa, em três viagens realizadas entre 1810 e 1811, os 60 mil itens do acervo da Real Biblioteca Portuguesa, na época, foi transportado para o Rio de Janeiro. Tais itens reuniam o acervo de outras bibliotecas como a Biblioteca Pública de Lisboa, a Livraria Real, a Biblioteca do Infantado (ambas chamadas também de Biblioteca d'Ajuda). Vale ressalvar que o acervo original dessa biblioteca era maior, mas parte foi destruído durante o terremoto que assolou Lisboa em 1755, destruindo vários bairros da cidade. Uma parte do prédio da biblioteca desabou, destruindo seu acervo. De qualquer forma, o rei D. José I e o ministro Marquês de Pombal, ordenaram a recuperação da biblioteca real. (SANTOS, 2010). 

O acervo da Real Biblioteca Portuguesa foi temporariamente instalado no andar superior do Hospital Ordem Terceiro do Carmo, sendo a biblioteca aberta oficialmente em 13 de maio de 1811, em celebração ao aniversário de D. João VI. Nesses primeiros anos, a biblioteca era de uso restrito do governo, sendo permitida à consulta e pesquisa apenas por autorização régia a terceiros. A partir de 1814, o rei permitiu o acesso público, lembrando que tal acesso não era permitido a qualquer cidadão. Mulheres e pobres eram vetados, assim como, os escravos. (SANTOS, 2010). 

No ano de 1821, o estatuto da Real Biblioteca Portuguesa foi publicado contendo 32 artigos, ditando acerca de seu funcionamento, acervo, atividades, serviços, organização, princípios, acesso  etc. Inclusive alguns desses artigos são similares aos vistos em bibliotecas atuais, por serem ideias básicas. 

Surge a biblioteca nacional

No ano de 1820 teve início o processo de independência do Brasil, aproveitando-se a crise política em Portugal iniciada pela Revolução Liberal do Porto em 1820, que forçou D. João VI a retornar a Portugal. Com sua partida, o príncipe-regente D. Pedro começou a articular com a aristocracia carioca o projeto de emancipar o Brasil. Isso se desenvolveu ao longo de 1822, originando a Guerra de Independência (1822-1824), somente em 1825, Portugal reconheceu oficialmente a independência brasileira. 

No Tratado do Rio de Janeiro (1825) entre as questões debatidas sobre o acordo de reconhecimento de Portugal a independência do Brasil, estava a questão do que seria feito com a Real Biblioteca Portuguesa. Na ocasião, o imperador D. Pedro I decidiu incluir uma indenização a corte portuguesa para manter a biblioteca no Rio de Janeiro. A proposta foi aceita e a biblioteca foi renomeada para Biblioteca Imperial

Ela permaneceu instalada no prédio do hospital, um local inclusive inadequado para sua manutenção e funções. Porém, o governo decidiu não se preocupar com isso por longos anos. Fato esse, que Souza (2005) comenta que o prédio tinha problemas de infraestrutura como infiltrações e mofo, os funcionários no geral não tinham formação adequada, além de receberem péssimos salários. O atendimento ao público era problemático e até faltava espaço para poder atender a demanda de usuários. Após anos de solicitações dos diretores-gerais, D. Pedro II decidiu comprar um prédio na Rua do Passeio no Largo da Lapa e ordenar a transferência da biblioteca. Isso ocorreu em 5 de agosto de 1858.

Nas décadas seguintes a Biblioteca Imperial ou Biblioteca Nacional como as vezes era referida, seguiu funcionando nesse prédio na Rua do Passeio. Ainda assim, à medida em que o seu acervo crescia devido a doações e compras, além do aumento de usuários regularmente, começou-se a notar a falta de espaço para guardar os livros e demais itens do acervo, assim como, a falta de espaço para atender o público. Entretanto, esses problemas somente foram resolvidos no século XX. 

"A biblioteca só teve um prédio próprio e definitivo em 1910, quando mudou para a Avenida Rio Branco. Segundo Martins (2002) o novo prédio erguido graças aos esforços de alguns de seus diretores, como José Alexandre Teixeira de Melo (mandato de 1895 a 1900) e Manuel Cícero Peregrino da Silva (mandato de 1900 a 1924), foi projetado pelo engenheiro Francisco Marcelino de Sousa Aguiar e construído sob a coordenação dos engenheiros Alberto de Faria e Napoleão Moniz Freire. De um estilo eclético, combinava elementos neoclássicos e art-nouveau, contendo ornamentos de artistas como Visconti, Henrique e Rodolfo Bernardelli, Modesto Brocos e Rodolfo Amoedo". (SANTOS, 2010, p. 55). 

Atual prédio da Biblioteca Nacional, fundado em 1910. 

As obras do prédio da biblioteca iniciaram em 1905, sendo concluídas após cinco anos. Desde então a instituição manteve sua sede no mesmo endereço no bairro da Cinelândia. Apesar que devido ao crescimento do acervo nesse mais de um século, parte dele foi realocado para depósitos e a reserva técnica, no intuito de não superlotar a edificação, assim como, não ter que diminuir a área de sala de estudo. 

Em 1990 o governo federal tornou a biblioteca numa fundação pública vinculada ao Ministério da Cultura, incorporando o Instituto Nacional do Livro (INL), o Escritório de Direitos Autorais (EDA), além de várias agências ligadas com a literatura, o registro de obras literárias e acadêmicas, como também possui escritórios relacionados a programas públicos de incentivo à leitura, ao livro didático etc. Tendo se tornado uma fundação, a biblioteca também expandiu seus serviços, inaugurando no século XXI seu acervo online que inclui livros, revistas, jornais, fotografias, mapas, pinturas etc. A instituição também teve um periódico, assim como, realiza exposições, eventos, concursos literários, entre outras atividades culturais e educacionais. 

NOTA: A primeira biblioteca pública do Brasil foi a Biblioteca Pública da Bahia, funda em 13 de maio de 1811, em homenagem ao rei D. João VI, mas sendo uma iniciativa particular do senhor de engenho Pedro Gomes Ferrão Castelo Branco

NOTA 2: A Revista de História da Biblioteca Nacional (RHBN) funcionou de 2005 a 2017. 

NOTA 3: No ano de 1985 foi criada a Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional (SABIN), uma sociedade civil sem fins lucrativos, que agrega voluntários, filantropos e pessoas interessadas em contribuir nas atividades da biblioteca. A SABIN foi responsável pela publicação da RHBN. Além disso, a sociedade também realiza outros tipos de atividades e eventos. 

Referências bibliográficas: 

SANTOS, Josiel Machado. Bibliotecas no Brasil: um olhar histórico. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, Nova Série, São Paulo, v.6, n.1, p. 50-61, jan./jun. 2010.

SOUZA, Clarice Muhlethaler de. Biblioteca: uma trajetória. Anais do Congresso de Biblioteconomia 3, Rio de Janeiro, 2005. 

Referência online: 

Site da Biblioteca Nacional do Brasil Digital

Fundação Biblioteca Nacional, o passado e o futuro


segunda-feira, 21 de outubro de 2024

O mito de Atlântida

Embora Atlântida seja um mito bastante popular desde o século XIX, no entanto, por séculos esse mito foi desconhecido. Mesmo entre os gregos antigos, não se deu muita atenção a a narrativa desse império marítimo. Na Idade Média, o mito atlante praticamente passou despercebido, vindo a ser resgatado na Idade Moderna por conta das Grandes Navegações, depois entrou em esquecimento, retornando no XIX, impulsionado por escritores, poetas e esotéricos. 

Platão e Atlântida

Tentar identificar a origem de um mito é praticamente impossível na maior parte das vezes, pois são narrativas de origem incerta, advindas da cultura oral, que podem ser bem mais antigas do que se imagina, além de que as versões escritas, eram apenas uma entre outras existentes. No caso de Atlântida, não se sabe quando esse mito surgiu, o relato mais antigo advém dos escritos do filósofo Platão (428-348 a.C), o qual por volta de 360 a.C., escreveu dois diálogos, Timeu e Crítias, os quais apresentavam ideias em paralelo.

Em ambos os livros o político Crítias está presente e fala sobre a Atlântida. No livro de Timeu, Crítias conta um relato que teria ocorrido mais de cem anos antes dele, envolvendo o político ateniense Sólon (638-538 a.C), o qual em viagem pelo sul do Egito, conheceu um sacerdote que lhe falou sobre uma próspera e poderosa civilização muito antiga, a qual não existia mais, que estava situada numa ilha para além dos Pilares de Héracles (Estreito de Gibraltar), a qual dominava territórios mediterrânicos na Europa e África. 

Em seguida, Crítias comenta que o tal sacerdote disse a Sólon que os atlantes perderam a proteção dos deuses, e a ilha foi afundada diante de terremotos e um dilúvio, gerando um mar de lama, o qual tornava a navegação inviável naquela parte do vasto oceano. É preciso salutar que no livro Timeu, o mito de Atlântida é apenas citado duas vezes, a maior parte das informações sobre esse império mítico advém do livro de Crítias. 

Nesta segunda obra, Crítias é protagonista e tem maior espaço de fala, assim, ele fornece com base no que ouviu de seus antepassados que conheceram Sólon, os relatos sobre a gloriosa Atlântida. Nesse livro é informado que Atlântida teria afundado nove mil anos antes da época presente dele, que a ilha foi criada por Poseidon para abrigar alguns de seus filhos, destacando-se Evenor que se casou com Leucipe e teve uma filha chamada Clito. Poseidon se apaixonou pela neta e a tomou como amante, gerando gêmeos, os quais foram os primeiros reis de Atlântida, chamados Atlas e Gadiro

Atlas por ter nascido primeiro, recebeu as melhores terras e deu nome aquela ilha, que ficou conhecida como Atlântida ("ilha de Atlas" ou "terra de Atlas"). Por sua vez, os domínios de Gadiro se estenderam para a Europa, compreendendo parte da Península Ibérica. Mais tarde os irmãos tiveram filhos gêmeos e assim por diante, através de mais três gerações, que resultou na condição do império atlante ser dividido em dez reinos

Ilustração representando como seria a capital de Atlântida, segundo a descrição de Platão.

O relato também diz que Poseidon criou a capital para Clito, fazendo a ser cercada por canais circulares e muralhas. Ao centro na acrópole, foi construído um grande templo em sua homenagem. O relato de Crítias segue fazendo descrições sobre a cidade e alguns distritos, sempre destacando que tudo era imponente e belo, além de que a ilha de Atlântida era muito fértil, não havendo falta de alimentos. Soma-se a condição do comércio que se fazia com a Europa e a África. 

No entanto, é informado que Atenas chegou a entrar em guerra contra Atlântida, embora Platão não tenha dado detalhes sobre isso em seus livros, mas sabe-se que os atenienses conseguiram resistir as batalhas e depois disso Atlântida após séculos de prosperidade, foi entrando em declínio devido a corrupção e degradação dos costumes até que os deuses a abandonaram e Poseidon a afundou.

A história de Atlântida narrada por Platão através das descrições de Crítias, é considerado por filósofos, historiadores e arqueólogos como um mito apenas, não o relato histórico ou pseudo-histórico de uma civilização antiga. Alguns estudiosos da obra de Platão consideram Atlântida como uma alegoria para abordar temas políticos que Platão abordou em Timeu e Crítias, mostrando que mesmo grandes impérios poderiam chegar à ruína se a corrupção e a perda dos valores e da moral não fossem combatidos. Além disso, o fato de Atenas ter conseguido sobreviver as investidas bélicas dos atlantes, também era uma forma de exaltar a cidade-estado, mesmo que ela nem existisse nove mil anos antes da época de Platão. 

Atlântida na Antiguidade: mito ou fato? 

Aristóteles (384-322 a.C), o mais famoso dos discípulos de Platão, considerava que Atlântida era apenas uma alegoria política para fazer ensinamentos. Inclusive ele sugeriu que seu mestre teria inventado toda aquela narrativa. Por sua vez, o filósofo Crantor (c. 335 - c. 275 a.C.) considerava que Atlântida fosse realmente real. Ele redigiu alguns comentários das obras de Platão, e supostamente teria viajado também ao Egito para averiguar as informações transmitidas a Crítias. Entretanto, o trabalho de Crantor foi perdido, havendo apenas comentários sobre sua obra, logo, não se sabe se ele realmente viajou ao Egito e confirmou as informações expostas por Platão em seus livros. 

O geógrafo, filósofo e historiador Estrabão (64/63 a.C - 24 d.C) em seu livro Geografia, volume II, capítulo 3, fez menções ao trabalho do geógrafo e filósofo Posidônio (c. 135 - c. 51 a.C), citando o estudo dele sobre regiões que afundaram no mar e forçado a migração de alguns povos como os Cimbrianos. No caso, Estrabão citou Atlântida como um exemplo, mas não confirma se a tal grande ilha fosse real. Segundo o relato de Estrabão, fica subentendido que ele e Posidônio possuíam dúvidas quanto a veracidade da narrativa apresentada por Platão, podendo ser tratar de um mito político como sugerido três séculos antes por Aristóteles. 

O filósofo Fílon de Alexandria (c. 15 a.C - c. 50 d.C) comentou sobre Atlântida no livro A Eternidade do Mundo, embora não fique claro se ele considerava tal local real ou não. Os filósofos cristãos Tertuliano, Arnóbio e Cosme Indicopleustes, sugeriram que Atlântida poderia ter sido real, embora eles não tenham detalhado isso. Por sua vez, Cosme associou Atlântida como uma localidade que teria sumido durante o Dilúvio bíblico. Nesse ponto, os filósofos cristãos apresentaram algumas ligeiras interpretações ao mito de Atlântida, fundindo-o ao referencial bíblico. Todavia, após Cosme que escreveu seu livro Topografia Cristã no século VI d.C., já no começo da Idade Média, não há outros relatos medievais importantes sobre o mito atlante. Essa antiga ilha praticamente foi esquecida pelos povos europeus medievais. 

A redescoberta de Atlântida na Idade Moderna

Embora alguns filósofos cristãos e muçulmanos tenham lido as obras de Platão, eles não deram atenção ao mito de Atlântida, o qual foi esquecido por mil anos. Somente na Idade Moderna, com o advento das Grandes Navegações, o Renascimento, a Revolução Científica e o Iluminismo, é que alguns filósofos e eruditos voltaram a se interessar por Atlântida. 

O político, filósofo, advogado e diplomata Tomás Moro (1478-1535) escreveu o livro Utopia (1516), inspirado no mito atlante, mas diferente de Atlântida que era uma monarquia ostentadora, a ilha de Utopia era uma república justa, cordial, próspera, pacífica etc. Inspirado no livro A República de Platão, Moro pegou algumas ideias propostas pelo filósofo grego acerca da "república ideal", aplicando-a em Utopia, que foi inspirado na ideia de Atlântida, como sendo um país insular, próspero e culturalmente mais civilizado e desenvolvido que o restante do mundo. 

Outro autor que também se inspirou no mito atlante foi o filósofo, advogado e político inglês Francis Bacon (1561-1626), considerado o "Pai do Empirismo". O trabalho de Bacon abordou vários temas como ciência, metafísica, método científico, ética, moral, política, religião etc. Assim, ele escreveu um romance alegórico chamado Nova Atlântida (1626), cuja obra aborda um país insular fictício chamado Bensalém, era governado por um rei filósofo (aqui uma ideia baseada nos trabalhos de Platão). Neste país situado no Oceano Pacífico, havia uma universidade chamada "Casa de Salomão", a qual representava a idealização de Bacon de como as universidades europeias deveriam ser. Além disso, o povo de Bensalém era retratado de forma utópica como Moro e Platão fizeram anteriormente. 

Frontispício do livro Nova Atlântida (1626) de Francis Bacon. 

Porém, Atlântida não inspirou apenas obras filosóficas, alguns estudiosos após a "descoberta" das Américas, passaram a cogitar que Atlântida poderia se referir as ilhas caribenhas ou as Américas. O historiador espanhol Francisco López Gómora (1511-1566) considerava que Atlântida teria existido e ficaria em alguma localidade nas Américas. Embora ele não entrou em detalhes a respeito. O cartógrafo e geógrafo flamengo Abraham Ortelius (1527-1598) propôs os fundamentos do que viria a ser a teoria da deriva continental, somente comprovada no século XX, a qual demonstra que os continentes estão se movendo lentamente. Para Ortelius num passado longínquo algumas localidades do planeta estariam na superfície e podem ter submergido. Assim, ele não descartava que Atlântida talvez pudesse ter existido. 

Já o jesuíta e erudito Athanasius Kircher (1602-1680), fez um mapa situando Atlântida como uma ilha localizada entre a Europa e América do Norte. Esse mapa foi publicado no livro Mundus Subterraneus (1664), em que Kircher inspirado em Ortelius, sugeriu que mudanças no nível do mar, assim como, ondas gigantes causadas por diferentes cataclismos poderiam ter submergido ilhas ou zonas costeiras. Dessa forma, ele considerava que Atlântida pudesse ter existido. 

A grande ilha de Atlântida num mapa publicado no livro Mundus Subterraneus (1664). O mapa está invertido, com o Norte apontado para baixo. 

No século XVIII com o advento do Iluminismo, os filósofos cada vez mais centrados na valorização da razão e da lógica, começaram a renegar os mitos como sendo narrativas apenas fantásticas. Embora alguns deles ainda fizessem uso de mitologias para escreverem romances e novelas com críticas sociais, como o caso de Voltaire. De qualquer forma, Atlântida perdeu espaço nesse período, somente no século seguinte é que ela voltou a despertar a atenção de novos estudiosos. 

Atlântida entre a Ciência e a Pseudociência no século XIX

No século XIX com o advento da popularização das Ciências, assim como, o surgimento da Arqueologia, da Antropologia, da História científica e da Sociologia, alguns estudiosos retomaram o antigo debate se Atlântida seria apenas um mito ou realmente haveria alguma verdade por trás daquela narrativa. 

O pastor, arqueólogo e etnógrafo Charles Étienne Brasseur (1814-1874), era estudioso das civilizações mesoamericanas. Após vinte anos de missões na América Central, Brasseur desenvolveu a teoria de que as civilizações Maia e Asteca poderiam ter inspirado a Atlântida relatada por Platão. A teoria inclusive inspirou outros estudiosos e curiosos no século XIX e XX, pois Brasseur argumentava que esses povos possuíam conhecimentos de engenharia, matemática e astronomia avançados, equiparáveis a de povos europeus, africanos e asiáticos. 

Apesar de ser uma teoria bastante interessante, Brasseur nunca conseguiu apresentar argumentos fortes para explicar como os antigos egípcios e gregos teriam tomado conhecimento sobre os Maias? Vale ressalvar que os Maias e os Astecas não eram povos experientes na navegação marítima, logo, a ideia de que eles poderiam ter cruzado o Atlântico e chegado na Europa e na África, não se sustenta. 

Influenciado por Brasseur, o arqueólogo Edward Herbert Thompson (1857-1935) publicou o artigo científico Atlantis Not a Myth (1879). Baseado em seus estudos sobre os Maias e outros povos da América Central e do Norte, ele defendia que tais civilizações ameríndias teriam inspirado o mito atlante, por apresentarem culturas avançadas e prósperas que se encaixavam na descrição de Platão. O problema é que novamente seus argumentos careciam de evidências que comprovassem que tais povos fossem conhecidos na Europa e na África desde a Antiguidade. 

Um terceiro nome que se interessou por essa teoria foi o antiquarista e fotógrafo Augustus Le Plongeon (1825-1908), o qual viajou por alguns anos pelo México e o Peru, encantando-se com as ruínas dos Maias, Astecas e Incas. Assim, na década de 1880, influenciado pelas teorias de que as Américas seriam a Atlântida, Le Plongeon começou a publicar alguns trabalhos como Vestiges of the Mayas (1881), Sacred Mysteries Among the Mayas and the Quiches: 11,500 years ago (1886) e o artigo Queen Móo and the Egypt Sphinx (1896). 

Nesses estudos ele defendia (sem evidências científicas) de que povos ameríndios como os Maias, os Astecas e os Incas teriam inspirado o mito de Atlântida, além de que essas civilizações seriam muito mais antigas do que se supunha, porém, suas ideias mudaram com o artigo de 1896, onde ele passou a falar de um continente perdido situado no Oceano Pacífico chamado de "Terra de Mu". Para Le Plongeon, o continente de Mu teria sido a fonte de inspiração para Atlântida, inclusive seu povo migrou para colonizar as Américas num passado longínquo e até mesmo teria chegado aos outros continentes. 

A teoria de Mu inspirou escritores como James Churchward a escrever uma série de livros sobre o continente de Mu entre as décadas de 1920 e 1930 e mais tarde L. Sprague de Camp com seu livro Lost Continents (1954). Cuja obra abordava Atlântida, Mu, Lemúria e outras localidades míticas, mas tidas por ele como tendo sido reais. 

Os estudos de Brasseur, Thompson e Le Plongeon ajudaram a desenvolver o chamado Maianismo, um conjunto de teorias ocultistas, esotéricas e pseudocientíficas baseadas na cultura dos Maias, sua religião e mitologia, que acaba agregando teorias da conspiração, o mito de Atlântida, a teoria do difusionismo, profecias ocultas e até mesmo contatos com alienígenas. 

No entanto, o livro sobre Atlântida de mais sucesso no XIX foi Atlantis: The Antediluvian World (1882) do político e escritor Ignatius Donnelly (1831-1901). Publicado com pretensões de ser um trabalho científico, o livro de Donnelly na prática é um conjunto de especulações promovidas pelas teorias pseudocientíficas em voga no XIX. Mesclando várias ideias e mitologias, ele propôs que Atlântida não seriam as Américas, mas um continente real que afundou devido a um grande cataclismo ocorrido a mais de doze mil anos atrás, que teria inspirado o mito bíblico do Dilúvio

Capa do livro Atlantis: The Antediluvian World (1882). 

Donnelly também apontava que os arquipélagos dos Açores e da Madeira, ambos territórios portugueses, seriam remanescentes do continente de Atlântida, além disso, ele defendia que os atlantes possuíram um império marítimo, empreendendo viagens através do Atlântico, do Mediterrâneo e até pelo Índico, possuindo negócios que iam do interior do Rio Amazonas até a Índia. Sua teoria mirabolante ia mais além, apontando que civilizações como os egípcios, os gregos, os persas, os maias e os incas, eram descendentes dos atlantes, os quais lhe legaram uma série de conhecimentos. 

Donnelly também salientava que construções megalíticas encontradas pela Europa, como Stonehenge, seria legado das colônias de Atlântida. Várias ideias desse livro foram retomadas por ele e estendidas em seu livro Ragnarok: The Age of Fire and Gravel (1883), em que ele teorizou que o mito nórdico do Ragnarök estaria conectado com Atlântida e seria uma referência a um gigantesco cometa que passou perto da Terra, criando um grande cataclismo mundial. 

Atlântida e o Ocultismo

Ainda nas últimas décadas do século XIX, alguns autores começaram a abordar o mito atlante por um viés do ocultismo (conjunto de saberes associados a preceitos sobrenaturais, mágicos, misteriosos e secretos). A mística e escritora Helena Blavastky (1831-1891), fundadora da Teosofia em 1875, uma sociedade de mistérios que reúne várias doutrinas filosóficas, religiosas, esotéricas e ocultistas. Assim, Blavastky influenciada pela popularidade da obra de Ignatius Donnelly escreveu o livro The Secret Doctrine (1888), dividido em dois volumes. No segundo volume, em alguns de seus capítulos, a autora defendia que os Atlantes teriam sido a "quarta etapa" da evolução humana, tendo existidos entre 1 milhão e 900 mil anos atrás, não a 9 mil anos como Platão havia dito. 

Capa de The Secret Doctrine (1888), o primeiro livro a popularizar as teorias ocultistas sobre Atlântida. 

Influenciada pelas teorias do racismo científico vigentes na época, Blavastky desenvolveu uma teoria mirabolante sobre raças humanas e semi-humanas oriundas de continentes perdidos como a Lemúria e Atlântida, as quais teriam se miscigenados com raças de outros continentes, resultando em indivíduos degenerados e subdesenvolvidos. Na percepção da autora, os atlantes erraram em se misturar com raças inferiores, o que gerou a decadência de sua sociedade e cultura. Por outro lado, ela também enfatizava que os atlantes possuíram saberes científicos e místicos hoje desconhecidos para nós.

As ideias de Blavastky eram compartilhadas e apoiadas por outros teosofistas, ocultistas e esotéricos da época como William Scott-Elliot, autor dos livros The Story of the Atlantis (1896) e The Lost Lemuria (1904); e Rudolf Steiner que escreveu Atlantis and Lemuria (1911). As três obras foram produzidas por autores ocultistas que compartilhavam das ideias de Blavastky sobre a evolução huamana, existência de raças humanas, que os atlantes legaram saberes para vários povos do mundo, que eles formaram um império marítimo etc. 

As ideias desses autores influenciaram outras pessoas mesmo que sem ligação com a Teosofia, mas que se interessavam pelo ocultismo, o esotérico, os mistérios antigos, a moda dos estudos de civilizações perdidas e a teoria difusionista (a qual defende que uma cultura primordial difundiu saberes sociais, culturais e tecnológicos para vários povos do mundo). 

Assim, essas ideias de que os Atlantes teriam sido uma "raça superior" passaram a interessar alguns ocultistas alemães, os quais viram no Nazismo terreno fértil para difundir tais crenças mirabolantes. Exemplo disso é o livro The Myth of Twenty Century (1930) de Alfred Rosenberg, um oficial nazista. Nessa obra ele escreveu que a raça ariana, a qual os nazistas diziam serem os descendentes, ela, por sua vez, seria descendente dos Atlantes, os quais há milhares de anos, alguns deles migraram para a Germânia e a Escandinávia, originando os germânicos e os nórdicos. Apesar de ser uma teoria sem fundamento algum, o governo nazista chegou a empreender pesquisas para provar as origens da raça ariana e até dos atlantes. Vale ressalvar que havia sociedades ocultistas dentro do Partido Nazista.

Médiuns, videntes e espíritas também aderiram as narrativas ocultistas relacionadas com Atlântida. O suposto vidente Edgar Cayce (1877-1945), ficou famoso por dar entrevistas dizendo que Atlântida foi real e marcou uma fase da evolução humana em aspectos materiais e espirituais há milhares de anos. O trabalho de Cayce influenciou espíritas europeus e brasileiros a relatarem que Atlântida não teria sido um mito, mas uma realidade concreta mesmo. Fato esse, que ainda hoje, encontramos alguns livros espíritas e publicações na internet afirmando isso. 

Atlântida se torna um fenômeno cultural

Nos séculos XIX e XX o mito de Atlântida vai inspirar uma diversidade de escritores, poetas, roteiristas, desenhistas, produtos de jogos e filmes, cada um a sua maneira criaram suas próprias versões do mito atlante. Além de que alguns artistas apenas citaram Atlântida brevemente, enquanto outros procuraram construir toda uma franquia sobre esse mito. 

O famoso escritor de livros de aventura e ficção científica Júlio Verne (1828-1905) menciona Atlântida em seu livro 20.000 Léguas Submarinas (1870), em que o submarino do Nautilus passa ao largo das ruínas submersas da cidade. A escritora Elizabeth Birkaimer escreveu um romance intitulado Poseidon Paradise: the Romance of Atlantis (1892), mais tarde o escritor Cutcliffe Hyne redigiu The Lost Continent: The Story of Atlantis (1899). Neste caso, o livro de Hyne inspirou vários autores nas décadas seguintes para escreverem sobre o mito Atlante. 

Atlântida submersa em ilustração para o livro 20 mil léguas submarinas.

Nos Estados Unidos entre as décadas de 1900 e 1940 se popularizaram as pulp fiction, revistas que publicavam contos de fantasia, ficção científica, terror, romance, aventura e ação, estilo que se espalhou para outros países como Inglaterra. Alguns autores escreveram contos com referências a Atlântida como The Scarlet Empire (1906) de David Maclean ParryL'Atlantide (1919) de Pierre BenoitO Templo (1920) de H. P. Lovecraft, The Last Man of Atlantis (1926) de Alexander Beliaev, The Shadow Kingdom (1929) de Robert E. Howard, The Maracot Deep (1929) de Artur Conan Doyle (autor de Sherlock Holmes). 

Desses contos citados o que mais se destacou foi o trabalho de Robert E. Howard, que originou a franquia de Kull de Atlântida, um rei exilado que vive várias aventuras num mundo antigo, fantástico e violento. As histórias de Kull inspiraram Howard a criar outro personagem, chamado Conan, o Bárbaro, que ficou mundialmente famoso. As narrativas sobre Kull renderam treze contos, a maioria publicados postumamente. O personagem ganhou entre os anos 1970 e 1980 uma série de quadrinhos pela Marvel e um filme em 1997. 

Por essa época outros autores também citaram Atlântida em alguns de seus romances como The Story of the Amulet (1906) de Edith Nesbit, O Retorno de Tarzan (1913) de Edgar Burroughs Rice, em cujo romance Tarzan visita a cidade perdida de Opar, uma colônia atlante. They Found Atlantis (1936) de Dennis Wheatley. Alguns escritos renomados de fantasia como J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis também fizeram breves referências a Atlântida. 

Por sua vez, no final da década de 1930 e começo da 1941, o mito de Atlântida começou a despontar nas histórias em quadrinhos. Na Marvel Comics, o príncipe Namor (1939), é o herdeiro do trono de Atlântida, a qual é retratada como uma cidade no fundo do mar, com tecnologia mais avançada e habitada por uma outra espécie humana, a qual consegue respirar debaixo da água e possui habilidades físicas sobre-humanas. Tais características foram copiadas pela DC Comics, na criação do personagem do Aquaman (1941), o qual é o rei de Atlântida. 

Namor e Aquaman são governantes de Atlântida nos quadrinhos da Marvel e DC.

No livro The Dancer of Atlantis (1971) o escritor Poul Anderson, quis dar uma versão mais histórica a Atlântida, tomando como referência a teoria de que ela seria uma referência a Civilização Minoana que governou a partir da ilha de Creta. Já a escritora Marion Zimmer Bradley, autora das Brumas de Avalon, série literária que reimagina a Lenda do Rei Artur pelo ponto de vista das personagens femininas, escreveu o livro The Fall of Atlantis (1987), mais tarde em parceria com a escritora Diana L. Paxson, outras histórias mostrando atlantes que sobreviveram ao cataclismo da sua terra natal e migraram para a Bretanha, foram escritas. Por sua vez, em Atlantis (2005) de David Gibbons, o autor imaginou que a mítica ilha estaria situada no Mar Negro, tendo submergido devido a mudanças no nível dos mares. 

Mas para além da literatura e dos quadrinhos, Atlântida também influenciou produções audiovisuais diversas. O filme mais antigo sobre o tema é L'Atlante (1921) baseado no conto de David Maclean Parry. Depois disso tivemos outras produções esporádicas sobre Atlântida como Undersea Kingdom (1936), Siren of Atlantis (1949), Atlantis, The Lost Continent (1961), Hercules and the Conquest of Atlantis (1961), Warlords of Atlantis (1978). No geral a maior parte dos filmes sobre Atlântida são desconhecidos e produções que não fizeram sucesso. No entanto, a mais famosa se trata de um desenho animado da Walt Disney, intitulado Atlantis: O Reino Perdido (2001). 

Cartaz do filme.

O filme mostra uma expedição em 1914, a procura da mítica ilha. Nessa versão, Atlântida é retratada como uma cidade oculta no fundo do mar, possuindo tecnologia avançada que utiliza misteriosos cristais como fonte de energia. O filme ganhou um jogo em 2001 e uma continuação intitulada Atlantis: O Retorno de Milo (2003), embora que sua narrativa não foque mais em Atlântida. Recentemente tivemos o retorno de Atlântida em filmes blockbusters como Aquaman (2018), Godzilla II: O Rei dos Monstros (2019), Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (2022) e Aquaman 2: O Reino Perdido (2023)

Mas além de inspirar filmes e desenhos, Atlântida também foi tema de seriados em live-action ou animados. Temos episódios de séries como Doctor Who, Hercules: The Legendary Journeys, Jackie Chan Adventures, Transformers, Tartarugas Ninjas, Star Trek, StargateBob Esponja, Liga da Justiça etc. 

A mítica ilha também inspirou várias músicas e alguns jogos de videogame como: a franquia de jogos de computador Atlantis (1997-2006), o jogo point-and-click Indiana Jones and Fate of Atlantis (1992), em que o famoso arqueólogo tenta desvendar a localização de Atlântida, a qual é procurada pelos Nazistas. O jogo Tomb Raider (1996), o qual inaugurou a famosa franquia de ação-aventura com a arqueóloga e aventureira Lara Croft, nesse título ela procura pelas ruínas de Atlântida. O jogo ganhou um remake intitulado Tomb Raider: Anniversary (2007). Em Age of Mythology (2002) a história começa em Atlântida. O jogo God of War: Ghost of Sparta (2010), Kratos viaja até Atlântida para encontrar informações sobre seu irmão e sua mãe, que estão desaparecidos. Durante sua jornada pela ilha, ocorrerá os fatores que levarão a submersão dela. Em Assassin's Creed: Odyssey (2018) temos uma DLC intitulada O Destino de Atlântida, que nos permite visitar essa ilha. 


Capa do jogo. 

Possíveis localizações de Atlântida

Basicamente existem quatro teorias sobre a localização de Atlântida. A primeira teoria considera que se tratava de uma ilha situada no Oceano Atlântico, a algumas centenas de quilômetros da costa da Europa e da África. No mapa de Kircher datado de 1664, o autor considera essa teoria, tendo representado Atlântida como uma ilha situada entre a o Novo Mundo e o Velho Mundo. Por sua vez, no popular livro de Ignatius Donnelly, o autor também considerava que Atlântida estaria situada nessa parte do oceano, sendo as ilhas dos Açores e da Madeira, remanescentes de seu território. Além dele, outros autores como Blavastky, Scott-Elliot, Steiner, Churchward e L. Sprague de Camp, foram alguns também que defendiam Atlântida como sendo uma grande ilha ou pequeno continente. 

A segunda teoria considera que Atlântida jamais afundou, tampouco seria uma ilha ao oeste do Estreito de Gibraltar, mas na verdade se referiria a alguma localização das Américas. Essa foi uma teoria bastante popular ao longo do século XIX, defendida por Brasseur, Thompson, Le Plongeon, entre outros.

A terceira teoria sugere que Atlântida não teria sido real e nem faria referência a povos ameríndios, mas sim a povos europeus que habitariam o Mediterrâneo e o Mar Negro. Nesse sentido, arqueólogos e historiadores sugerem que a Civilização Minoica que existiu na ilha de Creta entre 3100-1100 a.C., possa ter inspirado o mito de Atlântida. Inclusive alguns desses estudiosos apontam a erupção ocorrida na ilha grega de Thera, cujo vulcão fez afundar parte do território da ilha, incluindo sua cidade. 

Além de Creta e Thera, outras ilhas mediterrânicas como Malta, Sardenha e Chipre foram cotadas como candidatas para o mito de Atlântida. Já alguns estudiosos apontam a costa da Turquia e o Mar Negro como fonte de inspiração desse mito, já que hoje sabe-se que algumas regiões de sua costa foram submergidas. 

Possíveis localizações de Atlântida no Mediterrâneo. 

A quarta teoria aponta que Atlântida poderia estar em outras localidades do mundo. Entre as hipóteses temos a costa atlântica do Marrocos e da Mauritânia, as ilhas Canárias, o arquipélago do Cabo Verde, a região de Doggerland que teria afundado por volta de 8 mil anos atrás, estando situada entre a Inglaterra e a Alemanha; o norte da Espanha, a Escandinávia, as ilhas Bermudas, o sul da Índia, a Indonésia e até mesmo a Antártida

Nota-se que por tais teorias, todas consideram que Atlântida ou teria existido ou teria sido baseada em algum lugar real. Porém, existem os estudiosos que consideram que Atlântida na verdade não seja baseado em nenhuma localidade real, e possívelmente até mesmo uma narrativa criada por Platão, não um antigo mito que ele ouviu em algum lugar e decidiu escrever a respeito. 

Considerações finais

Observa-se que o grande interesse por Atlântida é algo iniciado no século XIX, propriamente falando. Na Antiguidade Atlântida foi alvo de poucos comentários de alguns filósofos, em que alguns a consideraram uma alegoria política, enquanto outros acreditavam que fosse um lugar real. Na Idade Média o mito atlante foi ignorado. Na Idade Moderna, alguns estudiosos voltaram a se interessar pelo assunto e especular que essa ilha poderia ter existido. 

Finalmente chegando ao XIX, começamos a delinear várias teorias sobre Atlântida, ora cogitando-se que ela teria existido, sendo uma referência a povos americanos ou uma ilha perdida no Atlântico mesmo. Por outro lado, enquanto estudiosos e curiosos publicavam suas teorias mirabolantes a respeito de tentar comprovarem a origem do mito de Atlântida ou identificar sua localização, foi no XIX que surgiu também as teorias conectando os atlantes com o ocultismo e o esoterismo.

Enquanto esses livros pseudocientíficos faziam sucesso entre as décadas de 1880 e 1940, vários escritores aproveitaram para explorar a popularidade do tema, sempre adotando um posicionamento de que Atlântida era apenas um mito, retratando-a de diferentes formas fantásticas em suas obras. No entanto, a ideia de Atlântida como uma civilização superdesenvolvida é algo que começou a se delinear nas histórias em quadrinhos, influenciadas pela popularização da ficção científica da época. Dessa forma, em hqs da Marvel e da DC começamos a encontrar desenhos de Atlântida como uma cidade com aspecto futurista, possuindo veículos e até robôs (autômatos). Ideias essas aproveitadas em outras produções. 

Por sua vez, na segunda metade do século XX o interesse por Atlântida começou a decair. Os arqueólogos e historiadores estavam cada vez mais convencidos de que se tratava de um mito sem respaldo a realidade, embora escavações pelo Mediterrâneo levaram ao surgimento da teoria de que Atlântida poderia referir-se a alguma localidade daquele mar. Por sua vez, durante a década de 1970 com o movimento religioso e esotérico da Nova Era, ocultistas voltaram a valorizar Atlântida. 

Assim, percebe-se que o mito de Atlântida foi ganhando várias camadas e reinterpretações ao longo de duzentos anos, sendo encarado como lugar real, berço de uma raça perdida, civilização avançada, lugar de mistérios antigos e saberes perdidos; terra visitada por extraterrestres; ou simplesmente um mito que ganhou popularidade mundialmente, influenciando vários artistas. 

NOTA: O continente da Lemúria foi uma teoria proposta em 1864 pelo zoólogo Philip Sclater, para tentar compreender porque fósseis de lêmures, animais nativos apenas de Madagascar, foram achados na Índia. Assim, ele propôs que teria havido um continente no Índico, chamando-o de Lemúria "Terra dos Lêmures". Porém, sua ideia foi tomada por outros autores, os quais reformularam ela, tornando Lemúria a Atlântida do Oceano Índico. Todavia, hoje sabe-se que a Índia fazia parte da África, tendo se desprendido dessa há milhões de anos e colidido com a Ásia. 

NOTA 2: No jogo Bioshock (2007), a cidade submarina de Rapture, é inspirada em Atlântida, como sendo uma utopia no fundo do mar. 

NOTA 3: Atlântida também aparece na franquia literária Percy Jackson

NOTA 4: Na série literária A Saga de Arzen, os Grandes Mestres possuem pirâmides de cristal, as quais foram feitas em Atlântida. 

Fonte:

PLATÃO. Timeu-Crítias. Tradução do grego, introdução e notas de Rodolfo Lopes. Coimbra: ECH, 2011. 

Referências bibliográficas:

CASTLEDEN, Rodney. Atlantis Destroyed. London, Routledge, 2001. 

FORSTYH, P. Y. Atlantis: The Making of Myth. Montreal, McGill-Queen's University Press, 1980.

JORDAN, P. The Atlantis Syndrome. Stroud, Sutton Publishing, 1994. 

RAMAGE, Edward S. (ed). Atlantis: Fact or Fiction?. Bloomington, Indiana University Press,1978.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

A controvérsia da Hipótese Siluriana

A chamada Hipótese Siluriana foi proposta pelo astrofísico Adam Frank e o climatologista Gavin Schmidt no ano de 2018, através do artigo científico intitulado The Silurian hypothesis: would it be possible to detect an industrial civilization in the geological record?, publicado na revista International Journal of Astrobiology

A hipótese dos dois sugere com base em estranhos índices climatológicos detectados num período de 55 milhões de anos atrás durante a transição do Paleoceno e o Eoceno, época que ocorre dez milhões de anos depois da extinção dos dinossauros, em que nesse período identificou-se com base em vestígios geológicos um aumento da temperatura incomum no planeta. Para Frank e Schmidt (2018), o fator de elevação de temperatura que foi observado poderia ser resultado de um aquecimento global gerado por gases poluentes. Mas ao invés de considerar que tais gases poderiam ser fruto de erupções vulcânicas, Schmidt questionou a Frank se não haveria outra explicação para isso. E se teria havido uma civilização avançada igual a nossa ou até mais sofisticada, a qual poluiu o planeta há 55 milhões de anos, porém, por fatores desconhecidos ela entrou em declínio e desapareceu da História? 

Ilustração representando a Hipótese Siluriana. 

Apesar de interessante e polêmica a hipótese de Frank e Schmidt segue inconclusiva. No artigo deles, os autores apresentam alguns dados geológicos e climatológicos que atestam mudanças climáticas no Paleoceno e Eoceno, porém, como apontado por cientistas que criticaram o trabalho dos dois, tais dados não confirmam que essa mudança de temperatura global seria resultado de poluição industrial. 

Os dois autores também sugeriram que encontrar evidências materiais daquela época seria impossível, porque nenhuma estrutura construída resistiria por milhões de anos. Além de que o lixo resultante desse antiga civilização já teria se deteriorado por completo. Apesar disso a Hipótese Siluriana possui uma série de problemas, os quais alguns serão comentados aqui de forma breve, para demonstrar a falta de argumento dessa hipótese. 

Onde estão os fósseis?

Segundo Frank e Schmidt nenhuma estrutura conhecida poderia resistir milhões de anos, porém, se houve uma civilização técnico-industrial tão avançada como eles sugeriram, significa que haveria milhões ou bilhões de indivíduos dessa espécie no planeta. Mas onde estão os fósseis desses seres inteligentes? Lembrando que fósseis de dinossauros e outras criaturas datados de mais de 200 milhões de anos foram encontrados.

Tais seres precisariam construir cemitérios, a não ser que todos fossem cremados, então não restariam vestígios mortuários. Porém, se cemitérios foram feitos, onde estão eles? Escavações foram desenvolvidas em várias partes do planeta, mas nenhum esqueleto dessa suposta espécie perdida foi achado. 

Recursos minerais

Se houve uma civilização avançada há 55 milhões de anos, para isso ela precisaria de minerais dos mais diversos tipos, inclusive até de petróleo também. Porém, tais fontes de matéria-prima não são renováveis. Florestas que poderiam ter sido desmatadas, facilmente em séculos se recuperariam, mas rochas, metais e petróleo, isso não se produz novamente. 

Minas e pedreiras que fossem abertas deixariam marcas na paisagem, ainda mais a depender do tamanho delas. Pode-se até se alegar que dependendo das minas a céu aberto, elas poderiam ser soterradas, cobertas por vegetação ou inundadas, se tornando lagos. Isso é possível, porém, as minas subterrâneas se não desabassem por conta de terremotos, se manteriam intactas como cavernas que existem a milhões de anos atrás. Entretanto, essas minas apresentariam sinais de extração de minérios e rochas, mas nada disso foi encontrado. 

Outro aspecto a ser comentado é que se tais recursos não são renováveis, como conseguimos encontrar tanto ouro, prata, ferro, estanho, cobre, mármore, granito, petróleo etc? Afinal, uma civilização industrial que tivesse pelo menos o mesmo nível que a nossa, teria consumido muito desses recursos durante os séculos ou milênios que existiu. E caso isso tivesse acontecido, essas fontes de matéria-prima estariam vazias para nossa espécie. 

Presença alienígena

Alguns entusiastas da Hipótese Siluriana sugerem que a tal raça avançada poderia ser extraterrestre e passado apenas algumas décadas ou séculos no planeta Terra, por conta disso, os vestígios seriam mínimos. Mesmo que adentremos a uma teoria da conspiração de que nenhum extraterrestre que morreu tenha sido enterrado na Terra, no entanto, essa raça alienígena precisaria de recursos, e se extraíssem matéria-prima de origem mineral, eles teriam deixados marcas. 

Isso é interessante, pois teóricos dos alienígenas do passado como Zecharia Sitchin (1920-2010) e Eric von Däniken chegaram a dizer que extraterrestres vieram coletar diferentes tipos de minerais na Terra. Sitchin foi até categórico em falar da extração de ouro na África, realizada há centenas de milhares de anos ou até mais antigo do que isso. Mesmo que tais minas tivessem sido abertas, onde estão os vestígios delas? 

A civilização perdida poderia ser humana?

Outros entusiastas da Hipótese Siluriana defendem que ao invés de ter havido uma civilização que existiu há 55 milhões de anos, ela poderia ser bem mais recente. Hoje sabe-se que a espécie humana teria surgido por volta de 300 mil anos atrás, porém, sinais de construção conhecida mais antiga remonta ao templo de Göbekli Tepe, encontrado na Turquia e datado de entre 12 a 11 mil anos atrás. 

Ruínas de Göbekli Tepe, na Turquia. O templo é datado de cerca de 10 mil a.C. 

Antes desse templo, temos pinturas rupestres como mais de 40 mil anos de idade. Inclusive recentemente em 2024 foi descoberta uma pintura rupestre numa caverna na Indonésia, datada de cerca de 50 mil anos. Para completar, temos vestígios de ferramentas, pegadas, fogueiras e fósseis humanos anteriores a 100 mil anos. No caso das ferramentas líticas, as espécies anteriores ao Homo sapiens sapiens já faziam uso delas, remontando até mais de um milhão de anos atrás. 

Pintura rupestre mais antiga do mundo conhecida, datada de cerca de 50 mil anos atrás, representa três pessoas e um porco selvagem. Ela foi descoberta em 2024 na caverna de Karampuang, na ilha de Sulawesi, na Indonésia. 

Diante de todas essas evidências arqueológicas onde estão os sinais de uma civilização perdida e avançada na Pré-História? Sobre isso, escritores, teóricos da conspiração e esotéricos falam de civilizações perdidas como Atlântida e Lemúria, as quais teriam existido há dezenas de milhares de anos, porém, suas ilhas ou continentes foram submersos, por conta disso, não encontramos vestígios arqueológicos até hoje. Porém, esses lugares foram procurados várias vezes, sendo considerados muito mais mitológicos do que reais. 

Considerações finais

Indagados se os autores acreditariam nessa hipótese, em algumas entrevistas Frank e Schmidt dizem que acabaram sendo mal compreendidos. Eles não afirmaram que haveria uma civilização tecnologicamente avançada há 55 milhões de anos, ou se algum dia poderia ter havido algo do tipo. 

Para eles a Hipótese Siluriana não deve ser levada ao "pé da letra", mas servir para a reflexão: será que houve civilizações perdidas que existiram há dezenas ou centenas de milhares de anos? Ou até mesmo há milhões de anos? Caso sim, como conseguir identificá-las? 

Embora os autores alertem para as faltas de evidências de sua hipótese, no entanto, teóricos da conspiração, esotéricos e oportunistas se aproveitaram disso. Adeptos da teoria dos alienígenas do passado fizeram bastante uso disso entre 2018 e 2020, apesar que a teoria deles seja bem mais antiga. 

No caso do Brasil, nos últimos anos rodou pela internet a história sobre Ratanabá, uma suposta cidade perdida no meio da floresta amazônica, que remontaria a um passado longínquo. Por se tratar de uma fake news, as informações em diferentes sites são até conflitantes. Alguns falavam que a cidade teria milhares de anos, outros estendiam isso para centenas de milhares de anos ou até mesmo milhões de anos atrás. Além de que outras informações não faziam o mínimo sentido. 

NOTA: O nome silesiano é uma referência a série do Doctor Who, especificamente ao episódio Doctor Who and the Silurians (1970), o qual aborda uma raça extraterrestre reptiliana chamada silurianos. 

NOTA 2: Em termos geológicos existe o Período Siluriano, mas esse não corresponde a época da Hipótese Siluriana, por antecedê-la. 

NOTA 3: Teorias de civilizações antigas e perdidas remontam desde a Antiguidade através de mitos. Uma das mais famosas é Atlântida, descrita por Platão no século IV a.C. Todavia, a partir do século XIX essa ideia por civilizações perdidas se popularizou, virando temas de romances e novelas de aventura. 

Referência bibliográfica

SCHMIDT, Gavin; FRANK, Adam. The Silurian Hypothesis: Would it be possible to detect an industrial civilization in the geologica record? International Journal of Astrobiology, v. 18, n. 2, 2018, p. 142-150. 

Referências da internet

BIERNARTH, André. Ratanabá: arqueólogo explica porque lenda de "cidade perdida na Amazônia" não faz sentido. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/meio-ambiente/amazonia/noticia/2022/06/15/ratanaba-arqueologo-explica-porque-lenda-de-cidade-perdida-na-amazonia-nao-faz-sentido.ghtml.

GHOSH, Pallab. A fascinante descoberta das pinturas rupestres mais antigas do mundo. 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/clwy49yvn3no#:~:text=O%20exemplo%20mais%20antigo%20de,era%20considerada%20a%20mais%20antiga.