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Leandro Vilar

sábado, 25 de abril de 2015

Uma breve introdução à história da Arqueologia

Neste texto procurei contar um pouco da história do surgimento da Arqueologia, como essa se originiou a partir da curiosidade dos modernos pelas obras de artes, as quais enchiam antiquários, gabinetes de curiosidades e posteriormente museus; até finalmente despontar no século XIX, como um estudo sério sobre o homem pré-histórico e antigo, algo que lhe tornou uma "ciência auxiliar" da história. O recorte temporal desse estudo se deu propriamente entre os séculos XVI e XIX, no entanto, fiz menção a acontecimentos no começo do século XX. 

A escolha para tal recorte se deve ao fato, que no século XX a Arqueologia sofreu várias reviravoltas em termos conceituais, teóricos, metodológicos, tecnológicos, científicos, etc., o que por sua vez tornaria um estudo bem mais amplo, deixando de ser apenas uma introdução, para se tornar uma história do percurso da arqueologia das origens até os dias atuais. Por mais que alguns podem contestar o título "uma breve introdução...", alegando que o texto não é tão breve assim, saibam que existem livros com mais de duzentas páginas, que são introduções a história da arqueologia, logo, o do porque de ser uma "breve introdução".

A bela arte greco-romana:

O interesse pelo antigo, pelo exótico, pelo estranho, fascina pessoas a séculos. Quando Heródoto de Halicarnasso, chamado por alguns de "o Pai da História", visitou o Egito em algum momento do século V a.C, ele ficou fascinado com as pirâmides de Gizé, as quais já possuíam naquela época cerca de dois mil anos (PAOR, 1967, p. 12). Em seus nove livros, Heródoto escreveu sobre os egípcios, persas, citas, gregos, entre outros povos, descrevendo em muitos casos curiosidades, lendas e mitos. No entanto, já era claro esse fascínio pelo antigo e pelo distante e desconhecido.

"Los griegos, así como el resto de la humanidad anterior a la Europa de los últimos siglos, no conocieron la arqueología, aunque en ocasiones efectuaron descubrimientos de interés arqueológico y llegaron incluso a elaborar conclusiones acertadas. De este modo, en el siglo V, los atenienses, llevando a cabo la pacificacíon religiosa de Delos, abrieron alguns tumbas y juzgaron por la confeción de las armas halladas junto a los cuerpos y por la forma de enterramiento que pertenecían a los carios, pueblo que aún hacía uso de armas y sepulturas semejantes. Pero descubrimientos como éste fueron pruamente casuales y nunca fueron el resultado de una búsqueda premeditada de conocimientos sobre las épocas anteriores. Ni muco menos se llevó a cabo una comparación y clasificación, y no pudo, pues, obtenerse una cronología mediante ellos". (DANIEL, 1992, p. 34-35 apud PHILLIPS, 1964, p. 174-175). 

Essa curiosidade manteve-se pelos séculos seguintes, sendo reanimada na Europa durante o Renascimento, período entre os séculos XIV e XVI que os eruditos e artistas voltaram a dar maior atenção a cultura greco-romana. Todavia, antes de continuar a prosseguir com o texto, devo fazer uma ressalva: Alguns arqueólogos e historiadores preferem dizer que a Arqueologia começou a se originar no século XVIII, mas tomou forma no XIX e se consolidou no XX. Por outro lado, há quem defenda que esse interesse erudito só foi possível devido ao interesse de algumas pessoas em colecionar objetos e artefatos, algo que é bastante antigo, mas foi impulsionado com o advento do Renascimento. Por tal fato, decidi contar essa história por esses dois caminhos.

Falo na Europa, pois a Arqueologia surgiu neste continente, embora para seu progresso, os europeus acabaram indo a África, Ásia e depois as Américas, para descobrir cidades e "civilizações perdidas". Entretanto, nesse primeiro momento, o interesse pelo passado estava pautado no estético e no conhecimento. 

A Itália renascentista é o período de transformações artísticas, filosóficas, estéticas, sociais, teólogicas, científicas, etc. Os artistas renascentistas acabaram olhando para as antigas estátuas romanas e tomaram elas como modelo de perfeição artística, e por sua vez, tendo os romanos se inspirado na arte grega, ambos os povos antigos se tornaram referenciais para os modernos. 

Estátua de César Augusto, primeiro imperador de Roma. No lado direito se vê uma reconstituição do visual original da estátua, a qual era colorida.
Mas se por um lado, havia aqueles que se interessavam pela estética greco-romana, fosse por suas estátuas, afrescos, mosaicos e arquitetura, por outro, havia aqueles que se interessavam por seus saberes. Alguns eruditos começaram a tomar conhecimento de antigos manuscritos em latim e grego, guardados em bibliotecas particulares e nas bibliotecas de mosteiros, então começou-se a traduzir tais manuscritos e a difundir algumas cópias aos interessados. Tal interesse ainda se iniciou no século XIV, tendo sido um de seus expoentes o poeta, filólogo e tradutor italiano, Petrarca (1304-1374). Responsável por traduzir várias obras.

Pouco a pouco a filosofia, a história, a literatura e  a ciência dos gregos e romanos foi sendo redescoberta; e após a invenção da prensa móvel de Gutenberg em meados do século XV, favoreceu para o aumento da difusão de tais obras, e no século XVII o saber dos antigos passou cada vez mais a ser contestado, e assim se iniciou a Revolução Científica

"A Retórica e a Poética de Aristóteles e a Arte poética de Horácio forneceram os principais elementos literários da Renascença". (Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1998, p. 4986).  

Logo, além dessa admiração estética e pelo conhecimento, algumas pessoas ricas passaram a ter curiosidade e interesse em colecionar objetos, não apenas dos gregos e romanos, mas de outros povos antigos. Assim começaram a surgir as coleções particulares, os antiquários e os gabinetes de curiosidade. A burguesia e a nobreza renascentista das cidades italianas, e posteriormente das cidades francesas, alemãs, inglesas, espanholas, holandesas, etc., tinham o gosto de enfeitar suas mansões e palacetes com obras de arte, fossem feitas pelos artistas locais, ou trazidas de outros países e continentes. Tais obras poderiam ter sido feitas a poucos anos, ou poderiam ser artefatos datando de séculos de idade.

Os antiquários e os gabinetes de curiosidades:

Foi na Idade Moderna na Europa, que os antiquários começaram a se difundir, embora tenham surgido ainda no final do medievo. Os motivos para tal difusão foram vários: influência do renascimento italiano, do humanismo, do descobrimento do Novo Mundo; do expansionismo colonial em África e Ásia; aumento das viagens aos outros continentes; difusão de livros através da tipografia (embora livros fossem algo caro ainda), etc. 

Logo, homens ricos que tinham interesse no exótico, estranho e antigo começaram a colecionar distintos objetos como livros, manuscritos, mapas, moedas, bandeiras, brasões, vasos, máscaras, armas, ferramentas, obras de arte, etc. Mas isso no caso dos antiquaristas, pois no caso dos gabinetes de curiosidades, seus acervos englobavam outros tipos de objetos. 

Os gabinetes de curiosidades surgem por volta do século XVI, e foram bastante populares até o final do século XVII. Para alguns estudiosos, estes foram os antecessores dos museus. Em tais gabinetes seus donos colecionavam objetos criados pelo homem, mas também colecionavam objetos de origem natural como conchas, pedras, minerais, animais empalhados, plantas, etc. O acervo dos gabinetes de curiosidades eram mais amplos do que dos antiquários, mas alguns de seus donos foram eruditos também interessados em estudar suas coleções, desenvolvendo conhecimentos sobre botânica, zoologia, biologia, mineralogia, geografia e história.

Ilustração de um gabinete de curiosidades, chamado de Museu de Ferrante Imperato. Ilustração no livro Dell' Historia Naturale (1599).
No entanto, não foi com os gabinetes de curiosidades que a arqueologia teve uma origem, mas foi nos antiquários, pois nestes se presava a produção humana. Entretanto é preciso diferenciar o antiquarista do mero colecionador, pois o segundo tinha apenas o interesse de colecionar, já o antiquarista passou a desenvolver o interesse de estudar a história através daqueles objetos e artefatos, o que levou ao surgimento de um saber chamado de "antiquarismo". Mas isso não significa que todos os antiquaristas foram eruditos.

A partir do interesse de alguns antiquaristas em se estudar as peças de sua coleção, foram surgindo novos campos de estudo, os quais posteriormente foram chamados de "ciências auxiliares da história" ou simplesmente estavam reunidos no que se chamava de "antiquarismo". Dentre os quais podemos citar algumas:
  • Codicologia: estudo dos livros.
  • Diplomática: estudo de documentos.
  • Epigrafia: estudo de inscrições em distintos suportes (madeira, metal, pedra, osso, etc.)
  • Numimástica: estudo das moedas.
  • Heráldica: estudo dos brasões.
  • Paleografia: estudo da caligrafia antiga.
  • Filologia: estudo da linguagem.
  • Genealogia: estudo das origens familiares.
Além dessas áreas, também se desenvolveu o estudo da história das artes e surgiu a arqueologia, que nesse primeiro momento originava-se como um estudo de sítios arqueológicos e artefatos. Logo, a arqueologia começou a surgir como uma "ciência auxiliar da história". 

Ainda no século XVII começaram a surgir sociedades de antiquários pela Itália, Inglaterra, França e Alemanha, no entanto Glyn Daniel (1992) chama a atenção para alguns antiquaristas ingleses, os quais deixaram trabalhos bastante significantes. 

William Camden (1551-1623) foi professor, antiquarista e oficial militar. Durante o governo da rainha Elizabeth I, época que foi criada a Sociedade dos Antiquários, Camden publicou em 1586 seu livro Britannia, o qual consistiu no primeiro trabalho que realizava um levantamento coreográfico e histórico das antiguidades da Grã-Bretanha. Nessa volumosa obra que recebeu outras edições, Camden procurou catalogar os monumentos antigos existentes no arquipélago, inclusive neste livro constam pinturas de alguns desses monumentos. 

Frontispício de uma edição da Britannia de William Camden. 
A obra em si, consiste num catálogo, sem esboçar um estudo arqueológico ou histórico, todavia, sua importância se deve pelo fato de que nesse momento, já despontava o interesse em se catalogar as antiguidades existentes na Inglaterra, algo que serviu de referência para trabalhos posteriores, pois outros estudiosos tomaram a obra de Camden como referência para se conhecer tais locais, para ali visitarem e começarem a estudá-los. 

Um dos influenciados pelo trabalho de Camden, foi o antiquarista John Aubrey (1626-1697) o qual redigiu uma obra parecida, intitulada Monumenta Britannica. Nesta obra Aubrey dedicou várias páginas a Stonehenge o misterioso ciclo de pedras em Salisbury. Naquele momento, Aubrey propôs que Stonehenge era bastante antigo, embora não soubesse definir uma data para tal construção, ele acreditava que teria sido feito pelos antigos bretões, os colonizadores daquea ilha, os quais eram de origem celta.

Nota-se que embora tenha consistido num trabalho impreciso, Aubrey já demonstrava interesse em se estudar um monumento e sítio arqueológico, no caso, Stonehenge, no intuito de descobrir suas origens, quem foram os responsáveis por ter-lo construído e para que propósito aquela megalítica estrutura havia sido erguida.


Vivendo na mesma época de John Aubrey, com quem chegou a se corresponder, esteve Edward Lhuyd (1660-1709) um dos mais notórios antiquaristas ingleses do século XVII e começo do XVIII. Lhuyd tornou-se ajudante de Robert Plot, na época responsável pelo Ashmolean Museum. Pelo fato de Plot ser um homem influente e bastante envolvido nas atividades de pesquisa, Lhuyd o acompanhou em várias ocasiões, até finalmente poder realizar suas próprias viagens, quando passou a trabalhar para o museu. Edward Lhuyd não apenas se interessou pelo o estudo das antiguidades, mas também pesquisou e estudou a flora e fauna da Grã-Bretanha, Irlanda e Escócia; a geografia, as línguas antigas e a história antiga. Com base em suas viagens e pesquisas, redigiu livros sobre estes distintos campos de estudo, na época englobados no que se chamava de "história natural". Uma de suas viagens mais significantes se deu no ano de 1699, quando ele viajou para a Irlanda, onde havia sido descoberta recentemente uma antiga tumba em New Grange, ao norte de Dublin (capital da Irlanda). Lhuyd maravilhado com aquela descoberta redigiu um artigo sobre o assunto:

"Tras una estancia de apenas tres días en Dublín dedicidmos dirigirnos hacia el Giants Causway. Lo más notable que encontramos en el camino fue un montículo en un lugar llamado New Grange, cerca de Drogheda; con varias piedras monumentales elevadas verticalmente a su alrededor y otra en la parte más alta". (DANIEL, 1992, p. 42). 

Túmulo em New Grange, Irlanda.
Na época Lhuyd considerou que tal túmulo teria sido feito pelos druidas, os sacerdotes dos celtas, pois a Irlanda foi colonizada por tribos celtas. Ele também defendeu a ideia de que além de local fúnebre, New Grange teria sido um local para a realização de sacrifícios. As ideias de Lhuyd não eram ruins, mas ele como outros em seu tempo, não conseguiram precisar a época que tal construção foi feita, além do fato de que Lhuyd era um grande admirador dos celtas, deixando se romantizar por teorias de pouco fundamento. Hoje se pondera que tal túmulo date de 3200 a.C, datando da época pré-histórica da Irlanda. Todavia, o local foi reutilizado nos séculos seguintes. 

Não obstante, o trabalho de Edward Lhuyd em se pesquisar locais antigos e monumentos o levou a publicar um de seus últimos livros, Archaelogia Britannica (1707), obra na qual ele reuniu várias de suas anotações, pesquisas e estudos. Embora leve o nome de arqueologia, a obra aborda temas antropológicos, linguísticos, geográficos, naturalistas e históricos. Naquele momento, a palavra arqueologia era usada no sentido de referir-se ao estudo da "história antiga" ou "história das antiguidades"; logo, tudo que era considerado tendo vários séculos ou milênios de idade, era tratado como "arqueologia".

Uma forma de conhecer o antigo conceito de arqueologia advém dos trabalhos do reverendo Henry Rowlands (1655-1723), vicário de Llanidan, na ilha de Anglesey, o qual foi amigo de Edward Lhuyd (DANIEL, 1992, p. 43). Em seu livro Mona Antiqua Restaurata: An Archaeological Discourse on the Antiquities, Natural and Historical, of the Isles of Anglesey, the Ancient Seat of the British Druids (1723), o reverendo Rowlands esboçou o conceito de arqueologia e suas áreas de estudo:

"La arqueología, o la historia del origen de las naciones tras el diluvio universal, se presta dos tipos de investigación: o bien arrancar de Babel, el lugar de la dispersión del hombre, y estudiar sus huellas hasta llegar a nuestros días a la luz de documentos escritos (lo que constituye la historia) y del razonamiento natural (que es la deducción y la conjetura)". (DANIEL, 1992, p. 43). 

A conceitualização de Rowlands nos apresenta alguns dados interessantes: o primeiro, diz respeito a condição de se tratar a arqueologia como o estudo da história antiga, sendo que no caso do reverendo, era se estudar a "história da origem das nações após o dilúvio". Essa menção ao dilúvio universal já conota uma forte influência da fé do autor em suas concepções, embora ele não tenha sido o único a fazer isso. 

Como será visto adiante neste texto, houve uma percepção em comum entre alguns estudiosos, de que a história antiga remontaria ao período pós-diluviano, pois os vestígios humanos anteriores a essa época, teriam se perdido para sempre. No entanto, havia dois grandes problemas nesse embasamento: primeiro, ninguém sabia quando o dilúvio havia ocorrido; segundo, não era exato que o dilúvio realmente ocorreu, pois alguns o tratavam como um mito, e não um acontecimento verídico. 

Outra questão que se pode levantar dessa breve descrição, diz respeito ao fato de que o reverendo diz que o estudo da arqueologia procederia com base em documentos escritos. Tal percepção era bastante marcante naquele tempo, pois não se havia teorias e métodos para se estudar a cultura material, logo, restava estudar a história antiga com base nos documentos escritos, pois mesmo as inscrições antigas não era algo viável, pois não conhecia-se a tradução. Por exemplo, os hieróglifos egípcios só seriam traduzidos no século XIX em 1824 pelo linguista francês Jean-François Champollion. Todavia, hoje em dia a arqueologia privilegia as fontes não-escritas como objeto de estudo, mais do que a própria história. 


Dando segmento a comentar sobre alguns importantes antiquaristas, outro nome que se destacou no século XVIII foi do alemão Johann Joachim Winckelmann (1717-1768), especialista em história da arte greco-romana, foi considerado por alguns como o "pai da arqueologia". Winckelmann era filho de um sapateiro de Stendal, e logo cedo apresentou interesse em investigar o passado. A região que nasceu era conhecida por possuir monumentos megalíticos como dolmens. Logo, o jovem Winckelmann se reunia com amigos para visitar tais locais e até mesmo procurar por antigos tesouros. Em 1748, após ter trabalhado como professor e subdiretor em uma escola em Seechausen, Winckelmann foi nomeado bibliotecário particular do Conde de Bünau, mudando-se para Dresden, onde passou a ter acesso ao ciclo de eruditos da cidade. Nos anos seguintes continuou a trabalhar como bibliotecário e a estudar por conta própria, história clássica.

Ele acabou se convertendo ao catolicismo, pois assim procurou se aproximar de estudiosos católicos, algo que deu resultado. Em 1759 mudou-se para a Itália, tornando-se bibliotecário e inspetor das coleções do Cardeal Albani. Em 1763 foi nomeado inspetor-geral de todas as antiguidades de Roma e arredores (CERAM, 1971, p. 25). Acabou sendo assassinado por um ladrão em uma estalagem em 1768. 

Nestes nove anos que morou na Itália, Winckelmann fez progressos consideráveis em seus estudos sobre a arte greco-romana e a "arqueologia", tendo visitado pessoalmente os locais históricos, o que incluiu as cidades de Pompeia e Herculano (respectivamente redescobertas em 1748 e 1738). Na época da sua passagem por tais cidades que foram encobertas pelas cinzas e lava da erupção do Vesúvio, ocorrida em 79, vários artefatos e estátuas já haviam sido removidos, e locais haviam sido desenterrados, mas tudo por curiosidade do rei de Espanha, Carlos III, que na época dominava o sul da Itália, e pela curiosidade de outros nobres em se possuir objetos daquelas antigas cidades romanas. 

Todavia, Winckelmann encontrou forte resistência das autoridades locais em se permitir o acesso as ruínas das cidades, pois tais autoridades que representavam os ricos, não tinham interesse que estrangeiros fossem "bisbilhotar" tais locais, além do mais, parte de tais cidades, se encontravam em terrenos particulares. Logo, Winckelmann teve que recorrer as peças nos museus, isso quando tinha acesso a tais, pois mesmo nos museus, os curadores não permitiam acesso a algumas peças. (CERAM, 1971, p. 27).


Interior de uma rica casa em Herculano, Itália.
Mesmo diante de tais percalços que dificultaram seu estudo sobre Pompeia e Herculano, Winckelmann conseguiu escrever duas circulares e dois livros. Em 1762 publicou sua primeira circular Sobre as descobertas de Herculano, em 1764 publicou a segunda circular. Ainda em 1764 publicou o livro História da Arte da Antiguidade e posteriormente foi a vez de Monumenta antichi inediti (1767). Suas duas circulares foram duramente criticadas pela nobreza napolitana, consideradas como uma "invasão de privacidade" aos negócios dos nobres que escavavam em Pompeia e Herculano, atrás de objetos para suas coleções. Mas mesmo diante dessas críticas e indignações, Winckelmann procurou mostrar ao mundo o valor arqueológico daquelas duas cidades, e como esse não estava sendo devidamente explorado para o estudo, mas explorado para interesses particulares e meramente estéticos. Em seu livro sobre a história da arte, ele retomou tais posicionamentos:

"Nela ele conseguira abranger, com visão ordenadora, a quantidade incrivelmente aumentada dos monumentos antigos e - "sem protótipo", segundo ele observou com orgulho - descrever pela primeira vez a evolução da arte antiga. Servindo-se de escassos dados antigos, ele construiu um sistema e, com extrema sagacidade e perspicácia, foi-se aproximando às apalpadelas, de conhecimentos primordiais, transmitindo-os com tal pujança de linguagem, que o mundo culto foi como que banhado por uma onde de dedicação aos ideais antigos, dedicação essa que determinou o século do "classicismo". (CERAM, 1971, p. 27).

"Essa obra foi de importância decisiva para a arqueologia. Suscitou o desejo de procurar a beleza onde quer que ela se ocultasse; mostrou o caminho para a compreensão de velhas culturas pela contemplação de seus monumentos; e despertou a esperança de virem a ser encontradas por meio de escavações, outras coisas nunca vistas, sepultadas como Pompéia, mas igualmente maravilhosas". (CERAM, 1971, p. 29).


Afresco em Pompéia, representando a deusa Vênus acompanhada de outras divindades. A arte em Pompéia e em Herculano influenciou bastante o trabalho de Winckelmann.
Embora Wickelmann seja considerado como um dos "fundadores da arqueologia", existe bastante controvérsia sobre isso, pois seu trabalho é mais significativo para o estudo da história da arte clássica, do que o estudo da arqueologia, por mais que ele tenha demonstrado preocupação para se realizar pesquisas nas cidades antigas, apontando cautela e cuidado para se realizar as escavações e atenção para se analisar o material recolhido. De certa forma, o que ele sugeriu já havia sido pensado por outros, mas se tornou mais significante devido ao impacto que seus trabalhos causaram na Itália. 

Não obstante, no final do século XVIII e começo do XIX, o Egito foi alvo de intensas expedições arqueológicas, iniciadas primeiramente em 1798 sob ordem de Napoleão Bonaparte (na época cônsul), o qual ordenou a chamada Expedição ao Egito (1799-1802), no que resultou num vasto projeto de catalogação de artefatos, inscrições, monumentos, lugares, etc, reunindo estudiosos franceses e italianos. Tal catalogação consistiu em milhares de páginas redigidas e centenas de desenhos feitos, consistindo no primeiro levantamento do tipo acerca da história, geografia e arqueologia do Egito.

"Dentro de um reduzido número de meses (junho de 1798 - setembro de 1802) foram escalpelados todos os aspctos do Egito: flora, fauna, geologia, a natureza das suas águas, de seus poços, sua geografia: levantou-se um mapa, de Assuâ até o Mediterrâneo, transformado posteriormente em um Atlas de cinquenta e uma folhas. Os habitantes foram descritos, estudados os seus costumes, seus tipos físicos, sua música, seus misteres e sua maneira de viver e de trajar, seu sistema de medidas e de moedas; o regime dos turcos e seu sistema fiscal foi objeto de uma exposição demorada assim como as indústrias do país, seu comércio e suas condições sanitárias... Descreveu-se, finalmente, o próprio país, de norte a sul, tendo sido assinalados, desenhados, medidos, todos os monumentos visíveis naquela época, fossem eles faraônicos, cristãos, árabes ou turcos". (SAUNERON, 1970, p. 12-13). 


Pintura retratando Napoleão contemplando a Grande Esfinge em Gizé. Durante sua campanha ao país, Napoleão ordenou uma expedição de pesquisa ao Egito, a primeira grande do tipo.
Tal expedição arqueólogica seguiu junto com a campanha militar de anexação do Egito aos domínios franceses, mas que no fim passou ao domínio dos ingleses, após um acordo firmado em 1802. Uma das grandes descobertas dessa expedição foi o achado da Pedra de Roseta, a qual permitiu através do estudos de Champollion, a tradução dos antigos hieróglifos. Com a saída dos franceses do Egito, os ingleses deram continuidade as pesquisas de campo, coletando material arqueólogico e histórico, e os levando para o Museu Britânico (fundado em 1753).

Ainda assim, o desenvolvimento da arqueologia só se deu propriamente no século XIX, sendo apoiado por alguns campos do saber como a geologia, sociologia, antropologia, egiptologia, biologia, história das religiões, história cultural, etc., campos esses que contribuíram com teorias que foram aplicadas a arqueologia ou foram usadas como motivo para se realizar estudos arqueológicos.

A teoria das "Três Idades" e a estratigrafia:


O historiador dinamarquês-norueguês Peter Frederik Suhm (1728-1798) publicou um livro sobre a história de seu país, intitulado History of Denmark, Norway and Hostein (1776), percebeu em suas pesquisas e escavações a descoberta de utensílios e objetos de pedra, cobre e ferro, até aí não era nenhuma novidade, pois os gregos antigos diziam que os seus antepassados foram homens que usavam ferramentas feitas de pedras. Tal ideia foi retomada pelos antiquaristas ao longo dos séculos XVI e XVIII (DANIEL, 1992, p. 90). Todavia, a novidade proposta por Suhm é que teria havido uma espécie de "evolução tecnológica"; para ele os homens começaram a usar inicialmente ferramentas, armas, objetos, etc., de pedra, depois passaram para o cobre e em seguida para o ferro. 

A teoria de Suhm ainda demoraria um tempo para ser plenamente confirmada, no entanto, outros arqueólogos escandinavistas tomaram sua ideia como referência. Entre 1813 e 1816 o historiador dinamarquês Lauritz Schebye Vedel Simonsen (1780-1858) publicou seu livro Udsigt over Nationalhistoriens aeldste og maerkeligste Perioder, obra na qual debatia a teoria das Idades da Pedra, Cobre e Ferro:

"Al principio los utensílios y las armas de los primeiros habitantes da Escandinavia fueron hechos de piedra y madera. Luego los escandinavos aprendieron a trabajar el cobre y posteriormente a fundirlo y endurecido... y finalmente a trabahar el hierro. Desde este punto de vista, el desarrollo de su cultura puede dividirse en huna Edad de Piedra, una Edad de Cobre y una Edad de Hierro. Estas tres edades no pueden separarse mediante limites exactos, ya que se encabalgan las unas en las otras. Sin duda grupos más pobres tras la aparición del cobre, y de igual manera los objetos de cobre siguieron usándose después de obtenerse el hierro... Los útiles de madera, como es natural, se han deshecho, y los de hierro están oxidados en la tierra; son los de piedra y cobre los que se encuentram mejor conservados" (DANIEL, 1992, p. 91). 

A tipologia das "Três Idades" acabou sendo adotada no Museu Nacional de Copenhague, Dinamarca. Em 1819, o então secretário responsável pelo museu, Christian Jurgensen Thomsen (1788-1865) abriu o museu ao público; no entanto, a importância de tal feito diz respeito ao fato de o acervo foi organizado com base na tipologia das "Três Idades". Sendo o primeiro museu do mundo a adotar tal tipologia (DANIEL, 1992, p. 92). 

No entanto, tal tipologia se consolidou anos depois em 1843, quando o arqueólogo, historiador, professor e diretor do Museu Nacional de Copenhague, Jens Jacob Asmussen Worsaae (1821-1885) publicou sua mais importante obra, Danmarks Oldtid oplyst ved Oldsager og Gravhoje, traduzido para o inglês em 1849 com o título de The Primeval Antiquities of Denmark

Jens Jacob Asmussen Worsaae, considerado por alguns como um dos primeiros arqueólogos profissionais, e um dos responsáveis por tornar a arqueologia uma ciência reconhecida.
Em seu livro, Worsaae voltou a explanar sobre a importância e validade da tipologia das "Três Idades", chamada agora de Idades da Pedra, Bronze e Ferro; considedaras uma tipologia não apenas aplicada ao território da Escandinávia (Dinamarca, Noruega e Suécia), mas aplicável a outros povos do mundo; todavia, ele salientou que dependendo do local e da época haveria diferenciações, logo, as datas destes períodos não seria totalmente exatas, mas isso não invalidaria a tipologia, pois ela consistia num método comparativo, algo que Worsaae aprofundou mais a discussão. 

Além disso, ele também defendeu a importância do estudo da arqueologia para se compreender a história dos povos antigos, e também foi um dos primeiros a explicar o processo de escavação tendo um certo padrão para ser realizado, a fim de evitar danos aos artefatos e ao sítio, pois até então muitas escavações não levavam isso em consideração. 

A partir da sua explanação sobre como proceder no método de excavação, Worsaae também salientou a importância do uso da estratigrafia para se conceder um outro meio comparativo para datação. Posteriormente, a tipologia das "Três Idades" seria melhor articulada com a técnica da estratigrafia. 

Logo, aproveitando a menção a estratigrafia, tal técnica advinda da geologia, já havia sido proposta cinquenta anos antes da publicação do livro de Worsaae, inclusive antiquaristas, arqueólogos, historiadores e outros estudiosos chegaram a cogitar seu uso. No ano de 1797 o antiquarista inglês John Frere (1740-1807), redigiu uma carta explanando uma teoria baseada nos estudos geológicos. Tal carta foi publicada na revista da Sociedade de Antiquários de Londres, no ano de 1800; na ocasião, essa edição foi nomeada Archaeolgia

A proposta de Frere não era inédita, pois na geologia ela já era usada, tratava-se da estratigrafia, técnica na qual se calculava através da variação de camadas de terra a idade de cada subestrato. Ainda no final do XVIII, ninguém havia sugerido utilizar a estratigrafia para o estudo da arqueologia, todavia, John Frere nessa sua carta chamou a atenção para isso. 

Observando as escavações de uma pedreira onde se estraía pedras, areia e argila em Hoxne, em Suffolk na Inglaterra; Frere percebeu essas variações nas camadas, e inclusive detectou fósseis e objetos de pedra. Isso chamou a sua atenção para supor que a estratigrafia poderia ser usada para tentar datar o período de tais objetos (DANIEL, 1992, p. 60). Embora tenha demorado para que a arqueologia adotasse de vez tal prática, a sugestão de Frere não estava errada, de fato com o auxílio dessa técnica, poderia se melhorar a precisão em se calcular a data dos objetos, pois como salientado, a tipologia das "Três Idades" não é precisa, e embora seja considerada uma continuidade, não significa que elas estiveram integradas. 

Foto de um sítio arqueológico, mostrando o mapeamento estratigráfico ao lado de uma ruína. Percebe-se a divisão das camadas em letras e números, pois a estratigrafia arqueólogica é mais detalhada do que a geológica, pois trata de períodos temporais bem mais curtos e bem próximos.
Logo, objetos de pedra ainda eram utilizados na época da Idade do Ferro, no entanto, objetos de ferro não existiam nas idades anteriores. Graças a estratigrafia, tornou-se melhor a forma de definir tais períodos, como também, tornou-se um auxílio para se identificar a época dos fósseis, esqueletos, artefatos, ruínas, tumbas, túmulos e outras construções soterradas ao longo do tempo, pois os materiais em camadas inferiores sempre são mais antigos do que em camadas superiores (PAOR, 1967, p. 51). Com a introdução da estratigrafia a arqueologia começou a se tornar cada vez mais científica, segundo informa Daniel (1992, p. 96). 

"Os progressos da geologia foram decisivos. Eles permitiram, com efeito, abandonar definitivamente o quadro cronológico tradicional, o da Bíblia, para o qual o mundo tinha apenas seis mil anos de idade, para passar à visão de idades geológicas extremamente amplas por sua duração. Assim, podiam-se instaurar debates sobre as longínquas origens do homem". (BLOCH; HUS, 1976, p. 23).

A antiguidade do homem, o Dilúvio e o darwinismo social:

Como foi dito, o século XIX foi o século da consolidação da Arqueologia como uma disciplina e um saber científico reconhecido. Mas ao longo deste século, a arqueologia sofreu várias influências, e três delas andaram em conjunto, ora dialogando-se, ora se confrontando. 

No século XVII o arcebispo irlandês James Ussher (1581-1656) escreveu um livro intitulado The Annals of The World publicado dois anos após a sua morte. Em tal obra, Ussher defendia com base na Bíblia que o mundo teria sido criado em 23 de outubro de 4004 a.C. Tal teoria foi amplamente aceita na época e por quase duzentos anos, ainda havia gente que achava que tal datação estava certa, logo, alguns antiquaristas e eruditos que se interessavam por história antiga, tomaram essa data como referência na tentativa de datar o período que surgiu as antigas civilizações e os acontecimentos descritos na Bíblia

Pela concepção de Ussher, Adão e Eva foram criados no ano 4004 a.C, e por volta do ano de 3050 a.C teria ocorrido o dilúvio. Por tal perspectiva acreditava-se que todos os artefatos produzidos pelos homens encontrados até então, datavam do período pós-diluviano.


Para se ter ideia da influência dessa teoria, em 1860 o arqueólogo francês Jacques Boucher de Crèvecouer de Perthes (1788-1868) publicou sua importante obra I'homme antédiluvien et ses ouevres. Com base na perspectiva cristã do Dilúvio, Boucher de Perthes defendia que os objetos de pedra e fósseis encontrados por ele em pesquisas realizadas no Vale Somme na região de Picardy, na França, datariam de antes do dilúvio. Para Boucher de Perthes a antiguidade de tais objetos seria uma prova da vida humana e natural antidiluviana. O problema da sua teoria é que ele próprio não sabia dizer quando o dilúvio ocorreu, mas embora sua teoria tenha recebido duras críticas posterioremente, ela foi pertinente para inaugurar algo que viria a ser chamado de Pré-história

"Apesar das resistências, e graças à honestidade intelectual e à coragem de um homem como Boucher de Perthes, as evidentes conexões foram estabelecidas entre os esqueletos humanos arcaicos e os objetos de osso e de sílex que os acompanhavam. [...]. A associação entre o homem e as espécies desaparecidas prendia definitivamente o próprio homem a uma longa evolução paleontológica. Podia-se, então, indicar a grande obra de classificação dos materiais em épocas e culturas sucessivas, segundo a superposição, eeleciam camadas diversas, dos tipos de sílices trabalhados. Assim se estabelecia a distinção das idades e dos tempos pré-históricos, imensa tarefa à qual se dedicariam várais gerações de cientistas". (BLOCH; HUS, 1976, p. 24).

Também é importante mencionar que em 1856, foi descoberto na gruta Feldhofer Grotte, próximo ao rio Düssel, e da cidade de Dussendorf no Vale de Neardental, Alemanha, um antigo fóssil humano. Na época tal achado não obteve grandes repercussões, e muitos conjecturaram que se tratava de um homem com problemas físicos, pois parecia ter sido um homem adulto que sofreu de raquitismo ou outra doença do tipo. Por outro lado, houve alguns estudiosos que propuseram que tal fóssil fosse mais antigo do que se supunha, e possívelmente poderia pertencer a uma pessoa que viveu antes do dilúvio.

Em 1863 o geólogo britânico William King (1809-1886) durante uma reunião na Associão Britânica para o Avanço da Ciência, propôs a teoria que o Homem de Neardental (como passou a ser conhecido) na verdade não seria um ser humano, mas uma outra espécie de hominídeo, a qual King a chamou de Homo neadenrthalensis. Parte da argumentação para sua teoria provinha de um polêmico livro lançado há poucos anos, A Origem das Espécies (1859) de Charles Darwin (1809-1882).

Em sua mais famosa obra, Darwin esboçou suas teorias evolucionistas, dentre as quais a teoria da seleção natural, no entanto, embora cite várias espécies ao longo da obra, ele não menciona o ser humano, algo que só viria a ser tratado anos depois em outro livro, A Descendência do Homem e Seleção em relação ao sexo (1871). 

Todavia, as duas obras de Darwin causaram uma grande polêmica pelo mundo, algo que durou décadas, mas não será de meu intuito debater tais polêmicas, mas o que se pode ser dito, é que alguns estudiosos entre historiadores, arqueólogos, antropólogos, sociólogos, geólogos, biológos, etc., tomaram as teorias de Darwin como referência para aplicarem em seus estudos, passando a reavaliar a "antiguidade do ser humano". Assim a arqueologia passou não apenas a se estudar a história antiga, mas a se estudar também a época anterior ao surgimento das cidades, das civilizações, dos Estados, da agricultura, o período dos povos nômades, caçadores-coletores, a "Idade da Pedra".

Mesmo que William King tenha defendido que o Homem de Neandertal seria uma outra espécie (algo que ele realmente estava certo) sua teoria só foi aceita vários anos depois, até então houve um intenso debate para defendê-la ou negá-la, pois não se aceitava a existência de uma outra espécie humana e uma possível evolução, pois isso contrariava tudo o que a Bíblia havia ensinado. Neste ponto devemos pensar que o Ocidente foi fortemente influenciado pela tradição judaico-cristã, e ainda hoje sofre tal influência.


Esqueleto do homem de Neandertal. Museu Americano de História Natural, Nova York.
Se por um lado houve essa demora em se reconhecer uma evolução biológica da espécie humana, algo que se consolidou apenas no século XX, a partir da descoberta de fósseis de outras espécies de hominídeos, ainda no século XIX, a teoria evolucionista de Darwin acabou repercutindo na antropologia e sociologia, no que originou o darwinismo social. Uma das obras mais importantes desse campo, hoje visto como pseudocientífico, foi o livro Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855), escrito pelo diplomata, escritor e filósofo francês Arthur de Gobineau (1816-1882), cuja obra foi bastante influente entre os mais distintos eruditos na Europa e nas Américas.

Enquanto alguns se mantinham defendendo o evolucionismo biológico da raça humana com base no homem de Neandertal, outros foram mais longe, e passaram a enxergar uma noção de evolucionismo dentro da própria espécie do Homo sapiens sapiens, em outras palavras, no século XIX surgiram as teorias raciais humanas, como forma de explicar os diferentes estágios civilizatórios. Embora tais teorias tenham surgido no campo da antropologia e sociologia, elas se difundiram pela história e a arqueologia. 

Por tal perspectiva, começaram a surgir trabalhos que apontavam que a diferença do progresso civilizatório seria resultado da diferença racial entre o ser humano, logo, povos de origem caucasiana (branca), seriam biologicamente mais avançados do que povos de origem negroide. Sendo assim, os povos negros da África, Ásia, Oceania, e os povos pardos da Ásia e das Américas, seriam biologicamente inferiores, logo isso repercuteria no atraso de seu desenvolvimento cultural, intelectual, social, político, econômico, tecnológico, moral, etc. Gobineau também assinalava que a miscigenação entre as "raças humanas" teria criado uma série de povos degenerados física e mentalmente. Para ele, a miscigenação dos europeus com os africanos, asiáticos e ameríndios foi um grande erro.

Alguns arqueólogos com base nestas teorias raciais, começaram a delinear explicações para justificar porque alguns povos adentraram primeiro a Idade dos Metais, e outros demoraram a adentrá-la, e porque alguns nem ao menos saíram da Idade da Pedra. Por outro lado, também se procurou tecer uma espécie de "evolução da sociedade", onde se remontava as tribos nômades, até chegar as aldeias agrícolas e pecuárias, passando para as vilas, cidades, reinos, impérios, tentando-se se estipular certos "critérios" para que tal "evolução" ocorre-se.

Hoje é visível que tais teorias não possuem nenhum fundamento científico concreto, sendo mera especulações racistas, pré-conceituosas e segregacionais. Todavia, tais teorias foram bem vigentes na segunda metade do XIX e primeira metade do XX.

Em busca dos mitos:

Na segunda metade do século XIX a Arqueologia já estava consolidada. Já havia museus, catédras nas universidades, institutos, sociedades, academias, laboratórios, comissões, etc., expedições eram realizadas ao Egito e ao Oriente Médio; em países como Dinamarca, Noruega, Inglaterra, Alemanha, França e Itália, a arqueologia estava bem avançada; as teorias raciais, evolucionistas, o desenvolvimento tecnológico, o aperfeiçoamento da tipologia das "Três Idades" e da ténica de estratigrafia, e nas regras para se escavar os sítios, haviam dado um grande passo em comparação ao início daquele século. 

 
Entretanto, algumas descobertas encabeçadas por não arqueólogos, geraram novos solavancos no mundo da arqueologia do Oitocentos. Durante a década de 1870, um rico empresário alemão de nome Heinrich Schliemann (1822-1890), viajou para a Turquia, mais especificamente a região de Hisarlik. A escolha para tal local, devia-se ao fato de que Schliemann homem autodidata nos estudos, próspero poliglota, era um grande admirador dos poemas Homéricos, e para ele, a Guerra de Troia como narrada na Ilíada, teria sido um acontecimento real. Convencido pela sua fé nessa crença, ele patrocinou escavações em Hisarlik até que descobriu uma cidade, e esta era nada menos que a própria cidade de Troia, a qual por muito tempo se considerou que fosse apenas uma lenda.


A descoberta de Troia em 1870 e as escavações seguintes, causaram um rebuliço na arqueologia europeia; alguns alegavam que não se tratava de Troia, mas de outra cidade, já outros defendiam que realmente era Troia, pois Alexandre, o Grande teria visitado as ruínas da cidade, e há indícios que os romanos já haviam relatado a existência de tais ruínas ainda na época do império. Com tal descoberta isso gerou a possibilidade de que outras cidades míticas com Atlântida, Shangri-la e El Dorado pudessem ser reais. 

Além de descobrir ruínas das famosas muralhas, de imponentes torres, de casas, palácios, ruas, etc., Schliemann também descobriu objetos, restos de cerâmicas e joias, as quais ele acreditou que se tratassem do "Tesouro do rei Príamo", o qual segundo a Ilíada, foi o último governante de Troia. Tal tesouro ficou bastante conhecido na época, e várias fotos das joias, inclusive da própria esposa de Schliemann, usando uma tiara, brincos, colares e anéis foram publicadas em jornais e revistas, e Schliemann alegava que se tratavam das joias da rainha Helena, dita a mais bela das mulheres.

Sophia Schliemann usando uma luxuosa tiara, colares e brincos, os quais seu marido disse terem pertencido a mítica rainha espartana, Helena.
Mas a descoberta de Troia não bastou para aquietar o espírito desbravador de Schliemann, ele queria mais. E motivado pelo sucesso de sua empreitada, e estando confiante de que outras antigas cidades mencionadas na Ilíada poderiam ser reais, Schliemann mudou-se para a Grécia, indo explorar a cidade de Micenas. Ele não foi o descobridor de Micenas, pois essa já era conhecida desde 1841, no entanto, na Ilíada, a cidade era o lar do rei Agamemnôn, considerado o mais poderoso rei da Grécia. 

Novamente motivado pela possibilidade de que os mitos possuem um embasamento histórico, Schliemann dirigiu-se a Micenas com sua grande equipe de escavadores e alguns arqueólogos, e começaram a escavar todo o perímetro da cidade, descobrindo novas construções, túmulos, joias, objetos de cerâmica, metal, etc. Uma de suas descobertas mais significativas, ocorreu em 1876, sendo uma máscara mortuária feita de ouro, a qual ele disse ser a máscara do próprio Agamemnôn. 

A famosa máscara de Agamemnôn descoberta por Heinrich Schliemann. Embora a máscara não tem pertencido ao mítico rei, ainda hoje ela é conhecida por tal nome.
"Em 1876, com cinquenta e quatro anos, Schliemann cravou a pá em Micenas. Em 1878/1879, fez escavações em Tróia pela segunda vez, com a assistência de Virchow. Em 1880, em Orcomenos, a terceira cidade que Homero presenteia cm o atributivo de "áurea", expôs o rico teto da câmara do tesouro de Mínias. Em 1882, com Dörpfeld, escavou pela terceira vez na Trôade e, dois anos mais tarde, iniciou suas escavações em Tirinto". (CERAM, 1971, p. 62). 

As escavações em Tirinto, foram as últimas empreendidas por Schiliemann, o qual manteve várias escavações nos sítios por ele descoberto ou investigado. Embora não tenha sido um arqueólogo de formação, ele acabou estudando história e arqueologia, sendo considerado um protoarqueólogo ou "arqueólogo clássico". 

Seguindo os passos de Schliemann, esteve o arqueólogo inglês Arthur Evans (1851-1941), o qual motivado também por descobrir locais contados nos antigos mitos gregos, decidiu viajar a Grécia, onde conheceu o próprio Schliemann em Atenas. Nesta mesma cidade, Evans patrocinou suas próprias escavações pela Acrópole e outros locais da cidade, até que descobriu algumas moedas com a efígie de polvos, algo que lhe despertou a curiosidade. Diferente de Schliemann que não foi um arqueólogo propriamente como dito, Evans era um erudito instruído em Harrow, Oxford e Göttingen, além de ter estudado os mitos, também estudou história e arqueologia, tendo se tornado em 1909, professor de arqueologia em Oxford (CERAM, 1971, p. 65). Com a descoberta de tais moedas, Arthur Evans sabia que essas eram provenientes da ilha de Creta, e logo lhe veio em mente o mito de Teseu

No mito do herói Teseu, este era príncipe de Atenas, numa época que a cidade era vassala do império marítimo do rei Minos de Creta, o qual obrigava que os atenienses anualmente enviassem sete mulheres virgens e sete homens jovens, para serem enviados como sacrifício ao Minotauro. Tais pessoas eram jogadas no sombrio labirinto da besta e tornavam-se sua presa. No entanto, Teseu decidiu confrontar o tirânico rei Minos, e viajou a Creta para confrontar e matar o Minotauro. 

Chegando a Creta em 1894, Evans se deparou com uma ilha em plena crise política, pois a maioria da população era cristã ortodoxa, mas quem se encontrava no poder, era uma classe de muçulmanos. Ora e outra, ocorriam conflitos entre cristãos e muçulmanos na ilha, no entanto, ele decidiu explorá-la mesmo assim, até se deparar com ruínas em um terreno, as quais lhe chamaram a atenção. Ele ficou sabendo pelos locais que aquelas ruínas pertenciam a Cnossos, a antiga capital da ilha. Tais ruínas já haviam sido exploradas anteriormente por arqueólogos gregos, mas estes acabaram não dando continuidade ao trabalho.

Aquilo aumentou-lhe o ânimo para imediatamente começar as escavações, no entanto, aquelas terras eram particulares e pertenciam a um senhor muçulmano, o qual negou-se a conceder autorização para as escavações; mas sendo Evans um homem rico, decidiu comprar aquele terreno, mesmo assim, o dono por várias vezes negou-se a vendê-lo. Apenas em 1900 é que Evans conseguiu comprar o terreno e deu início as escavações. Inicialmente ele achava que em poucos meses conseguiria descobrir muita coisa, no entanto, passado um ano, ele viu que o trabalho bem maior. Arthur Evans passou os trinta anos seguintes trabalhando no sítio de Cnossos, desenterrando o imenso palácio, o qual ele acreditou pertencer ao mítico rei Minos.

Ruínas do Palácio de Cnossos em fotografia de 2012.
A medida que as escavações foram seguindo ao longo de anos, tendo sido enterrompidas durante a a Primeira Guerra (1914-1918) e posteriormente por uma guerra civil na Grécia, ainda assim, Evans conseguiu desenterrar grande parte da área do palácio, além de descobrir cerâmicas e outros artefatos, no entanto, o que se tornou mais significativo em termos de cultura material, foram os coloridos afrescos encontrados em algumas das salas do palácio, os quais retratavam homens, mulheres e animais de uma época bastante antiga, a qual Evans deduziu que fosse anterior ao período micênico na Grécia. 

Afresco minoico retratando três jovens mulheres da nobreza.
Logo, influenciado pela mitologia, ele chamou aquele povo de minóicos, uma clara referência ao rei Minos. Assim Arthur Evans tornou-se o descobridor da Civilização Minóica, uma das mais antigas da Europa. Os minoicos teriam surgido por volta de 3100 a.C, embora a ilha já fosse habitada muito tempo antes disso. No entanto, por volta de 1600 a.C, a civilização entrou em colapso, e acabou sendo conquistada pelos micênicos. Mas vestígios de sua civilização e império marítimo ainda perduraram até pelo menos 1100 a.C, depois foram totalmente assimilados pela cultura grega. Os minoicos não foram um povo grego, mas outro povo que os antecedeu no domínio da ilha de Creta, embora que os gregos antigos os considerassem como ancestrais. 

Um dos cômodos do palácio de Cnossos, com o famoso Afresco dos Golfinhos.
Evans dedicou o restante da vida a estudar o povo que descobriu, inclusive também descobriu a escrita desse povo, chamada de Linear A e Linear B, as quais ele não conseguiu decifrar. Ainda hoje a Linear A não foi totalmente decifrada devido aos poucos exemplares descoberto, constando na maioria fragmentos que dificultam a leitura dessa escrita pictográfica. Já a escrita Linear B, foi decifrada na década de 1950 pelos arqueólogos ingleses Michael Ventris e John Chadwick

Além de tais descobertas e a dedicação a continuar a explorar o sítio arqueólogico e a escrever a história desse povo antigo, Evans em 1927 decidiu restaurar parte do palácio, no entanto, apenas conseguiu restaurar alguns trechos, tendo postriormente abandonado a ideia. Mesmo assim, sua iniciativa foi bastante significante para preservar parte do palácio e dos afrescos, os quais também foram restaurados. É importante salientar que grande parte das despesas nestas escavações e restaurações foram providas pelo próprio Evans, que para a felicidade da arqueologia e da história foi um homem rico, o qual recebeu o título de Sir e em 1936 ganhou a Medalha Copley da Royal Society em Londres, pelo reconhecimento de seu trabalho para a arqueologia e a história. 

Considerações finais:

Nessa breve introdução, embora leve o título de breve, consiste num recorte de longa duração, passando por três séculos de história, aqui resumidos de maneira que o leitor possa delinear um pouco de como se desenvolveu essa ciência, chamada Arqueologia, a qual nos proporcionou um grande papel para se estudar a história humana, pois se no início a arqueologia apenas se focava na Antiguidade e na Pré-história, hoje ela remonta a um período de cem anos atrás. A arqueologia se estendeu para os quatro períodos históricos, assim como, tornou-se uma importante ciência que diáloga com a história, a antropologia, a sociologia, a geografia, etc. 


Não obstante, é visível que o desenvolvimento arqueológico de início começou como uma curiosidade até que através de alguns homens que buscavam ir além do mero ato de colecionar, decidiram investigar a história por trás daquilo, e assim surgiram as mencionadas "ciências auxiliares", as quais levaram dois séculos até começaram se delinear como estudos sérios, o que incluiu a própria arqueologia, que no século XIX se firma como um conhecimento concreto, assim como, sua irmã a história, a qual também no mesmo século torna-se um saber teorizado e com métodos de estudo, algo que não havia até então.

Por outro lado, também é válido mencionar que algumas descobertas arqueológicas foram promovidas ou feitas não por arqueólogos, como no caso de Heinrich Schliemann, mas porque tais homens motivados as vezes de forma cega por suas crenças, decidiram ir até o fim da linha para comprovar o que aguardavam ser real. E felizmente no caso de Schliemann e Evans isso deu certo, embora nem sempre ocorra, e em alguns casos ocarram até mesmo fraudes. 

A criação da tipologia das "Três Idades" uma invenção de arqueólogos escandinavos, tornou-se uma das bases do estudo arqueológico, sendo auxiliada com a estratigrafia, pois apenas no século XIX com o desenvolvimento de novas tecnologias como radares, sondas, computadores, testes químicos como o Carbono 14, etc., a arqueologia ganhou novas técnicas de datação e mapeamento. 

Por outro lado, também é válido mencionar que embora a tipologia das Três Idades seja apenas usada para materiais feitos de pedra e metal, com base em seu sucesso foram criadas tipologias para se estudar a produçao de materiais feitos de cerâmica, barro, argila, vidro, etc., a produção de roupas, o uso de materiais de construção, etc. E com o progresso de tais estudos, também se passou a estudar as formas de alimentação, quais eram as plantas cultivadas, quais eram os animais caçados e/ou criados, quais eram os hábitos sociais, etc. A arqueologia essencialmente estuda com os vestígios materiais, a chamada cultura material, algo bem mais profundo do que no estudo histórico.

Referências Bibliográficas:
BLOCH, Raymond; HUS, Alain. As conquistas da arqueologia. Rio de Janeiro, Editions Famot, 1976. (Grandes Civilizações Desaparecidas).
CERAM, C. W. Deuses, túmulos, e sábios: o romance da arqueologia. Tradução de João Távora. São Paulo, Biblioteca do Exército-Editora/ Edições Melhoramentos, 1971.
CERAM, C. W. O mundo da arqueologia. Tradução de Octávio Mendes Cajado. 2a ed, São Paulo, Companhia Melhoramentos, 1973. 
DANIEL, Glyn. História de la arqueología: de los anticuarios a V. Gordon Childe. Madrid, Alianza Editorial, 1992. 
GRANDE Enciclopédia Larousse Cultural, 1998, p. 4986.
PAOR, Liam de. Archaeology: an illustrated introduction. Drawings by Jnaes Mackay. Baltimore/Maryland, Penguin Books, 1967. 
SAUNERON, Serge. A egiptologia. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970. 

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segunda-feira, 6 de abril de 2015

Boudica: a rainha guerreira celta

A rainha Boudica ainda é uma mulher enigmática em vários aspectos, pois os relatos que mencionam parte de sua história, se encontram em obras de historiadores romanos como Tácito e Dião Cássio; e neste caso, tais relatos apenas se referem aos acontecimentos ocorridos entre os anos de 60 e 61 d.C, os quais estão relacionados ao momento no qual Boudica passou a liderar algumas tribos celtas na Bretanha, a fim de vingar a morte de seu marido e a afronta ao seu povo, cometida pelos romanos. Tudo isso ocorreu durante o governo do imperador Nero (54-68), embora o imperador como sugerem alguns relatos romanos, não deu atenção a esse conflito, pois Nero não foi um imperador interessado em guerras e conquistas, ele até mesmo cogitou abandonar a Província da Bretanha, conquistada pelo seu tio, o imperador Cláudio.

Todavia, hoje em dia já existem livros que abordam de forma mais profunda a história de Boudica, principalmente obras de origem inglesa, que infelizmente não consegui ter acesso, logo, me limitei a contar um pouco sobre essa rainha guerreira, com base nos relatos de Tácito e Dião Cássio.

A rainha celta:

Os povos celtas se espalharam pela Europa a mais de dois mil anos atrás, o que incluiu uma leva de migrações de algumas tribos bretãs para o arquipélago da Grã-Bretanha. É preciso recordar que Bretanha é o nome de uma região hoje localizada na França, e foi a partir dos celtas bretões que seguiram para viver na Grã-Bretanha, que a ilha passou assim a se chamar. 

No caso de Boudica, não se sabe ao certo de que tribo ela pertencia, também se desconhece o nome de seu pai e mãe, e dos demais familiares. Até mesmo não se sabe o ano que tenha nascido, embora haja especulações para a data, dentre as quais é sugerido o ano de 46. No entanto, Boudica quando se tornou rainha, ela passou a governar na tribo dos Icenos. Uma das tribos que vivia no leste da ilha, na região da East Anglia.  


Em vermelho o território dos icenos.
Se por um lado o passado de Boudica é desconhecido, sua história na época como rainha também é pouco conhecida, pois os relatos romanos apenas destacam o momento no qual ela decidiu se revoltar contra Roma, e declarar guerra aos romanos. 

Nesse sentido, Dião Cássio descreveu Boudica um tanto com qualidades de guerreira, embora contestáveis por alguns. Já que não era comum mulheres celtas participarem de batalhas ou serem governantes, na descrição de Dião Cássio, Boudica foi descrita como sendo uma mulher alta, de olhar penetrante, voz imponente, longos cabelos ruivos, e portava uma longa lança (CÁSSIO, 1914, p. 85). 

Ilustração da rainha Boudica.
Percebe-se nessa descrição de Dião Cássio, que Boudica possui traços de guerreira, pois era uma mulher alta, de olhar intimidador e voz retumbante, digna de dar comando. Talvez, Cássio possa ter romantizado a aparência da rainha, a fim de reforçar os atributos como uma mulher forte, destemida, determinada a comandar sua tribo contra o Império Romano. No entanto, foi por tal descrição que ela se mantém conhecida. 


"Os escritores da Antiguidade, que escreveram sobre ela, tinham como função contar aos romanos, através de suas narrativas, os grandes feitos do Império. Eles faziam parte de uma sociedade que era desacostumada a ver uma mulher como governante e muito menos como comandante de um exército. Dessa forma, Boudica foi descrita por eles como uma mulher masculinizada, que tinha o tamanho, a voz e as armas de um homem, além da ineficácia de sua liderança". (BÉLO, 2011, p. 46).
  A revolta:

Por volta do ano 60, o marido de Boudica, o rei Prasutagus faleceu. No passado Prasutagus havia confrontado o poderio romano na revolta do ano de 47, mas após ser derrotado, decidiu assinar os termos de rendição e submissão, aceitando tornar-se súdito dos romanos. Nessa época, o império era governado por Cláudio (o tio de Nero). Os anos que se seguem, Prasutagus não voltou a apresentar ameaça a dominação romana na Grã-Bretanha, todavia, com seu falecimento, era de costume, que suas terras fossem passadas de herança ao Estado romano, e assim consolidando o acordo de submissão. Todavia, o rei quis que seus herdeiros (neste caso, duas filhas), fossem legalmente as detentoras daquelas terras. Na prática, as terras ainda se manteriam de posse dos icenos, mas a aliança com Roma, também se manteria. 

No entanto, com a morte do rei, o procurador da ilha, Deciano Cato, aproveitou-se que o governador da província romana da Bretanha, Gaio Suetônio Paulino, estava de viagem no que hoje é o País de Gales, onde o governador combatia na ilha de Mona (atual Anglesey) alguns druidas (Tácito, Anais XIV). Logo, com a ausência do governador, o procurador Deciano Cato reuniu algumas tropas e decidiu atacar a tribo dos icenos, a fim de obrigar que a rainha viúva passasse de vez suas terras para o governo romano. Todavia, Boudica negou-se a obedecer o procurador, então foi ordenado que ela fosse açoitada e suas duas filhas foram estrupadas. A vila foi saqueada, parte da família real foi feita escrava e alguns icenos foram mortos. Todavia, Cato deixou o local e se retirou. 

De acordo com Dião Cássio e Tácito, devido a essa afronta e violência, motivada por grande fúria e sede de vingança, Boudica decidiu declarar guerra aos romanos. Além desse motivo de vingança, Dião Cássio (1914, p. 85-86) transcreveu uma suposta fala da rainha icena, a qual diz que eles não deveriam mais tolerar serem escravos dos romanos, terem que se submeter as leis e a ordem deles; terem que pagar tributos ao império, terem que ceder suas posses, terem que pagar com seus corpos. Tácito também assinalou esse motivo político, no qual alegou que a revolta dos icenos, também teria sido motivada contra a escravidão imposta por Roma. 


Por tal viez, se percebe que além do motivo pessoal de vingança, Boudica teria alegado fatores políticos, incitando os icenos a se rebelarem contra a exploração romana. Na prática, talvez nunca saibamos o que ela realmente disse para incentivar seu povo, e até mesmo a tribo vizinha dos Trinovantes, a se unirem e declarar guerra aos romanos. 

As batalhas: 

De acordo com Dião Cássio (1914, p. 85) Boudica teria reunido um exército de 120 mil homens, provavelmente um número bem exagerado, isso se pensarmos que tais tribos não possuíriam muitos habitantes, além do fato que talvez a população da região não chegasse nem a 200 mil habitantes. Todavia, munida desse grande exército (grande mesmo para a época), a rainha decidiu atacar três cidades romanas. No entanto, embora ele faça tal menção, Dião Cássio, não deu muita atenção a comentar tais ataques, por sua vez, nos resta usar o relato de Tácito para conhecer sobre eles, pois ele também pouco escreveu sobre tais ataques, mesmo assim, forneceu-nos detalhes não vistos na obra de Cássio.

Sob os auspícios da deusa Andraste (a quem os romanos diziam equivaler a sua deusa Vitória), Boudica liderou seus exércitos, guardada pelas bençãos dessa deusa, indo atacar primeiro o acampamento de veteranos romanos em Camulodonum (atual Colchester), como assinalou Tácito. Tal acampamento militar que atuava como uma colônia para os veteranos de guerra (prática comum dos romanos, como forma de fixar colonos), se encontrava em terras dos Trinovantes, e tendo a rainha convecido tal tribo a se unir a sua causa, Camulodonum se tornou o primeiro alvo. 

Mapa com a localização do território dos Icenos e Trinovantes, além da localização de algumas cidades, em destaque Camulodunum.
Tácito também diz que naquela pequena cidade havia um templo erguido ao imperador Cláudio, e tal templo foi considerado pelos bretões como um monumento que representava a "tirania" do imperador romano sobre a Bretanha. Camulodonum era guardada pela Nona Legião Hispania, que deveria contar com cerca de 3 a 5 mil homens, mas de acordo com Tácito, tal número era bastante menor em comparação as forças inimigas, embora não se saiba quantos bretões Boudica levou consigo na ocasião. 

O legato da Nona Legião, Quinto Petilius Cerialis, chegou a enviar um pedido de socorro ao procurador Deciano Cato, pois o governador Suetônio Paulino, ainda estava em campanha; no entanto, Cato teria enviado apenas 200 homens para auxiliar na defesa. O templo foi saqueado e destruído, a cidade foi saqueada e incendiada. Ainda segundo Tácito, a Nona Legião quase foi totalmente dizimada. 

Após a derrota humilhante da Nona Legião e a perda de Camulodonum, o próximo alvo, foi a cidade de Londinium (atual Londres), localizada nas margens do rio Tâmisa, e conhecida como uma importante cidade mercantil da Bretanha. Na ocasião, o governador não pôde ajudar a população, e a cidade foi invadida, saqueada e sua população chachinada. 

Representação da cidade de Londinium.
Após o ataque a Londinium o próximo alvo, foi a cidade de Verulanium (atual Sant Albans), a qual Tácito dizia possuir pelo menos 70 mil habitantes. Segundo seu relato, os bretões (a quem ele se refere como bárbaros) caíram sobre a cidade de forma violenta, não poupondo homem ou mulher. Talvez ele possa ter exagerado, mas por sua narrativa, o ataque foi tão agressivo que a população foi passada a ferro e fogo, e os bretões não tiveram interesse em fazer prisioneiros ou escravos, mas apenas em matar e saquear.

Após o ataque a Verulanium, o governador da Bretanha, Suetônio reuniu as Décima Quarta e Vigésima legiões, para combater o exército de Boudica. A rainha viajando numa biga, em companhia de suas duas filhas, foi convocando outras tribos para se aliar em sua vingança e luta contra a opressão. Assim como Cássio trenscreveu uma suposta fala de Boudica, Tácito, também fez o mesmo, a qual segue o mesmo discurso, no qual a rainha incita as outras tribos celtas a se rebelarem contra os romanos. Neste ponto Dião Cássio (1914, p. 87) diz que Boudica teria reunido um exército de 230 mil homens. 

Estátua de Boudica em Londres. Essa estátua retrata o suposto momento que a rainha junto a suas filhas, partiram para reunir novas tribos na luta contra os romanos.
Tendo reunido as Legiões XIV e XX, o governador Suetônio se pôs em marcha para confrontar o exército de Boudica, em local hoje desconhecido e motivo ainda de pesquisa para tentar localizá-lo. As duas legiões deveriam ter em torno de 10 mil homens, logo, se tomarmos os números citados por Dião Cássio, tal contingente militar não teria a miníma chance contra um exército pelo menos dez vezes maior, no entanto, Tácito diz que isso não foi um empecilho para os romanos, pois segundo ele, os bretões tiveram uma baixa de 80 mil homens, enquanto os romanos perderam algo em torno de 400 soldados. 

Embora que em termos táticos, os romanos fossem superiores, a discrepância numérica e exorbitante. É bem provável que Tácito tenha deliberadamente alterado os valores para exaltar a glória romana, algo comum na História, principalmente na história dos grandes impérios e conquistadores.

De qualquer forma, independente de quanto soldados realmente lutaram nessa batalha, o veredito é que os romanos venceram. O governador Suetônio obteve uma vitória esmagadora, que pôs fim a revolta de Boudica, e qualquer outro possível foco de revolta. Além disso, Tácito disse que um dos motivos para tal derrota, deveu-se ao fato de que Boudica era uma mulher, e "naturalmente" as mulheres não tinham aptidão para a política e a guerra, logo, embora ela tenha conseguido reunir um grande exército, lhe faltava experiência e naturalidade para comandar. Dião Cássio diz que a rainha faleceu no no ano de 61, mas não apontou motivos; já Tácito, diz que a rainha teria cometido suicídio, ao tomar veneno.

Considerações finais:

Embora os romanos tenham conseguido por um fim na revolta das tribos bretãs, de acordo com os relatos de Tácito e Dião Cássio, Roma teve grandes baixas nessas quatro batalhas, principalmente baixas civis, pois estima-se que milhares foram mortos nos ataques, isso se tais relatos não tiverem exagerado em demasia. Por outro lado, a vitória também contribuiu para reforçar o controle de Roma no sul da ilha, embora que no Norte, no que hoje é a Escócia, os romanos nunca obtiveram sucesso na conquista, a ponto que no governo dos imperadores Adriano (117-138) e Antonino Pio (138-161) foram construídas muralhas para separar a Britannia da terra hostil dos pictos (um dos povos que habitava a Escócia).

Todavia, a vitória além de assegurar essa estabilidade no sul da Bretanha, também evitou um problema maior para o imperador Nero, que no passado chegou a cogitar abandonar a província. Mas se por um lado, Nero não teve maiores problemas com os bretões, ele não pôde dizer o mesmo quanto aos judeus, pois na província da Judeia, passaram a eclodir revoltas que durariam pelo menos dez anos.

Não obstante, embora Boudica seja lembrada na história romana como uma traidora e insurgente, na história britânica, ela passou a ser vista como uma heroína, principalmente através da literatura, pintura e escultura e da iniciativa de algumas rainhas, como Elizabeth I e Vitória, a quais tomaram a antiga rainha celta como fonte de inspiração.


"Logo depois que a rainha Vitória foi coroada, o artista Herry Courtney Selous, em 1843, pintou um retrato de Boudica para ela. A heroína aparece na pintura vestida com uma túnica, um xale esvoaçante e com o busto à mostra, gesticulando no campo de batalha como se chamasse pela presença da força dos guerreiros antes da batalha. Como a rainha Elizabeth I, a rainha Vitória utilizou da força dessa personagem como símbolo de liderança feminina, solicitando a construção de uma estátua em homenagem à guerreira, a qual foi levantada em Londres pelo artista Thomas Thornycroft, próxima à ponte de Westminster, às margens do rio Tâmisa, em frente ao parlamento britânico, em oposição ao Big Ben". (BÉLO, 2014, p. 109).



Sobre a representação de Boudica na memória, arte e história britânica, a historiadora brasileira Taís Pagoto Bélo, escreveu alguns artigos sobre o assunto, inclusive sua tese de doutorado foi sobre tal tema. Aos interessados sobre essa representividade e uso da imagem de Boudica, inclusive recentemente para atos políticos e sociais, como o movimento feminista, recomendo os trabalhos da historiadora Taís Bélo. Por sua vez, quem tiver interesse sobre a história de Boudica por outro viés metodológico, a melhor opção são as obras inglesas, algumas lançadas na década passada.
 
NOTA: A aparência de Boudica, segundo descrita por Dião Cássio, inspirou a criação da personagem Merida do desenho Valente (Brave), produzido pela Pixar e lançado em 2012.
NOTA 2: O nome da rainha Boudica ao longo da História foi escrito de distintas formas: Boudika, Buduica, Bonduica, Boadicea, Boadiceia, etc.
NOTA 3: O filme A Rainha da Era de Bronze (Queen Warrior) de 2003, consiste numa obra baseada na história de Boudica. 
NOTA 4: A rainha bretã é personagem na série Civilization, aparecendo em Civilization IV: Beyond the Sword (2007) e Civilization V: God & Kings (2012). 
NOTA 5: A rainha Boudica é uma vilã no jogo Ryse: Son of Rome (2013). 
NOTA 6: Boudica fez uma aparição especial no seriado Xena: a princesa guerreira (1995-2001), no episódio The Deliver, na terceira temporada em 1997. 



Referências Bibliográficas:
BÉLO, Taís Pagoto. Boudica e o uso de sua figura feminina. Arqueologia Pública, n. 4, 2011, p. 45-51.
BÉLO, Taís Pagoto. Um estudo preliminarsobre Boudica e a memória coletiva britânica. Cadernos da Lepaarq, vol. IX, n. 21, 2014, p. 105-121. 
CÁSSIO, Dião. Dio's Roman History - VIII. Translation Earnest Cary. London, William Heinemann, 1914. 9v
FRANZENO, Carlo M. Vida e Época de Nero. Tradução de Geir Campos e Moacyr Werneck de Castro. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1958. 
ROSTOVZEFF, R. História de Roma. Tradução de Waltenair Dutra. 5a ed, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1983. 
TÁCITO. The Annals, vol. XIV. Translation Alfred John Church and William Jackson Brodibb. Disponível em: http://classics.mit.edu/Tacitus/annals.html.

Link relacionado:
Nero, o difamado?
Os Povos Celtas

LINKS:
Download da tese Boudica e as facetas femininas ao longo do tempo (2014) de Tais Pagoto Bélo (é preciso se cadastrar para realizar o download)