Nos últimos anos voltou a tona a ideia de que Mansa Musa I, o imperador de Mali, teria sido o homem mais rico conhecido na História, cuja fortuna baseada principalmente em minas de ouro, equivaleria a bilhões de dólares ou talvez passando de 1 trilhão. Apesar dessa fama repetida exaustivamente em sites de jornalismo, curiosidades, blogues e até mesmo por historiadores e economistas, a bem da verdade, tudo isso não passa de especulação, sendo impossível calcular o tamanho de sua fortuna. Todavia, neste texto escrevi um pouco a respeito de seu próspero reinado e depois comentei sobre sua suposta imensa riqueza e os problemas envolvendo tal afirmação.
Mansa Musa I retratado como o "rei do ouro" em detalhe do Atlas Catalão (1375). |
O Império do Mali
O atual país do Mali, situado no noroeste do continente africano, possui suas fronteiras bem menores do que um dia foi no auge de sua história. Inicialmente o império surgiu de um pequeno reino situado próximo ao rio Níger, na vila de Niani (atualmente na Guiné). Tal localização hoje não é mais povoada, apesar de haver outras cidades no Mali com esse nome.
"Um dos reinos mais importantes da savana ocidental, sobretudo entre os séculos XIII e XV, era o Mali, localizado no alto do Níger. A origem desse reino está nos povos de língua mande, que viviam em um kafu – conjunto de aldeias cercadas por terras cultivadas no vale do Níger, que formavam pequenos estados, governados pelos famas -, donos da terra, descendentes dos primeiros habitantes da região". (MATTOS, 2009, p. 21-22).
Todavia, somente no século XIII teve início a expansão territorial desse reino medieval. No ano de 1235 o rei Sundiata Keita (1190-1255) derrotou seu inimigo, o rei Sumaoro Kante (?-1235) do povo Sosso, na Batalha de Kirina. Com a vitória, Sundiata conquistou as terras inimigas, mas convocou os famas de territórios vizinhos para uma assembleia que definiria o futuro dos povos Mandiga. A assembleia chamada de Carta de Kurukan Fuga devido a planície onde foi realizada, oficializou a vitória de Sundiata, sua reivindicação sobre as terras vizinhas e seu reconhecimento como mansa (imperador). (NIANE, 2010, p. 135).
Em seu reinado Mansa Sundiata Keita lançou as bases do Império do Mali, também chamado de Império Manden, o qual perdurou até o século XVI e em seu auge compreendia os atuais território do Mali, Serra Leoa, Senegal, Gâmbia, Guiné e Saara Ocidental. Tendo sido um dos mais poderosos e ricos reinos africanos durante a Idade Média. Durante seu governo de vinte anos, ele formalizou o Islão como religião oficial, ordenou a construção de escolas coriônicas, reavivou rotas comerciais, ordenou várias obras públicas, fortalecimento do exército, instituiu a organização estatal, administrativa e legislativa. Seus sucessores deram continuidade a tais feitos e seguiram com a expansão do reino. (NIANE, 2010, p. 135).
“O Mali incorporou ao seu domínio o que teria sido o Império de Gana, o país sosso, os territórios compreendidos pelos rios Gâmbia, Senegal e o alto Níger e também as minas de ouro de Bambuk e de Buré”. (MATTOS, 2009, p. 22).
Mapa do Império do Mali no século XIV. |
O reinado de Musa I
Kanku Musa I (?-1335) foi o décimo imperador do Mali, tendo sido sobrinho de Mansa Sundiata Keita e sendo lembrado por ter sido o mais rico de todos eles e por ter tido um próspero e forte reinado, já que seus antecessores governaram brevemente, tendo morrido em intrigas ou traições. Em seu governo iniciado por volta do ano de 1307, também teve início a era de ouro do império, período que perduraria alguns anos após sua morte e depois jamais retornou. Devido a riqueza controlada através do comércio transsariano onde se transportava principalmente sal, cobre, escravos, camelos, cavalos, noz-de-cola e havia também o controle de minas de ouro, algo que concedeu fama ao império. (NIANE, 2010, p. 165).
Durante seu governo, o mansa investiu na construção de escolas, mesquitas, quartéis, mercados, estradas, canais, mas entre as grandes obras realizadas destacam-se: a grande mesquita de Gao, a mesquita de Djinguereber e o palácio real de Tombuctu, a sala de audiência em Niani, a capital do império. Tais obras foram idealizadas pelo arquiteto egípcio al-Tuedjin, contratado pelo próprio Musa I depois de visitar o Egito. (NIANE, 2010, p. 168).
A Grande Mesquita de Djenné, em Tombuctu, construída em 1280, ampliada no governo de Mansa Musa I. |
As reformas empreendias em Gao, Tombuctu e Niani contribuíram para o crescimento dessas cidades, principalmente por se tornarem centros comerciais ainda mais importantes e no caso de Tombuctu, no século XV, a cidade começou a despontar como um centro educacional, possuindo várias escolas, uma universidade e uma biblioteca. Graças aos contatos comerciais e diplomáticos feito com governantes, nobres e estudiosos, Musa I patrocinou a viagem e estudos de artistas e professores, para as grandes cidades de seu país.
No entanto, pouco se sabe do governo de Kanku Musa I, e no caso, um dos acontecimentos mais lembrados de seu reinado foi sua pomposa peregrinação realizada à Meca, no ano de 1325.
“Essa peregrinação teve consequências
bastante importantes para a subsequente história do Sudão ocidental, região que
doravante passaria a ocupar a mente dos homens; Egito, Magreb, Portugal e as
cidades mercantis da Itália interessavam‑se cada vez mais pelo Mali. O próprio mansa
Mūsā, orgulhoso de seu poder, muito fez para que o Mali se afigurasse um
Eldorado aos olhos dos estrangeiros”. (NIANE, 2010, p. 167).
A peregrinação dourada
“Mansa Mūsā I preparou a viagem com
toda a minúcia requerida pela tradição, solicitando a todas as cidades mercantis
e províncias uma contribuição particular. Deixou Niani acompanhado por enorme
escolta; as cifras fornecidas pelos autores árabes podem parecer excessivas,
mas fazem entrever o poderio do soberano maninka: 60 mil carregadores e 500
servidores com vestimentas recamadas de ouro, cada um com uma bengala também de
ouro. No início do século XVI, Mahmūd Ka‘ti relata, segundo tradição já então
escrita, que o imperador ainda se encontrava em palácio quando a cabeça da
caravana chegava a Tombuctu. Mansa Mūsā I recebeu no Cairo as honras devidas a
um grande sultão; impunha‑se
pelo porte e por generosidade digna dos reis das Mil e uma noites. É um dos
raros soberanos de quem nos chegou uma descrição física”. (NIANE, 2010, p.
167).
“Era – escreveu al‑MakrĪzĪ – um rapaz de tez morena, fisionomia
agradável e de belo estilo, instruído no rito maliquita. Exibia‑se magnificamente
vestido e montado, entre seus companheiros; acompanhavam‑no mais de 10 mil
súditos. Levava presentes que maravilhavam o olhar, por sua beleza e esplendor”. (
Nas semanas que residiu no Cairo e em Meca, importantes cidades do Islão, o imperador esbanjou riqueza e provavelmente exagerou quanto a sua riqueza e façanhas. Fato esse que os cronistas muçulmanos costumam relatar a grande pompa do séquito de Musa I. Além de informarem que ele teria comprado mercadorias nessas cidades e até adquirido propriedades também.
“O grande peregrino atraiu à sua corte
numerosos homens de letras; ele próprio era um fino letrado árabe, mas servia‑se sempre de
intérpretes para falar com os árabes. Teve cádis, secretários e genuínos diwān,
mas só por ostentação. Depois dessa célebre peregrinação, os Marínidas de Fés e
as cidades comerciais do Magreb passaram a demonstrar vivo interesse pelo Mali,
havendo troca de presentes e embaixadas entre seus soberanos”. (NIANE, 2010, 170).
Crise na sucessão
Não se sabe ao certo a causa da morte de Musa I, tampouco sua idade precisa, mas estima-se que ele tivesse por volta de seus cinquenta anos, tendo governado por 28 anos. Como sucessor ele indicou seu filho Maghan I (c. 1280-1341), o qual governou por quase seis anos até que foi traído numa conspiração palaciana e assassinado em complô organizado por seu tio Suleyman, que assumiu como o décimo segundo monarca, passando a ser chamado de Mansa Suleyman Keita (?-1360).
Apesar dessa traição e intrigas palacianas, ambos os monarcas deram continuidade ao legado de Mansa Musa I, mantendo suas obras, investimentos no comércio, nas artes e na educação.
O homem mais rico da história?
No ofício do historiador é necessário saber que relatos sobre governantes e suas façanhas devem ser tomados com cautela, pois dependendo de quem escreveu a respeito, o autor poderia estar exaltando ou depreciando o mesmo. E por conta disso, podemos ter falsas impressões sobre acontecimentos e pessoas. Logo, para se evitar tal problema é preciso investigar - isso quando possível - os interesses de quem estava escrevendo. Pois evidentemente alguns autores eram contratados por monarcas e outros líderes para exaltar suas pessoas e governos. No caso de Mansa Musa I isso pode ter ocorrido, ainda mais, se considerar que a ideia de exaltar as façanhas de um líder seja prática antiga na História. A propaganda política - mesmo que mentirosa - existe há milênios.
Grande parte da riqueza de Kanko Musa I adviria das minas de ouro, depois do comércio e dos tributos. Porém, é impossível calcular quantas toneladas do precioso metal eram produzidas naquele tempo e seu preço de mercado. Além disso, é preciso considerar que no México e Peru, tivemos monarcas que também controlavam minas de ouro e prata, o que facilmente poderiam torná-los tão ricos como Musa, mas curiosamente eles nem se quer são lembrados. E no caso, também recordo de alguns soberanos do Império Monomotapa, situado no sul do continente africano, que também era conhecido por suas minas de ouro, mas nem por isso seus imperadores também são lembrados entre os mais ricos da História. Ou seja, há algo de estranho por trás dessa fixação de Musa I ter sido um "Midas africano".
Entretanto, os apoiadores de que Musa I tenha sido o mais rico homem da História, gostam de citar bastante a história da sua peregrinação à Meca, pois como todo bom muçulmano que se preze, é dever fazer isso pelo menos uma vez na vida. E tal peregrinação teria sido formada por milhares de pessoas entre soldados, nobres, embaixadores e escravos como citado anteriormente. É preciso levar em consideração vários aspectos antes de acreditar de primeira nos dados apresentados.
A comitiva de peregrinação do imperador, a qual atravessou o Saara, que é o maior deserto do mundo, suscita várias problemáticas, até hoje não respondidas. Para transportar um contingente de milhares de pessoas, demandaria uma excelente logística para poder suprir com comida e água não apenas as pessoas, mas os camelos e cavalos utilizados. Ou seja, se considerarmos que a distância de Mali para a Arábia Saudita é de mais de 5 mil quilômetros, isso em uma viagem feita a pé e a ritmo lento, resultaria numa jornada de meses, o que implica numa grande quantidade de alimentos e água para suprir milhares de pessoas. Em termos reais seria algo bem arriscado, sendo preferível o monarca ter viajado numa comitiva bem menor para se deslocar mais rápido.
Os relatos dizem que dezenas de camelos carregavam ouro em pó e objetos preciosos. No caso, o ouro é um metal pesado, e de fato, em forma de pó é mais fácil de transportá-lo, mas isso demanda forjas bastante quentes e ferreiros habilidosos para fazer essa transformação, a qual não era nada fácil de ser feita naquele tempo. Mas caso fosse optado carregar pepitas de ouro ou barras de ouro, isso tornaria a carga bastante pesada, retardando a viagem pelo deserto. E uma viagem que demora, demanda de mais suprimentos. Mesmo que alguns digam que devido a riqueza do imperador, dinheiro não era problema, ainda assim, devemos considerar a logística para se transportar comida e água por um vasto deserto.
Outro aspecto diz respeito que por onde passou, sobretudo no Egito, Musa I ordenava que ouro, joias e presentes fossem distribuídos aos pobres como ato de caridade. Isso pode ter acontecido, ainda mais que o monarca permaneceu na capital egípcia por semanas, mas também pode ter sido tremendamente exagerado pelos cronistas no intuito de propagar a imagem de grande benevolência do rei. Não sendo o primeiro caso a ocorrer na História. Entretanto é dito também que no Egito foi distribuído tanto ouro que isso inflacionou a economia local, entretanto, são afirmações que parecem bem exageradas. Até porque não dispomos de registros financeiros detalhados desse período para confirmar se os cronistas estavam realmente certos ou exageraram em seus relatos como forma de inflar a grande riqueza do soberano do Mali. Sem contar que o próprio monarca gabava-se de ser o "rei do ouro".
Sem adentrar a mais pormenores, apenas esses casos que expus, apresentam como é problemático defender Mansa Musa I como sendo o homem mais rico da História. A dúvida que levanto não diz respeito de ele ter sido rico, pois de fato ele o era, inclusive como visto anteriormente, ele investiu muito dinheiro no seu país, além de que uma peregrinação à Meca teria sido uma jornada bem cara, já que levaria meses de viagem.
Porém, o que quero deixar claro ao leitor é a problemática de afirmar que ele foi o mais rico da História e até as tentativas de quantificar sua fortuna, o que é praticamente impossível, até porque a economia hoje em dia funciona de forma diferente e o valor do ouro leva em consideração distintos fatores, os quais não necessariamente seriam aplicados no tempo de Musa I, consistindo dessa forma em mera especulação financeira que atrai jornalistas, economistas e historiadores.
NOTA: O nome de Musa I aparece sob outras grafias como Mussa ou Muçá.
Referências bibliográficas:
MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo, Contexto, 2009. (As sociedades africanas).
NIANE, Djibril Tamsir. O Mali e a segunda expansão manden. In: NIANE, Djibril Tamsir (ed.). História Geral da África IV: África do século XII ao XVI. 2a ed. revista. Brasília: UNESCO, 2010, p. 133-192
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