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Leandro Vilar

domingo, 22 de agosto de 2021

Mansa Musa I: o rei do ouro

Nos últimos anos voltou a tona a ideia de que Mansa Musa I, o imperador de Mali, teria sido o homem mais rico conhecido na História, cuja fortuna baseada principalmente em minas de ouro, equivaleria a bilhões de dólares ou talvez passando de 1 trilhão. Apesar dessa fama repetida exaustivamente em sites de jornalismo, curiosidades, blogues e até mesmo por historiadores e economistas, a bem da verdade, tudo isso não passa de especulação, sendo impossível calcular o tamanho de sua fortuna. Todavia, neste texto escrevi um pouco a respeito de seu próspero reinado e depois comentei sobre sua suposta imensa riqueza e os problemas envolvendo tal afirmação.

Mansa Musa I retratado como o "rei do ouro" em detalhe do Atlas Catalão (1375). 

O Império do Mali

O atual país do Mali, situado no noroeste do continente africano, possui suas fronteiras bem menores do que um dia foi no auge de sua história. Inicialmente o império surgiu de um pequeno reino situado próximo ao rio Níger, na vila de Niani (atualmente na Guiné). Tal localização hoje não é mais povoada, apesar de haver outras cidades no Mali com esse nome. 

"Um dos reinos mais importantes da savana ocidental, sobretudo entre os séculos XIII e XV, era o Mali, localizado no alto do Níger. A origem desse reino está nos povos de língua mande, que viviam em um kafu – conjunto de aldeias cercadas por terras cultivadas no vale do Níger, que formavam pequenos estados, governados pelos famas -, donos da terra, descendentes dos primeiros habitantes da região". (MATTOS, 2009, p. 21-22).

Todavia, somente no século XIII teve início a expansão territorial desse reino medieval. No ano de 1235 o rei Sundiata Keita (1190-1255) derrotou seu inimigo, o rei Sumaoro Kante (?-1235) do povo Sosso, na Batalha de Kirina. Com a vitória, Sundiata conquistou as terras inimigas, mas convocou os famas de territórios vizinhos para uma assembleia que definiria o futuro dos povos Mandiga. A assembleia chamada de Carta de Kurukan Fuga devido a planície onde foi realizada, oficializou a vitória de Sundiata, sua reivindicação sobre as terras vizinhas e seu reconhecimento como mansa (imperador). (NIANE, 2010, p. 135). 

Em seu reinado Mansa Sundiata Keita lançou as bases do Império do Mali, também chamado de Império Manden, o qual perdurou até o século XVI e em seu auge compreendia os atuais território do Mali, Serra Leoa, Senegal, Gâmbia, Guiné e Saara Ocidental. Tendo sido um dos mais poderosos e ricos reinos africanos durante a Idade Média. Durante seu governo de vinte anos, ele formalizou o Islão como religião oficial, ordenou a construção de escolas coriônicas, reavivou rotas comerciais, ordenou várias obras públicas, fortalecimento do exército, instituiu a organização estatal, administrativa e legislativa. Seus sucessores deram continuidade a tais feitos e seguiram com a expansão do reino. (NIANE, 2010, p. 135). 

“O Mali incorporou ao seu domínio o que teria sido o Império de Gana, o país sosso, os territórios compreendidos pelos rios Gâmbia, Senegal e o alto Níger e também as minas de ouro de Bambuk e de Buré”. (MATTOS, 2009, p. 22).

Mapa do Império do Mali no século XIV. 

O reinado de Musa I

Kanku Musa I (?-1335) foi o décimo imperador do Mali, tendo sido sobrinho de Mansa Sundiata Keita e sendo lembrado por ter sido o mais rico de todos eles e por ter tido um próspero e forte reinado, já que seus antecessores governaram brevemente, tendo morrido em intrigas ou traições. Em seu governo iniciado por volta do ano de 1307, também teve início a era de ouro do império, período que perduraria alguns anos após sua morte e depois jamais retornou. Devido a riqueza controlada através do comércio transsariano onde se transportava principalmente sal, cobre, escravos, camelos, cavalos, noz-de-cola e havia também o controle de minas de ouro, algo que concedeu fama ao império. (NIANE, 2010, p. 165). 

Durante seu governo, o mansa investiu na construção de escolas, mesquitas, quartéis, mercados, estradas, canais, mas entre as grandes obras realizadas destacam-se: a grande mesquita de Gao, a mesquita de Djinguereber e o palácio real de Tombuctu, a sala de audiência em Niani, a capital do império. Tais obras foram idealizadas pelo arquiteto egípcio al-Tuedjin, contratado pelo próprio Musa I depois de visitar o Egito. (NIANE, 2010, p. 168). 

A Grande Mesquita de Djenné, em Tombuctu, construída em 1280, ampliada no governo de Mansa Musa I. 

As reformas empreendias em Gao, Tombuctu e Niani contribuíram para o crescimento dessas cidades, principalmente por se tornarem centros comerciais ainda mais importantes e no caso de Tombuctu, no século XV, a cidade começou a despontar como um centro educacional, possuindo várias escolas, uma universidade e uma biblioteca. Graças aos contatos comerciais e diplomáticos feito com governantes, nobres e estudiosos, Musa I patrocinou a viagem e estudos de artistas e professores, para as grandes cidades de seu país. 

No entanto, pouco se sabe do governo de Kanku Musa I, e no caso, um dos acontecimentos mais lembrados de seu reinado foi sua pomposa peregrinação realizada à Meca, no ano de 1325. 

“Essa peregrinação teve consequências bastante importantes para a subsequente história do Sudão ocidental, região que doravante passaria a ocupar a mente dos homens; Egito, Magreb, Portugal e as cidades mercantis da Itália interessavamse cada vez mais pelo Mali. O próprio mansa Mūsā, orgulhoso de seu poder, muito fez para que o Mali se afigurasse um Eldorado aos olhos dos estrangeiros”. (NIANE, 2010, p. 167). 

A peregrinação dourada

“Mansa Mūsā I preparou a viagem com toda a minúcia requerida pela tradição, solicitando a todas as cidades mercantis e províncias uma contribuição particular. Deixou Niani acompanhado por enorme escolta; as cifras fornecidas pelos autores árabes podem parecer excessivas, mas fazem entrever o poderio do soberano maninka: 60 mil carregadores e 500 servidores com vestimentas recamadas de ouro, cada um com uma bengala também de ouro. No início do século XVI, Mahmūd Ka‘ti relata, segundo tradição já então escrita, que o imperador ainda se encontrava em palácio quando a cabeça da caravana chegava a Tombuctu. Mansa Mūsā I recebeu no Cairo as honras devidas a um grande sultão; impunhase pelo porte e por generosidade digna dos reis das Mil e uma noites. É um dos raros soberanos de quem nos chegou uma descrição física”. (NIANE, 2010, p. 167). 

“Era – escreveu alMakrĪzĪ – um rapaz de tez morena, fisionomia agradável e de belo estilo, instruído no rito maliquita. Exibiase magnificamente vestido e montado, entre seus companheiros; acompanhavamno mais de 10 mil súditos. Levava presentes que maravilhavam o olhar, por sua beleza e esplendor”. ((NIANE, 2010, p. 168). 

Nas semanas que residiu no Cairo e em Meca, importantes cidades do Islão, o imperador esbanjou riqueza e provavelmente exagerou quanto a sua riqueza e façanhas. Fato esse que os cronistas muçulmanos costumam relatar a grande pompa do séquito de Musa I. Além de informarem que ele teria comprado mercadorias nessas cidades e até adquirido propriedades também. 

“O grande peregrino atraiu à sua corte numerosos homens de letras; ele próprio era um fino letrado árabe, mas serviase sempre de intérpretes para falar com os árabes. Teve cádis, secretários e genuínos diwān, mas só por ostentação. Depois dessa célebre peregrinação, os Marínidas de Fés e as cidades comerciais do Magreb passaram a demonstrar vivo interesse pelo Mali, havendo troca de presentes e embaixadas entre seus soberanos”. (NIANE, 2010, 170). 

Crise na sucessão

Não se sabe ao certo a causa da morte de Musa I, tampouco sua idade precisa, mas estima-se que ele tivesse por volta de seus cinquenta anos, tendo governado por 28 anos. Como sucessor ele indicou seu filho Maghan I (c. 1280-1341), o qual governou por quase seis anos até que foi traído numa conspiração palaciana e assassinado em complô organizado por seu tio Suleyman, que assumiu como o décimo segundo monarca, passando a ser chamado de Mansa Suleyman Keita (?-1360). 

Apesar dessa traição e intrigas palacianas, ambos os monarcas deram continuidade ao legado de Mansa Musa I, mantendo suas obras, investimentos no comércio, nas artes e na educação. 

O homem mais rico da história? 

No ofício do historiador é necessário saber que relatos sobre governantes e suas façanhas devem ser tomados com cautela, pois dependendo de quem escreveu a respeito, o autor poderia estar exaltando ou depreciando o mesmo. E por conta disso, podemos ter falsas impressões sobre acontecimentos e pessoas. Logo, para se evitar tal problema é preciso investigar - isso quando possível - os interesses de quem estava escrevendo. Pois evidentemente alguns autores eram contratados por monarcas e outros líderes para exaltar suas pessoas e governos. No caso de Mansa Musa I isso pode ter ocorrido, ainda mais, se considerar que a ideia de exaltar as façanhas de um líder seja prática antiga na História. A propaganda política - mesmo que mentirosa - existe há milênios. 

Grande parte da riqueza de Kanko Musa I adviria das minas de ouro, depois do comércio e dos tributos. Porém, é impossível calcular quantas toneladas do precioso metal eram produzidas naquele tempo e seu preço de mercado. Além disso, é preciso considerar que no México e Peru, tivemos monarcas que também controlavam minas de ouro e prata, o que facilmente poderiam torná-los tão ricos como Musa, mas curiosamente eles nem se quer são lembrados. E no caso, também recordo de alguns soberanos do Império Monomotapa, situado no sul do continente africano, que também era conhecido por suas minas de ouro, mas nem por isso seus imperadores também são lembrados entre os mais ricos da História. Ou seja, há algo de estranho por trás dessa fixação de Musa I ter sido um "Midas africano". 

Entretanto, os apoiadores de que Musa I tenha sido o mais rico homem da História, gostam de citar bastante a história da sua peregrinação à Meca, pois como todo bom muçulmano que se preze, é dever fazer isso pelo menos uma vez na vida. E tal peregrinação teria sido formada por milhares de pessoas entre soldados, nobres, embaixadores e escravos como citado anteriormente. É preciso levar em consideração vários aspectos antes de acreditar de primeira nos dados apresentados.

A comitiva de peregrinação do imperador, a qual atravessou o Saara, que é o maior deserto do mundo, suscita várias problemáticas, até hoje não respondidas. Para transportar um contingente de milhares de pessoas, demandaria uma excelente logística para poder suprir com comida e água não apenas as pessoas, mas os camelos e cavalos utilizados. Ou seja, se considerarmos que a distância de Mali para a Arábia Saudita é de mais de 5 mil quilômetros, isso em uma viagem feita a pé e a ritmo lento, resultaria numa jornada de meses, o que implica numa grande quantidade de alimentos e água para suprir milhares de pessoas. Em termos reais seria algo bem arriscado, sendo preferível o monarca ter viajado numa comitiva bem menor para se deslocar mais rápido. 

Os relatos dizem que dezenas de camelos carregavam ouro em pó e objetos preciosos. No caso, o ouro é um metal pesado, e de fato, em forma de pó é mais fácil de transportá-lo, mas isso demanda forjas bastante quentes e ferreiros habilidosos para fazer essa transformação, a qual não era nada fácil de ser feita naquele tempo. Mas caso fosse optado carregar pepitas de ouro ou barras de ouro, isso tornaria a carga bastante pesada, retardando a viagem pelo deserto. E uma viagem que demora, demanda de mais suprimentos. Mesmo que alguns digam que devido a riqueza do imperador, dinheiro não era problema, ainda assim, devemos considerar a logística para se transportar comida e água por um vasto deserto. 

Outro aspecto diz respeito que por onde passou, sobretudo no Egito, Musa I ordenava que ouro, joias e presentes fossem distribuídos aos pobres como ato de caridade. Isso pode ter acontecido, ainda mais que o monarca permaneceu na capital egípcia por semanas, mas também pode ter sido tremendamente exagerado pelos cronistas no intuito de propagar a imagem de grande benevolência do rei. Não sendo o primeiro caso a ocorrer na História. Entretanto é dito também que no Egito foi distribuído tanto ouro que isso inflacionou a economia local, entretanto, são afirmações que parecem bem exageradas. Até porque não dispomos de registros financeiros detalhados desse período para confirmar se os cronistas estavam realmente certos ou exageraram em seus relatos como forma de inflar a grande riqueza do soberano do Mali. Sem contar que o próprio monarca gabava-se de ser o "rei do ouro". 

Sem adentrar a mais pormenores, apenas esses casos que expus, apresentam como é problemático defender Mansa Musa I como sendo o homem mais rico da História. A dúvida que levanto não diz respeito de ele ter sido rico, pois de fato ele o era, inclusive como visto anteriormente, ele investiu muito dinheiro no seu país, além de que uma peregrinação à Meca teria sido uma jornada bem cara, já que levaria meses de viagem. 

Porém, o que quero deixar claro ao leitor é a problemática de afirmar que ele foi o mais rico da História e até as tentativas de quantificar sua fortuna, o que é praticamente impossível, até porque a economia hoje em dia funciona de forma diferente e o valor do ouro leva em consideração distintos fatores, os quais não necessariamente seriam aplicados no tempo de Musa I, consistindo dessa forma em mera especulação financeira que atrai jornalistas, economistas e historiadores. 

NOTA: O nome de Musa I aparece sob outras grafias como Mussa ou Muçá. 

Referências bibliográficas: 

MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo, Contexto, 2009. (As sociedades africanas).

NIANE, Djibril Tamsir. O Mali e a segunda expansão manden. In: NIANE, Djibril Tamsir (ed.). História Geral da África IV: África do século XII ao XVI. 2a ed. revista. Brasília: UNESCO, 2010, p. 133-192

Links relacionados: 

África Dourada: Tombuctu, Zanzibar e o Grande Zimbábue

Monomotapa: o reino das minas de ouro

domingo, 15 de agosto de 2021

O Farol de Alexandria

Por séculos ele foi o maior farol do mundo e uma das estruturas mais altas já construídas pelo homem no mundo antigo e medieval. Sua imponência e primor da engenharia renderam ao farol alexandrino o posto de uma das 7 Maravilhas do Mundo Antigo. Neste texto apresentei um pouco da história desse icônico farol.

Alexandria do Egito

A cidade foi fundada em 331 a.C por Alexandre, o Grande (356-323 a.C), sendo uma das várias cidades que recebiam o nome do monarca conquistador, apesar que foi a única que conservou esse nome até os dias de hoje. Alexandre ficou poucos meses no Egito, tendo visitado oráculos e conhecido o norte do país, retornou para a Ásia para dar seguimento as suas batalhas contra o imperador persa Dario III. Quase trinta anos se passaram quando o general Ptolomeu (366-283 a.C) assumiu o trono do Egito em 303 a.C, dando início a Dinastia Ptolomaica que governaria as terras egípcias por quase três séculos. 

Em seu reinado de vinte anos, Ptolomeu lançou definitivamente as bases para a helenização do Egito, ou pelo menos parte dele, tornando Alexandria sua capital oficial, uma cidade que parecia mais com uma cidade grega do que egípcia. Seu filho e sucessor Ptolomeu II Filadelfo (309-246 a.C), deu continuidade a expansão da cidade, e uma das coisas que ele objetivou fazer foi a expansão do porto. Alexandria havia se tornado porto mais movimentado do Egito, necessitando se adequar a esse crescimento, além disso, aquela costa possuía arrecifes perigosos e o farol da época era pequeno. 

Porém, a ideia de Ptolomeu II não foi construir apenas um farol, mas construir o maior farol do mundo. Uma estrutura tão grandiosa na qual qualquer embarcação a tantos quilômetros de distância, conseguiria ver o farol de dia ou de noite. Além disso, o farol seria um monumento para coroar Alexandria, a então joia do Egito Ptolomaico. 

O farol gigante

No ano de 280 a.C teve início as obras do colossal farol alexandrino. O faraó Ptolomeu II contratou o arquiteto e engenheiro grego Sóstrato de Cnido para projetar a enorme estrutura. Não se conhece o trabalho dele, mas sabe-se que de acordo com autores antigos como Estrabão e Plínio, Sóstrato gozava de boa reputação na corte ptolomaica, além de ter talento reconhecido. O projeto encomendado era grandioso: um farol com mais de 100 metros de alturas e 30 metros de largura, uma obra bastante difícil e cara. O local escolhido foi uma pequena ilha situada a noroeste do porto de Alexandria, chamada de Faros. O nome da ilha acabou tornando-se sinônimo de farol ainda na Antiguidade e originando essa palavra em alguns idiomas.  

Gravura imaginando como seria o farol de Alexandria.

A ilha de Faros foi ligada ao continente por um mole, para facilitar o transporte dos pesados blocos de pedra que foram utilizados na sua construção, assim como, para reduzir o acesso de embarcações no porto, pois outro mole oposto foi construído, criando uma única entrada no porto. Todavia, praticamente nada se sabe sobre a construção dessa elevada estrutura, entretanto, devido a ser uma obra bastante cara para a época, ela demorou anos para ficar pronta. Não se sabe exatamente quanto tempo as obras levaram, mas houve interrupções devido a falta de verbas e problemas no país, todavia, estima-se que as obras do gigantesco farol demoraram entre 10 a 15 anos para serem concluídas, sendo sua inauguração ainda realizada durante o reinado de Ptolomeu II. 

O grande farol estando pronto, passou a operar. No topo situava-se uma grande estrutura feita para queimar uma enorme pira, que permitisse gerar uma boa quantidade de luz para ser visível a distância à noite. A chama do farol era alimentada com lenha e óleos. No interior funcionavam depósitos para o combustível usado, mas também existiriam dependências para abrigar a guarnição ali estabelecida. 

Esquemas do farol de Alexandria com base nos relatos que o descreviam. O primeiro desenho o retrata seguindo o padrão grego-egípcio, os outros dois desenhos são baseados em descrições árabes das reformas que foram empreendidas. 

Uma estrutura que durou séculos

Como dito anteriormente, pouco se sabe sobre a história do farol, pois se relatórios sobre suas obras ou algum relato de sua história, se foram guardados na Biblioteca de Alexandria, provavelmente queimaram junto a milhares de outros papiros. Sendo assim, o que dispomos são de breve descrições de viajantes ou estudiosos romanos, gregos, árabes, persas, etc. que relataram sobre o farol, mas sem detalhar sua história. 

Na época de Cleópatra VII, isso no século I a.C, o farol havia ganhado uma fortificação em seu entorno, com a construção de um pequeno forte que servia de base militar em uma das entradas do porto. Além disso, de acordo com moedas romanas, o farol possuiria estátuas no topo. Historiadores sugerem que seriam estátuas dos deuses Poseidon, ou Tritão ou Zeus

Moedas romanas do reinado do imperador Antonino Pio (r. 138-161), retratando o farol alexandrino. 

Entretanto, não se sabe quantas obras foram realizadas em sua estrutura ao longo dos anos, apesar que tenha-se relatos que o farol passou por reformas devido a velhice da estrutura, mas também por danos causados por conta de terremotos, especialmente os ocorridos em 956, 1303 e 1323, os quais teriam causado forte abalo a sua estrutura, como informam relatos árabes. No entanto, tais relatos são interessantes também, por revelar que em pleno século XIV, o farol ainda estava de pé e funcionando. Tendo sido ele construído mil anos antes. 

O engenho greco-egípcio para construir uma estrutura robusta a fim de durar séculos, assim como resistir as intempéries e terremotos era formidável, por isso que os gregos antigos o consideraram uma das Sete Maravilhas. Afinal, o Farol de Alexandria conseguiu resistir por quase mil trezentos anos. Condição essa que somente após o forte terremoto de 1323 a estrutura entrou em colapso tendo desabado no mar em data incerta. Não se conhecem relatos específicos sobre sua queda.  

Todavia, o governante da época, o sultão Qaitbay (r. 1468-1496) ordenou que o farol não fosse reconstruído, por ser algo inviável devido ao estrago causado pelo terremoto, no entanto, os blocos de pedra que ainda ficaram em terra e no raso, poderiam ser reaproveitados, com isso ele ordenou que uma nova fortificação fosse erigida em Faros, algo que teria tido início em 1480. 

Após tal acontecimento o farol passou a ser lembrado apenas nas pinturas e livros de história. Somente em 1968 é que uma expedição arqueológica foi realizada no local para encontrar ruínas submersas, obtivendo sucesso no caso. Todavia, nesses séculos desde que o farol desabou, o relevo de Faros mudou drasticamente. O avanço do nível do mar cobriu localidades antes fora da terra, embora que a Cidadela de Qaitbay ainda esteja de pé. 

A Cidadela de Qaitbay, em Alexandria. Ela começou a ser construída em 1480, utilizando-se blocos de pedra das ruínas do farol. 

NOTA: O farol chamado Torre de Hércules, localizado em La Corunha, na Espanha, foi construído durante o Império Romano, entre os séculos I e II d.C, sendo na atualidade o farol mais antigo do mundo ainda em uso. Sua estrutura foi baseada no farol de Alexandria. 
NOTA 2: No jogo Assassin's Creed: Origins (2017) é possível visitar, entrar e escalar o Farol de Alexandria. 
NOTA 3: A atual bandeira e brasão de armas de Alexandria, retratam o famoso farol. Escolhido como símbolo da cidade. 

Referências bibliográficas: 
BAKER, Curtis. The Lighthouse at Pharos - A Narrative. Tenor of Our Times, vol. 6, 2017, p. 24-36. 
KHALIL, Emad. The navy of Ptolemaic Alexandria. In: ZEREFOS, Christos S; VARDINOYANNIS, Marianna V (eds.). Hellenestic Alexandria: Celebrating 24 Centuries. Oxford, Archaeopress Publishing LTD, 2018, p. 13-18. 
MCKENZIE, Judith. Architecture of Alexandria and Egypt 300 BC - AD 700. Yale, Yale University Press, 2007. 
VITTI, Paolo. Gigantic and structurally sound: the lighthouse on the island of Pharos and the minarets of western islam. In: ZEREFOS, Christos S; VARDINOYANNIS, Marianna V (eds.). Hellenestic Alexandria: Celebrating 24 Centuries. Oxford, Archaeopress Publishing LTD, 2018, p. 227-238. 


sexta-feira, 6 de agosto de 2021

As múmias incas

Embora as múmias egípcias sejam as mais famosas no mundo, no entanto, outros povos pelo mundo realizaram as práticas de mumificação. Neste texto veremos um pouco da história sobre as múmias feitas pelo povo sul-americano, os Incas, os quais com métodos próprios somados ao clima seco e frio dos Andes, permitiu legar múmias que duraram séculos. 

Fotografia que fiz de uma múmia inca no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2012. Essa múmia foi destruída no incêndio em 2018. 

O que são múmias? 

Quando falamos em múmias normalmente é comum vir em mente o exemplo egípcios com suas múmias enfaixadas e guardadas em sarcófagos, no entanto, existem diferentes formas de se fazer múmias. Essencialmente uma múmia pode ser de pessoas ou animais, em que consiste na preservação dos restos mortais de partes do corpo ou do corpo inteiro. Nesse sentido, a múmia consiste num corpo que possui bastante anos, podendo ter décadas ou milênios, mas que não se deteriorou plenamente, tendo conservado seus tecidos, cabelos, pelos e ossos; em alguns casos, há múmias que também apresentam a conservação de trajes, acessórios e objetos. 

Assim, temos duas formas para se fazer múmias, a primeira são as chamadas múmias naturais, ou seja, foram oriundas de processos naturais como frio, secura, calor, umidade, se originando a partir de pessoas que morreram em montanhas, desertos, pântanos, etc. Essas múmias naturais podem ter se formado acidentalmente a partir de pessoas que se feriram, adoeceram ou foram mortas nessas localidades, ou surgiram de forma intencional, em que o corpo foi deixado ali para ser preservado. 

O segundo tipo trata-se da mumificação artificial, feita a partir de técnicas diversas, somadas ao uso de processos químicos e depois pode-se usar também condições ambientes como baixas temperaturas, baixa umidade e locais secos para ajudar a preservar os corpos. A mumificação artificial conta com diferentes tipos de métodos que envolvem remoção de órgãos, uso de sal, ervas, bandagens, resinas, secar o corpo ao sol, etc. 

Entre algumas culturas como a dos Incas e Egípcios, a mumificação teve um papel importante, sendo mais difundida no caso egípcio. Porém, outros povos também adotaram em menor ou maior grau o uso de mumificação, mesmo que fosse restrita para governantes ou sacerdotes. No caso inca e egípcio observou-se o uso da mumificação de forma mais ampla, atingindo diferentes camadas sociais daqueles povos, apesar que para intentos diferentes, pois enquanto no Egito Antigo a religião ditava que o corpo deveria ser preservado para a futura ressureição, as múmias incas como veremos adiante, tinham outro propósito. 

Os Incas

Antes falar sobre as múmias desse povo, decidi fazer um breve resumo apresentando quem foram eles. Os incas eram um povo rural que teria surgido na região de Cusco, no Peru, por volta do século XII, formando uma cidade-estado baseada numa monarquia teocrática, em que os monarcas não apenas possuíam funções religiosas, mas eram a conexão com os deuses e até encarados como sendo de origem divina. 

O reino inca cresceu por duzentos anos até que a partir de 1438, o monarca Pachacuti (1408-1474) deu início a uma massiva campanha de expansão, sendo continuada por seus sucessores. As conquistas militares do longo governo de Pachacuti criaram o Império Inca (1438-1533), tendo sido o mais extenso império indígena na América do Sul e um dos maiores das Américas, englobando o Peru, Equador, sul da Colômbia, oeste da Bolívia, norte do Chile e noroeste da ArgentinaEmbora tenha chegado ao fim com a invasão e colonização espanhola.

Mapa mostrando a extensão máxima alcançada pelo Império Inca na primeira metade do século XVI. 

Os Incas desenvolveram um governo estratificado e com certo grau de burocracia, consistindo numa monarquia centralizadora e teocrática, mas possuindo cargos públicos e de governo. Embora não tenham desenvolvido a escrita, eles desenvolveram um sistema de cálculos e contagem únicos, baseado nos quipos. Permitindo o controle econômico do país e até mesmo censitário e cronológico. 

Sua religião era politeísta, possuindo templos, festivais, casta sacerdotal organizada, além de fazer uso de sacrifícios de animais e humanos. A sociedade era estratificada entre a nobreza, o alto clero, a população livre no geral e na base estavam os escravos. 

A língua oficial era o quíchua, embora como o império governava outros povos, falava-se também outros idiomas em determinadas localidades. Os incas também desenvolveram a arquitetura e a engenharia, construindo cidades de pedra, terraços, canais, pontes etc. Eles também possuíam conhecimentos agrônomos para o cultivo de diferentes plantas em altitudes elevadas. 

As múmias incas

Entra a cultura dos incas as múmias não possuíam uma condição de estarem relacionadas a uma crença difundida de conservar os corpos para uma ressurreição futura, como se via no Egito Antigo, para os incas mumificar determinadas pessoas era algo que também possuía uma função religiosa, mas associada com o culto aos mortos e sacrifícios humanos

Rivera (2017, p. 13) comenta que o culto de nobres e imperadores incas, parece ter sido prática instituída pelo imperador Pachacute, responsável pela criação do império. Durante seu longo reinado, o monarca incentivou a criação de múmias de nobres e sacerdotes, as quais eram preservadas em templos para serem alvo de culto, em que honrar os mortos seria uma maneira de se pedir suas bênçãos e intervenção perante os deuses. A prática de cultuar os mortos é bastante antiga e existe em diferentes continentes, sendo encontradas entre várias religiosos e povos. 

As múmias incas eram expostas em templos, covas, tumbas, mas também participavam de procissões, rituais festivais, marcando a presença desses governantes ou membros da realeza; lembrando que o imperador, chamado de Sapa Inca, era considerado de origem divina, logo, seus familiares diretos possuíam ligação com o sagrado naquela religião. Além disso, essas múmias serviam para marcar presença dos falecidos nos acontecimentos atuais, mostrando que embora já tivessem morrido, seus corpos santificados estavam ali, preservados, podendo ser vistos e tocados. Passando a possuir um simbolismo fúnebre para aquela religião. (RIVIERA, 2017, p. 14-15). 

Duas múmias de Llulaillaco com suas oferendas. Elas foram descobertas em 1999, num vulcão no Chile. 

As múmias incas recebiam oferendas em alimentos e bebidas, além de outros objetos e roupas. Os ritos relacionados a elas buscavam prosperidade, proteção e fertilidade para o campo e os animais. Havia também a crença que se os ritos não fossem devidamente feitos ou as múmias fossem afrontadas ou danificadas, isso atiçaria a ira de sua alma, trazendo azar e infortúnios ao ofensor. Além disso, acreditava-se que manter essas múmias por perto poderia assegurar a proteção contra doenças e pragas. (CERUTI, 2012, p. 90-91). 

O culto as múmias entre os incas permaneceu mesmo após o fim do seu império, como relataram cronistas espanhóis da segunda metade do século XVI, os quais se mostravam horrorizados com essa prática dita pagã e bárbara, pois para a concepção deles aquilo era idolatria pura. Além de se considerar o fato que após a conquista do império, teve início a cristianização dos povos andinos, sendo forçados a aderir ao catolicismo, logo, a presença de antigos ritos e crenças era um empecilho para a difusão da religião dos conquistadores, por conta disso, tais antigas crenças deveriam ser proibidas e apagadas da História.

Apesar do fato de haver aversão de parte dos espanhóis pelo culto as múmias, no entanto, nem todas foram destruídas, algumas inclusive foram preservadas e até expostas como objetos de curiosidade, como algumas múmias que foram levadas para o Hospital San Andrés, em 1560, sendo exibidas como curiosidade para o público espanhol. Elas ficaram alguns anos em exposição depois foram guardadas e enterradas. Algumas nunca mais foram encontradas e outras foram recuperadas. (ZIEMENDORFF, FIGUEROA, CENTENO, 2019, p. 14).

Todavia, nem todas as múmias incas eram nobres ou membros do alto clero, algumas eram pessoas que foram sacrificadas aos deuses, o que poderia incluir crianças e adolescentes. Um exemplo famosos são as chamadas crianças de Llulaillaco, encontradas em 1999 numa caverna no vulcão homônimo, na divisa entre o Chile e Argentina. Tratam-se de uma adolescente por volta de seus quinze anos, uma menina de cerca de seis anos e o menino teria em torno dos sete anos, tendo sido encontrados a 6.739 metros de altura, um dos picos mais altos das Américas. Devido ao ar rarefeito e seco e o frio, as múmias ficaram bem conservadas. Inclusive os incas costumavam se valer do ambiente frio e seco dos Andes para realizar a mumificação. 

As três múmias de Llulaillaco, da esquerda para direita: A Donzela, o Menino e a Menina do Raio. 

Além das três múmias, cem objetos deixados como oferendas foram encontrados ao redor, indicando que aquele espaço teria servido em épocas remotas como um santuário, apesar da elevada altitude. 

“Asimismo, se recuperaron alrededor de 100 objetos depositados como ofrendas asociadas, incluyendo estatuillas antropomorfas de oro, plata y valva de molusco con miniaturas textiles y tocados de plumas; figurinas representando camélidos andinos -llamas y vicuñas- vasijas y platos de cerámica; vasos y cucharas de madera, bolsas tejidas conteniendo hojas de coca y alimentos”. (CERUTI, 2012, p. 93). 


As múmias de Llulaillaco são exemplo de sacrifício humano, em que análises feitas a partir do estômago e tecidos das crianças, revelou que elas foram preparadas para serem sacrificadas. No caso, a prática de sacrifício de pessoas era comum entre os Incas, embora não fosse tão grande como vista entre os maias e astecas. Apesar que existam relatos de várias pessoas sacrificadas em determinadas ocasiões. Todavia, as múmias de Llulaillaco indicam que faziam parte da nobreza devido a terem tido uma boa nutrição e estarem vestidas com roupas caras. (CERUTI, 2012, p. 95). 

A múmia da Donzela de Llulaillaco, durante exames em 2007. A partir de alguns ângulos dá a impressão que a garota esteja viva e apenas dormindo. 

Tais múmias também mostram que a adolescente e as crianças teriam recebido folhas de coca para serem entorpecidos ao longo de alguns meses, como parte do preparo para o sacrifício, depois disso, estando drogados, eles foram conduzidos até a montanha, onde passaram por outro ritual para serem executados. Em geral as pessoas sacrificadas eram mortas por estrangulamento ou acertadas por um porrete na cabeça. Devido as múmias de Llulaillaco terem sido sacrificadas em elevada altitude e possível que o ar rarefeito possa ter contribuído para a morte delas. Atualmente essas múmias estão em exposição no Museu de Arqueologia de Alta Montanha de Salta (MAAM), na Argentina. 

Referências bibliográficas

CERUTI, María Constanza. Los niños del Llullaillaco y otras momias andinas: salud, folclore, identidade. Scripta Ethnologica, vol. XXXIV, 2012, p. 89-104.

ISIDRO, A. Las momias: tipología, historia y patalogíaRev. Esp. Antrop. Fis. n. 26, 2006, p. 37-62. 

ZIEMENDORFF, Stefan; FIGUEROA, Mario Millones; CENTENO, Edwin Greenwich. Las momias reales incaicas en el hospital de san andrés: su permanencia e identificación. Historia y Cultura, n. 30, 2019, p. 13-49.