D. Pedro II tradutor: análise do processo criativo
Dr. Sergio Romanelli
Dr. Adriano Mafra
Dra. Rosane de Souza
Introdução
O
projeto “D. Pedro II: um tradutor Imperial”, vinculado ao Núcleo de Estudos do
Processo Criativo (NUPROC – UFSC, http://www.nuproc.cce.ufsc.br), pretende
divulgar a atividade intelectual deste personagem ligado à história do Brasil e
de Portugal, mas pouco citado e conhecido por sua atuação enquanto tradutor. Pretende-se analisar as traduções literárias, de várias línguas clássicas e
modernas, realizadas pelo imperador e ignoradas pelos registros oficiais que
focaram notadamente seus atos políticos e administrativos. O
objetivo deste projeto consiste na reconstrução não somente do perfil de
tradutor de D. Pedro II, de suas ideias e atitudes acerca da atividade
tradutória, mas também no estudo daquela rede única de contatos, leituras e
influências procedentes de várias culturas, não somente europeias, que o
imperador conseguiu tecer. Através do estudo dessas traduções, busca-se
reconstituir essa complexa rede de contatos e estudar que peso teve na
constituição da identidade brasileira. De um ponto de vista absolutamente
interdisciplinar, o projeto almeja ainda contribuir com os Estudos da Tradução,
com a Crítica Genética, com a História e com a Literatura Brasileiras. Serão utilizados
como embasamento teórico e metodológico os Estudos Descritivos da Tradução e a
Crítica Genética a fim de reunir dados sobre esse tradutor e seu processo
criativo.
O Imperador tradutor
D.
Pedro II, ou “O Magnânimo”, nasceu em 02 de dezembro de 1825 e governou o
Brasil no período de 1840 a 1889, destacando-se como um grande incentivador da
cultura e da educação. Além disso, tornou-se, com o passar do tempo, um
convicto tradutor, anotando em seus diários não apenas observações cotidianas
de tudo que o cercava, mas também sobre traduções de diversas obras em diversas
línguas que fizera ou que almejava fazer.
O
estudo de línguas absorveu grande parte da vida do imperador, atividade por ele
desenvolvida de maneira intensa. O gosto pelo estudo de línguas teve início na
infância quando o “pupilo da nação” preparava-se para ocupar o cargo de chefe
de estado. Entre as línguas que figuravam nessa primeira fase estavam o inglês
e o francês, logo após somaria o alemão, o italiano e o espanhol. Já em 1875, o
monarca iniciou os estudos das línguas do oriente médio, como o árabe, o
hebraico e o sânscrito.
Segundo
Holanda (2010), a disposição para o estudo das línguas era tamanha que mesmo em
viagens, seus mestres o acompanhavam. Um depoimento da princesa Teresa da
Baviera, que esteve no Brasil pouco antes da queda da monarquia, diz que D.
Pedro II dominava quatorze línguas, e que durante sua estada no país ela o viu traduzir
textos do árabe e também textos dificílimos do hebraico. Com a princesa, D.
Pedro II discutiu sobre a literatura alemã nas muitas conversas que tiveram.
Para Holanda (2010) as afirmações da princesa precisam ser avaliadas
moderadamente, pois necessitaria saber o nível de conhecimento linguístico dela
para então verificar suas avaliações a respeito do imperador. Entretanto,
Carvalho (2007) pondera sobre a memória prodigiosa de D. Pedro II, que lhe
permitia lembrar com facilidade praticamente tudo o que lia.
O
imperador traduziu uma gama variada de textos. Em seu diário pessoal encontram-se
também anotações a respeito de suas traduções e das datas em que foram
realizadas e dos títulos das obras que se propôs a traduzir. Nomes como Hugo,
Longfellow, Manzoni, Schiller, Liégeard, Homero, Lamartine despontavam entre os
autores traduzidos. Dedicou-se de igual forma à troca de correspondências e a
encontros com inúmeros intelectuais, poetas e escritores de diversas partes do
mundo. Por meio das cartas e das conversas, D. Pedro obtinha informações,
tirava dúvidas sobre palavras, trocava opiniões, além de receber apoio desses
intelectuais que admiravam sua dedicação à tradução.
Podemos
citar como exemplo as correspondências trocadas entre o imperador e Joseph
Arthur de Gobineau (Ville-d’Avray, 14 de julho de 1816- Turim, 13 de outubro de
1882), um dos mais importantes teóricos a tratar da questão do racismo no
século XIX. Gobineu foi, também, diplomata, escritor e filósofo, tornando-se amigo
de D. Pedro II depois de sua estada no Brasil como ministro da França. Em
cartas enviadas ao seu amigo Prokesch-Osten, Gobineau declara seu horror ao
Brasil, mas não ao governante do país, que ele lamenta ser “Imperador, pois
possui talentos e méritos demais para tal cargo” (RAEDERS, 1944, XIX).1
Quando
Gobineau residiu no Rio de Janeiro, ele e o imperador reuniam-se em São
Cristovão aos domingos para conversar sobre literatura, ciências e outros
temas. Essas tardes são lembradas por ambos nas correspondências. O Conde
escreve que ele e D. Pedro II conversam sobre muitos assuntos e nem sempre eram
da mesma opinião (RAEDERS, 1938, p. 12). Eram homens com atitudes muito
diferentes, um ponderado e calmo e o outro impulsivo, violento. Entretanto,
amavam a literatura e a arte e esse era o ponto central de suas “palestras em
São Christovão” e das correspondências que iniciaram após o retorno do Conde ao
seu país em 1870.
Em
carta datada de 24 de julho de 1870, que segundo Raeders é a primeira
endereçada ao imperador, ele relata, entre outros assuntos, sobre uma bella
publicação feita na Allemanha, por Flugel, o Editor
de
Koran. Elle imprime neste momento a especie de encyclopedia arabe de Ennedyn,
intitulada: Thrist-al Ouloum, o catalogo das Sciencias. Infelizmente, [...], ele
dá o texto, notas, commentarios e nada de traducção [...]. (RAEDERS, 1938, p.
19)
Ou
em 7 de janeiro de 1871: “A intenção que vossa magestade tem de continuar as
duas traducções de Isaias e de Prometheu me causa um prazer extremo”. (RAEDERS,
1938, p. 34). Um dos temas que se prolonga pelos vários anos de
correspondências entre os dois amigos é a tradução do “Prometeu acorrentado” de
Esquilo, à qual D. Pedro II se dedicava. Gobineau queria que fosse realizada em
verso, porém o imperador vertia a obra em prosa. A tradução foi editada em 1897
pela Imprensa Nacional, com transladação poética do Barão de Paranapiacaba. As
correspondências entre os dois amigos duraram 11 anos, encerrando-se mais ou
menos dois meses antes da morte do Conde, em Turim. As inúmeras cartas entre
Gobineau e o imperador permitem verificar que este não era considerado por
intelectuais de renome como um indivíduo de cultura superficial e pedante.
Retomando
a questão das traduções realizadas por D. Pedro II, algumas encontram-se
guardadas no Arquivo Histórico do Museu Imperial de Petrópolis e no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, além de acervos particulares. Em termos de
obras publicadas, somam-se tão somente três, a saber:
1.
“Prometeu Acorrentado”, de Ésquilo (original de Eschylo) traduzido para o
português por ele mesmo, na condição de Imperador do Brasil (cf. Bibliografia:
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907);
2.
“Poesias (originais e traduções) de S. M. o Senhor D. Pedro II”, sendo este uma
homenagem de seus netos (cf. Bibliografia: Petrópolis: Typographia do Correio
Imperial, 1889).
Nesta
obra, encontram-se as seguintes traduções, muitas vezes dividindo as páginas
com o texto original:
•
Episódio do “Conde Ugolino” e de “Francisca de Rimini” (Divina Comédia – Dante
Alighieri);
•
Ode “Cinco de Maio” (Il Cinque Maggio – Alessandro Manzoni);
•
“A canção dos latinos” (La Canzone dei Latin – autor não assinalado);
•
Soneto “A Aloys Blondel” (A Aloys Blondel – François Coppée);
•
“Soneto” (Sonnet – Félix Anvers);
•
Poema “A Passiflora” (La Passiflore – Condessa de Chambrun);
•
“Soneto” (Sonnet – D. Mon);
•
“Soneto a Coquelin” (Sonnet a Coquelin – Jean Richepin);
•
“Soneto” (Sonnet – Sully Prudhomme);
•
Sonetos “O magistrado”, “A la mignarda” e “A terra natal” (Le Magistrat/A la
Mignarde/Le sol natal – Rigaud);
•
“Soneto” (Sonnet – General Carnot);
•
Soneto “O beija-flor” (Le colibri – Leconte de Lisle);
•
“O Adeus” (Les Adieux - autor não assinalado);
•
“Soneto” (Sonnet - Helena Vacaresco);
•
“O besouro”, “Cantiga de Nadaud” e “Versos de Gustavo Nadaud” (Le
Hanneton/Chanson de Gustave Nadaud/ Vers de Gustave Nadaud);
•
Poema “A borboleta e a flor” (Le papillon et la fleur – Victor Hugo);
•
Poema “O choro d’uma alma perdida” (The cry of a lost soul – John Whittier);
•
Poema “O canto do siciliano: El-Rei Roberto da Sicília” (The Sicilian’s Tale:
King Robert of Sicily - Henry Wadsworth Longfellow).
3.
“Poesias Hebraico-Provençais do Ritual Israelita Comtadin”, impressa em
Avignon, em 1891.
Como
já mencionado, vários títulos de suas traduções são citados por D. Pedro II no
seu diário. Na sua viagem ao Oriente, ele relata que ao sentar-se perto do
arroio Dhirani, continuou a tradução dos “Atos dos Apóstolos”: “18 de novembro
de 1876: [...] Depois do almoço, enquanto não se seguia traduzi os Atos dos
Apóstolos com o Henning ambos nós sentados perto do arroio Dhirani” (Diário do
Imperador, vol.18).
As
notas sobre a “Odisseia” aparecem a partir de 1890. Em 22 de janeiro, D. Pedro
II relata que “[...] Ainda traduzi a Odisséia e li provas da arte guarani de
Restivo com o Seibold [...]” (Diário do Imperador, vol.30). Há notas sobre o
andamento dessa tradução até 9 de setembro do mesmo ano, quando o imperador
afirma comparar a sua tradução com a de Odorico Mendes.
A
tradução de Schiller inicia a bordo do navio que o levava para o exílio em 1889
(HOLANDA 2010). No diário, encontram-se anotações em 29 de julho de 1890 que
revelam os anseios do monarca em traduzir o escritor alemão: “[...] Deu-me
vontade de traduzir a balada [do Sino] de Schiller [...]” (Diário do Imperador,
vol.32). Dessa data em diante, seguem-se anotações diárias demonstrando que D.
Pedro estava empenhado em sua tradução. E em 14 de agosto de 1890 ele registra:
“[...] Parece querer chover. Vou ao Schiller. 3h ¼ Estive às voltas com a cópia
da tradução do Schiller [...]”. Pode-se presumir, portanto, ele já teria
finalizado a tradução. Em 18 de agosto ele escreve: “1h ½ Estive corrigindo a cópia
de minha tradução de Schiller com a Japurinha e quase terminei” (Diário do
Imperador, vol.32), corroborando com a afirmação acima. Essa tradução foi
ofertada por D. Pedro II à princesa da Baviera e à Condessa de Barral: “[...]
Depois da ducha dei bom passeio e agora de escrever à condessa enviando-lhe
minha tradução
de
O Sino de Schiller, [...]” (Diário, 25 de agosto de 1890).
Em
outros momentos do diário observamos que, após redigir uma primeira versão da
tradução, quase sempre auxiliado por um especialista da língua e da cultura de
origem, mandava transcrever a versão que, às vezes, retrabalhava; e antes
disso, ou depois, conforme
os
casos, enviava suas traduções para amigos, intelectuais, amantes e outras
pessoas, tanto para presenteá-los com sua criatividade quanto para receber
deles admiração, estima e um retorno acerca da qualidade de seu trabalho:
10¾
Hebraico e Camões. Estou acabando quase a comparação da tradução alemã dos
Lusíadas com o original. [...] Li a minha tradução do árabe do conto das Mil e
Uma Noites, que está lendo a mulher do Mota Maia a esta e ao marido seguindo-a
ela em francês, e parecendo a ambos boa a que eu fiz. Como continuei a minha
tradução nesse livro em branco só lhes deixei o livro da minha tradução que
está todo escrito e vou procurar o anterior para lhes emprestar também [...]
(Diário do Imperador, vol. 35).
E
ainda testemunhos do despertar súbito do desejo de traduzir determinado poema,
o estudo aprofundado que seguia a esse primeiro
momento
de estímulo criativo e, em seguida, as transcrições e o envio para amigos e
confiantes em busca de um julgamento ou de uma atestação de seu trabalho,
confirmando certa regularidade no sistema criativo do imperador: “17 de maio de
1891 [...] 10 h Li pouco de poesia do Liégeard, estudando-a para traduzi-la”
(Diário do Imperador, vol.39).
Sobre
a obra “Poesias Hebraico-Provençais do Ritual Israelita Comtadin” (1891), há
uma carta datada de 22 de abril de 1914 (que consta no livro O Imperador Visto
de Perto de Múcio Teixeira), de Albino Costa ao Barão Múcio Teixeira, que expõe
muitos detalhes sobre a tradução realizada por D. Pedro II. Segundo o Sr.
Albino Costa, os arquivos do Conde de Mota Maia possuem muitos “autógrafhos de
S. Majestade” (TEIXEIRA, 1917, p. 204) com poesias inéditas. Na análise do Sr.
Albino Costa, o monarca verteu maravilhosamente bem do rito hebraico para a
língua francesa, pois ele conseguiu reproduzir os versos cantados de seis
sílabas para decassílabos com o “mesmo rythmo e téchnica da lyrica
luso-provençal do século XIII” (TEIXEIRA, 1917, p. 240)
Nesta
obra, há uma introdução e notas que ocupam 13 páginas. Nela, D. Pedro II
informa também como iniciou seus estudos nessa língua, e a exemplo do Sr.
Albino segue: Quanto ao histórico de meus estudos do hebreu, realizados com o
objetivo de conhecer melhor a história da literatura dos Hebreus,
principalmente a poesia e os profetas, bem como as origens do cristianismo,
eles remontam aos anos de paz antes da guerra do Paraguai, em 1865 (TEIXEIRA, 1917,
p. 242).2
Das
muitas traduções realizadas por D. Pedro II, há ainda textos que nunca foram
editados e publicados, como “A Araucana”, de Ercilla; “Granada”, de Zorrilla;
Livro do “Hitopadeça” (original em sânscrito3) e as “Mil e uma noites” do
árabe, os quais são objeto de estudo de pesquisadores do NUPROC e da PGET, da Universidade
Federal de Santa Catarina. No presente artigo apresentamos os primeiros
resultados das pesquisas realizadas em nível de doutorado4.
Hitopadeśa:5 o livro
dos bons conselhos
O
livro do Hitopadeśa, um dos textos mais populares da literatura hindu depois da
Bhagavad Gita, é composto por uma coletânea de 43 histórias escritas
originalmente em sânscrito cujo primeiro manuscrito conhecido data de 1373.
Atribui-se a autoria da obra ou a simples compilação ao pandit Nārāyana, nome
evocado apenas nos versos finais do trabalho e que fomenta a especulação quanto
a sua autoria. Alude também a um rei chamado Dhavalachandra, suposto
patrocinador da obra a quem Nārāyana servia. Etimologicamente, o termo
Hitopadeśa provém da junção de dois radicais: Hita (útil, proveitoso) e Upadeśa
(instrução, conselho).
É
o livro dos bons conselhos ou a instrução útil, escrito em prosa e verso de
maneira extremamente simples para ser destinado especialmente aos jovens
príncipes. Suas máximas e apotegmas foram escritos em metro para garantir uma
fácil memorização com um único intuito: transmitir moral e conhecimento, dando
aos jovens a formação ética e a filosofia de vida necessária para que se tornassem
adultos responsáveis. Para Ferreira & Rónai (1978, p. 57), o livro deve
“[...] ser considerado um repertório de conselhos destinados aos príncipes, um
dos primeiros espécimes dos ‘Espelhos dos Reis’, tão frequente na Europa
Medieval”.
A
respeito das edições do Hitopadeśa, Sebastião Rodolpho Dalgado (1897, p. xi)
acredita que o texto tenha sido, desde os tempos mais remotos, muito copiado
“às vezes por escribas pouco peritos e pouco escrupulosos” que minaram a obra
com muitas interpolações. Por este motivo, não se encontram dois manuscritos que
sejam de fato inteiramente conformes, nem se pode definir a importância dos
vários códices que o compuseram, geralmente sem datas, o que dificulta
classificá-los genealogicamente. A mais antiga tradução do Hitopadeśa que se
tem notícia foi publicada em Bath em 1787 por Charles Wilkins, considerado o
precursor dos estudos sanscríticos em território britânico. Anos mais tarde,
mais especificamente em 1799, a obra seria publicada simultaneamente em Calcutá
e Londres pelo orientalista britânico Sir William Jones. Menos de uma década
depois, surge nova edição do Hitopadeśa no distrito indiano de Serampur, em
1804.
O
frisson causado pelos estudos orientais fez com que a obra de Jones fosse
reeditada em Londres em 1810. Em 1829 foi a vez de August Wilhelm von Schlegel
e Christian Lassen publicarem a sua edição latina, amplamente criticada pelo
professor Peter Peterson por terem os seus
editores,
na opinião daquele estudioso, desvirtuado o texto para satisfazer suas
exigências críticas. Peterson também se ocupou da tradução do Hitopadeśa,
comparando quatro manuscritos para realizar
o
seu trabalho, publicado em Bombaim em 1887. Em 1844, o orientalista alemão
Friedrich Max Müller publicou o seu primeiro livro, a tradução alemã do
Hitopadeśa. Anos mais tarde, já em Londres, Müller publica os seus Handbooks
(1884) para estudo de sânscrito, destinados àqueles leitores que quisessem uma
maior familiaridade com a gramática e a literatura da língua clássica da Índia.
Para
tanto, Müller escolhe como texto-base o Hitopadeśa. Londres conheceu outra
versão da obra em 1847. Trata-se da tradução de Francis Johnson, publicada pela
Wm. H. Allen and Co & Stephen Austin. Para Johnson (1847), o valor do
Hitopadeśa para a história da narrativa ficcional não reside, todavia, apenas
em suas recomendações. A popularidade da obra através dos tempos, segundo o
autor, é uma evidência de seu mérito intrínseco e os retratos dos costumes
domésticos e da natureza humana, revestidos de peculiaridades de cada país onde
a obra se fez presente, podem ter sido reconhecidos como universalmente
verdadeiros.
Em
1855 o francês Édouard Lancereau, então Membro da Sociedade Asiática, empreendeu
a sua tradução da “Instrução Útil”, publicada em
Paris
pela Chez P. Jannet Librarie. No mesmo período, surgiram várias edições, tanto
na Europa quanto na Índia, entre as quais citamos a de Lakshami Náráyan
Nyálankár (Calcutá, 1830), Demetriou Galanou (Atenas, 1851), Frederic Princott
(Londres, 1880), Schoenberg (Viena, 1884), Ludwig Fritze (Leipzig, 1888) e de José
Alemany y Bolufer (Granada, 1895).
Em
língua portuguesa, temos duas traduções do Hitopadeśa, ambas produzidas em fins
do século XIX. A primeira delas é a tradução de Dom Pedro II empreendida na
França em 1891 sob o título “Hitopadeça”. Trata-se de uma obra inacabada,
jamais editada e que se encontra conservada junto aos documentos do monarca no
Arquivo Histórico do Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro. Os
manuscritos da tradução de D. Pedro II disponíveis em cópia digital totalizam 8
histórias do segundo livro do Hitopadeça, realizada durante o exílio da família
imperial. No entanto, o monarca havia iniciado a tradução da obra ainda no
Brasil, conforme anotações em seu diário pessoal. Na mesma ocasião, o tradutor revela
a sua inclinação por outro clássico da literatura hindu, o poema épico
Ramayana:
10
de setembro de 1891: 4h 50’ Seibold. Persa, sânscrito. Quero mandar vir do Rio o
que já traduzi do que continuo agora a traduzir desejando depois empreender a
tradução do Ramayana que é muito
bonito
poema e mais me agrada que o Mahabarata (Diário do Imperador, volume 41).
A
segunda tradução foi realizada pelo religioso indiano radicado em Portugal,
Monsenhor Sebastião Rodolpho Dalgado, em 1897. Intitulada “Hitopadexa ou
instrucção útil”, a versão do sacerdote católico foi editada em Lisboa pela
Antiga Casa Bertrand, com introdução de Guilherme Augusto de Vasconcellos
Abreu, eminente orientalista português. De acordo com Abreu (1897, p. xvi), Monsenhor
Dalgado não se prendeu em ser literato em sua versão portuguesa do Hitopadexa
cuidou em ser exato. “A sua linguagem ressente-se de ele não ter vivido em
Portugal – tem o sabor indiano.
Há
nisso interesse filológico, que não é para se desprezar”. Abreu ainda comenta
que Sebastião Dalgado utilizou principalmente o texto em sânscrito da obra de
Max Müller, fazendo uso também das edições de Peter Peterson e Francis Johnson
para realizar a sua tradução. Até o presente momento, os manuscritos foram
transcritos conforme os princípios da Crítica Genética para se estudar o
processo tradutório do monarca e tentar estabelecer seu perfil de tradutor e também
para oferecer ao público brasileiro um texto inédito que revela um interesse
peculiar do imperador não somente pela tradução, mas, sobretudo, pelas
culturas, línguas e religiões do oriente.
Inicialmente,
a materialidade presente nos manuscritos nos sugere um tradutor preocupado em
manter-se fiel ao original, além de indicar constantes pesquisas etimológicas e
lexicais no decorrer do seu trabalho. Abaixo, excertos da transcrição do
material:
As Mil e uma noites
Em
relação à tradução das Mil e uma noites, foi efetuada a primeira análise
genética do material. Nessa etapa da pesquisa,6 verificamos, a partir da análise
macroestrutural7, que a tradução do imperador conserva as características que
marcam o livro árabe: os ambientes das noites originais; o uso do verbo
“dissendi”; a grande quantidade de versos; não omitiu a fraseologia religiosa e
manteve trechos considerados “obscenos”. Optou ainda por manter a divisão da
narrativa em noites, não alterou os trechos que apresentam repetições,
realizando uma tradução de cunho literal, embora sua linguagem não fique
próxima da estrutura da língua portuguesa. Essa análise da macroestrutura
possibilitou ainda verificar que o texto fonte utilizado por D. Pedro II foi a
edição de Breslau.
Através
da análise comparada das “noites”, verificamos que havia uma diferenciação
entre as traduções.8 A partir da 102ªnoite, na história do “Corcunda do Rei da
China”, ocorre uma sintetização da narração, o que ocasionou a redução de duas
noites na tradução de D. Pedro II. Confirma-se que D. Pedro estava utilizando a
edição de Breslau que possui também essa sintetização. Além desse fato, há a
própria afirmação do tradutor ao acabar o primeiro volume do livro, em que ele
escreve “acaba o volume primeiro da edição da Abicht”, no fólio Cat B [D04
P011], sendo que, Abicht (Habicht) é o organizador da edição de Breslau. E ainda
o cotejo entre as palavras (muladjlidij; do ladjladja = repetiu palavras
fallando) presentes na tradução de D. Pedro II e que estão presentes na edição
de Breslau comprovam nossa afirmação.
Nessa
parte da análise verificou-se que a microestrutura do texto comprova o que já havia
sido encontrado na macroestrutura: uma preocupação com o original, uma
constante pesquisa lexical e etimológica e ainda a utilização de transcrições
diretas de palavras de origem árabe para o português, demonstrando esse cuidado
com o original e apontando para um tradutor preocupado em compreender e
traduzir a cultura e a língua do texto de partida (SOUZA, 2010).
Algumas conclusões
Certamente,
o corpus até aqui mostrado revela uma história extraordinária e invisível ou
até agora pouco contada, a da tentativa de um grande homem brasileiro do século
XIX de ser parte de uma aristocracia sem poder, sem títulos, uma sociedade de
literatos que estabelece e consagra os grandes escritores.
Escritores
e tradutores têm um papel relevante e indispensável nesse novo espaço mundial
estabelecido pelos textos: “Como a crítica, a tradução é por si só valorização
ou consagração” (CASANOVA, 2002, p. 39). Pascale Casanova, ao citar o
pensamento de Larbaud, lembra o papel fundamental e tríplice dos tradutores que
enquanto traduzem aumentam sua riqueza intelectual, enriquecem sua literatura
nacional e honram seu nome. No caso de Dom Pedro II, com certeza, o primeiro ponto
é mais forte e é o que decorre da análise do dossiê genético.
Do
dossiê genético fazem parte também diários em que constantes são referências ao
seu processo tradutório. São cerca de 5.500 páginas de diário, registradas a
lápis e divididas em 43 cadernos. Essas páginas se tornam fundamentais para
acompanhar o processo criativo do imperador, pois frequentes são as anotações
acerca de sua atividade tradutória e acerca de livros, estudos e encontros. Nos
trechos do diário há uma confirmação da constância com que a atividade
tradutória era presente em sua vida e o papel importante que desenvolvia na sua
aprendizagem de línguas e culturas estrangeiras e para a sua afirmação no meio
literário e não literário.
O
diário, além de atestar a devoção do imperador ao estudo e às letras, permite a
reconstrução daquela particular “República das letras” internacional na qual o
imperador almejava ingressar. Para alcançar os membros dessa “República” viajou
incansavelmente e quando não conseguia viajar tecia essa rede de literariedade
com leituras e, sobretudo, suas cartas e traduções; a tradução se configura a
nosso ver como um, se não, o principal meio utilizado para ser aceito nessa
comunidade de privilegiados, desde que com sua produção poética não teria
alcançado o mesmo sucesso.
Além
disso, lembramos que um monarca que se dedicasse às letras, produzindo textos
próprios, seria considerado um imperador pouco atento aos afazeres políticos,
mas um imperador que traduzisse, ainda que muito, textos de outros, seria como
todo intelectual da época, alguém que tentava através da tradução desenvolver
seu conhecimento e se aprimorar nas línguas estrangeiras; em outras palavras,
parecia mais comum que um imperador traduzisse do que produzisse poemas
próprios e dedicasse a isso tempo necessário para as questões políticas. A
leitura dos manuscritos e do dossiê leva para outra direção, defende-se a tese
de que a tradução não era somente uma distração, mas ocupava na vida do
governante uma posição estratégica, central e política, que ia além da questão meramente
pessoal. Essa afirmação é respaldada pelo estudo genético e pela reconstituição
do percurso invisível feito de encontros, sonetos, poemas, leituras, diários;
uma materialidade do intelecto que os vestígios deixados nos arquivos nos
permitem reconstruir.
NOTAS:
1.
Je suis désolé qu’il soit Empereur. Il a bien trop de talent et de mérite pour cela
– Tradução nossa.
2.
Quant à l’historique de mes études de l’hebreu, entreprises dans le but de
connaitre mieux l’histoire et la littérature des Hebreus, principalement la
poésie et les prophètes, comme aussi les origines du christianisme, elles
remontent aux années de paix avant la guerre du Paraguay, em 1865 [...] –
Tradução nossa.
3.
Seus estudos na área de línguas orientais se iniciaram em 1875. Teve como mestre
de sânscrito Carlos Henning, de hebraico Akerblom, que foi substituído por
Koch, e este por Henning; sendo seu último mestre Seybold que também
substituíra o barão Schreiner nas aulas de árabe. Seybold acompanhou o
imperador até seus últimos dias de vida, já no exílio (LYRA, 1977).
4.
“Gênese do Hitopadeça: a instrução útil na tradução de D. Pedro II”, por Adriano
Mafra e “Edição Genética das Mil e uma noites de D. Pedro II”, por Rosane de
Souza.
5.
Hitopadeça, na tradução imperial.
6.
SOUZA, Rosane. A gênese de um processo tradutório: As Mil e uma noites de D.
Pedro II. 135 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) – Programa de
Pós-Graduação em Estudos da Tradução, UFSC, Florianópolis.
7.
Macroestrutura: são as divisões do texto, títulos dos capítulos, apresentação dos
atos e cenas, a estrutura da narrativa interna, intriga dramática (prólogo, exposição,
clímax, conclusão, epílogo); estrutura poética e qualquer comentário autoral,
assim como instruções de palco. Os dados macroestruturais devem levar a
hipóteses sobre as estratégias microestruturais.
8.
Para alcançarmos tal objetivo, realizamos o cotejo entre as traduções de D. Pedro
II e de Mamede M. Jarouche, visto que este último primou pela fidelidade ao
original. O apontamento dessas características nos auxiliou na construção do perfil
de tradutor, bem como na descrição da obra traduzida.
Bibliografia:
CARVALHO, J. M. D. Pedro II: Ser ou não Ser. Coordenação Elio Gaspari e Lilia M. Schwarcz. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CASANOVA, P. A República Mundial das Letras. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo, Estação da Liberdade,
2002.
DALGADO, S. R. Hitopadexa ou instrucção útil. Lisboa: Antiga Casa Bertrand, 1897.
DOM PEDRO II. Diário do Imperador D. Pedro II, 1840-1890. Organização de Begonha Bediaga, Petrópolis: Museu Imperial, 1999.
HOLANDA, S. B. Capítulos sobre História do Império. Org. Fernando A. Novais. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HOLANDA, A. B. & RONÁI, P. Mar de
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Fonte: ROMANELLI, Sergio; MAFRA, Adriano; SOUZA, Roseane de. D. Pedro II tradutor: análise do processo criativo. Cadernos de Tradução, v. 2, 2012, p. 101-118.