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Leandro Vilar

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Monomotapa: o reino das minas de ouro

Entre a Idade Média e a Idade Moderna existiu no sul do continente africano, um vasto e próspero império chamado Monomotapa. Por mais de três séculos seus soberanos foram senhores de muitas terras e minas, as quais representaram a fonte da sua grande riqueza, pois seus reis dominavam um número considerável de minas de ouro, as quais atraíam comerciantes de vários cantos do continente e até mesmo passou a interessar povos estrangeiros como os árabes e os portugueses. 

Embora tenha sido um império rico e poderoso, sua história ainda é pouca conhecida devido a falta de fontes históricas, pois mesmo as fontes arqueológicas não nos fornecem detalhes os quais apenas fontes escritas podem fornecer. Além disso muito dos dados que dispomos sobre esse reino advieram dos relatos portugueses do século XVI e XVII, os quais abarcam os últimos séculos de um reino que surgiu ainda na Idade Média. 

Sendo assim, devido a escassez de material para se falar sobre esse reino africano, o texto a seguir não pôde ser mais detalhado em alguns aspectos, além do fato de haver poucas imagens sobre este império e seu povo, daí a escassez destas ao longo do texto. 

Localização e origens:

O Império Monomotapa ao longo de sua história variou suas fronteiras, no entanto grande parte de suas terras correspondiam ao planalto rodesiano, hoje situado no Zimbábue, não sendo a toa que o Zimbábue era antigamente chamado de Rodésia. Mas além do território zimbabuano, o Império Monomotapa se estendia em direção ao leste adentrado as terras que hoje são Moçambique, mas também englobava parte dos atuais territórios da Zâmbia e do Malavi (NIANE, 2010, p. 11). Ao norte o império tinha como principal fronteira o rio Zambeze, e ao sul, era o rio Limpopo.


Mapa da África no final da Idade Média, por volta do ano de 1453, mostrando alguns dos principais reinos da época. Em roxo o Império Monomotapa, chamado de Mutapa na língua inglesa. Ao sul em verde, o Grande Zimbábue. 

“As chuvas são de verão e de acentuado caráter tropical. O mapa pluviométrico apresenta, hoje, a seguinte distribuição: 500 a 1.000 mm nos sertões, e de 1.000 a 1.500 nas regiões da costa hidrografia é representada pelos rios Zambeze, Limpo-po, Revué e Save, que descem das altas mesetas de Matabelé em direção ao Indico, quase em forma retilínea. Numerosos tributários engrossam essas três vias fluviais que regam as terras do Monomotapa, cuja paisagem vegetal é dominada pela savana tropical e pela estepe arbustiva”. (DIAS, 1957, p. 110-111). 

“Pelo final do primeiro milênio da era cristã, os povos cujo desenvolvimento os situava na Idade do Ferro ocupavam a maior parte da região de savanas arborizadas que se situa entre os rios Zambeze e Limpopo, chegando ate o oceano Índico, a leste, e cobrindo, ao norte do Zambeze, os atuais territórios da Zâmbia e do Malavi. Descendentes de grupos de caçadores do fim do Neolítico ainda viviam em bolsões mais remotos da savana arborizada, entrando esporadicamente em contato com seus vizinhos agricultores e morando em abrigos nos rochedos ou pequenos acampamentos a céu aberto, nos quais foram encontradas ferramentas por eles utilizadas, ao lado de cerâmica da Idade do Ferro”. (FAGAN, 2010, P. 591).

“Outros povos que praticavam a caça e a coleta, ancestrais dos grupos san de nossos dias, também ocupavam boa parte da região do Kalahari, ao sul e ao oeste das savanas arborizadas, território este que conservaram ate tempos mais recentes. Os povos da Idade do Ferro, nessa vasta zona do sul da África central, eram em sua maior parte camponeses que se dedicavam a uma agricultura de subsistência; sua produção de alimentos concentrava se na criação de animais de porte grande e pequeno e no cultivo de cereais como o sorgo e o milhete. A caca e a coleta representavam importante papel na sua atividade econômica; as únicas formas de agricultura que eles praticavam era a itinerante, e dependia da cuidadosa seleção do tipo de terra adequada”. (FAGAN, 2010, p. 591-593)

A região que um dia viria a ser o Império Monomotapa já era habitada por vários povos ao longo de milênios, neste caso, não é fácil precisar em que época o império começou a surgir, no entanto, os historiadores apontam que uma ou algumas tribos do povo Shona ou Xona, povo de língua banta, teriam sido os responsáveis por fundar esse império. Por volta dos séculos X e XI, tribos dos Shona advindas do sul, da região do rio Limpopo, migraram para o norte, se estabelecendo em distintos locais do que hoje é o território do Zimbábue. Entre estes locais estavam as margens do rio Lundi. A partir desse núcleo anos depois surgiria a cidade do Grande Zimbábue (MATOS, 2009, p. 47).

Todavia, algumas dessas tribos que se espalharam por outras terras indo em direção ao rio Zambeze, foram responsáveis por originar o reino, mas a data que ele começou ainda não é unânime. Niane (2010, p. 11) aponta que o império teria surgido ainda no século XI alcançando seu apogeu entre os séculos XIII e XIV; mas outros historiadores apontam que o império somente surgiu no século XV, antes disso ele era um pequeno reino que fazia fronteira com o Estado do Grande Zimbábue. Isso gera outra confusão, pois o Grande Zimbábue é anterior ao Monomotapa, chegando ao fato de que ambos os Estados coexistiram por décadas até que em determinado momento o Monomotapa conquistou o Grande Zimbábue. Sobre isso, voltarei a falar adiante.


O povo Shona nos dias de hoje. Credita-se que os Shona teriam sido os responsáveis por fundar o Monomotapa por volta do século XI ou XII, talvez depois.
Mas retomando as origens ainda imprecisas do Monomotapa, de qualquer forma, ele surge num período de mudanças na região do planalto rodesiano, quando os povos ali estabelecidos passaram a se dedicar não somente a agricultura, caça, coleta e pesca, mas a se intensificar nas atividades de mineração e de metalurgia. 


“O relêvo do Monomotapa é acidentado. Os sertões da dourada Sofala acham-se dominados pelas altas mesetas de Matabelé — topografia de transição entre as atuais mesetas "boers" do sul e as mesetas tropicais do norte. A enorme espinha dorsal de Matabele, que domina as terras compreendidas entre o Zambeze e o Limpopo, é constituída por uma resistente massa cristalina que se orienta de sudoeste para nordeste, entre 1.200 e 1.700 metros, cujas extremidades estão hoje indicadas pelas cidades de Salisbury e Bulavayo. Para o oriente, a meseta se apoia num majestoso maciço integrado pelas altiplanícies de Manica e do Inyanga, as quais culminam a 2.700 metros, dominando em forma de acantilados os terrenos que limitam as atuais planícies de Moçambique. No interior o subsolo da região é arcaico, onde dominam os granitos e gneis, os quais, por sua grande resistência, originaram os relevos cristalinos. Neles se encontram as cuarcitas auríferas, cujos filões constituíram a atrativa riqueza do Monomotapa. Na costa encontram-se as conhecidas areias quaternária”. (DIAS, 1957, p. 110).


“Pelo final do século XII e começo do XIII, contudo, como a população aumentasse, iniciouse o cultivo das terras mais férteis, porém de conformação mais difícil para a lavoura, que se encontram no cinturão aurífero de Matabelelândia. Fundaramse, então, aldeias que foram ocupadas por muito mais tempo, mudança que pode haver coincidido com o começo da lavra e do trabalho do ouro, porque os mais antigos objetos neste metal descobertos ao sul do rio Zambeze datariam mais ou menos do século XII. Alguns desses sítios de Leopard’s Kopje, como o de Bambandyanalo, no vale do Limpopo, eram de tamanho considerável, desenvolvendose, também, a volta de um curral. [...]. Além disso, um grupo de cabanas maiores que as demais foi erguido no terraço mais alto; elas eram muito sólidas, e, provavelmente, destinavamse a personagens que gozassem de posição privilegiada em sua sociedade, fato que marca significativo contraste com as culturas mais antigas, nas quais não se vê qualquer vestígio de hierarquia ou diferenciação social”. (FAGAN, 2010, p. 597-598).

A medida que a exploração mineira, o desenvolvimento da metalurgia e a ampliação do comércio com regiões mais distantes foi crescendo, algumas famílias começaram a enriquecer e se tornar poderosas na região, passando a deter grandes propriedades rurais, minas e o controle de rotas comerciais. E uma destas famílias em dado momento passou a utilizar o termo Mwene Mutapa, termo que foi aportuguesado para Monomotapa, que significa "senhor das minas" (AZIZ, 1977, p. 317). 

A região era rica em minas de ouro, cobre e ferro, o que possibilitou que em poucas décadas o Monomotapa tornasse se um Estado rico e poderoso. Tal ponto é tão evidente que o rei era chamado de Mwene Mutapa, pois referia-se claramente a essa autoridade que ele possuía em controlar uma vasta quantidade de minas, as quais teriam chegando a um valor entre 60 a 70 mil minas (NIANE, 2010, p. 11) um número assombroso caso os dados estejam certo. 

Mas embora não tenhamos como precisar quantas toneladas de ferro, cobre e ouro foram extraídas daquelas minas, sabemos que mercadores de vários locais da África iam ali negociar estes metais, além do fato de que a cidade de Sofala, hoje no território de Moçambique, era um dos portos pelos quais tais metais escoavam-se para outras cidades-Estados na costa leste africana como Moçambique, QuilameZanzibar e Quiloa, e até mesmo era transportado para as Arábias e a Índia, além de que foi em Sofala que os portugueses tomaram conhecimento das vastas minas do Monomotapa. 

Subsistência e economia:


“As grandes vias fluviais, entretanto, particularmente o Zambeze e alguns dos seus tributários, graças às suas espécies piscatórias, alimentavam boa parte das populações bantas da costa e dos-sertões. Apesar da caça, da pesca e da mineração, o grande gênero de vida era a prática agrícola associada ao pastoreio. A maior parte das tribos fundam a sua principal riqueza no cultivo da terra e na criação de gado vacum e caprino. Por isso é que os bantus. são semi-nômades, associando ao pastoreio o sedentarismo das práticas agrícola". (DIAS, 1954, p. 111).

Nas terras baixas ou nos platôs o gado vacum era criado, mas nas regiões onde o terreno era mais irregular, predominava a criação de caprinos, neste caso, cabras e bodes. Além da carne bovina e caprina, os habitantes do Monomotapa também criavam muitas galinhas, as quais eram usadas também no escambo (trocas comerciais), como também consumiam carne de peixe e de caça. 

De acordo com alguns cronistas portugueses o solo era fértil tanto no litoral quanto no interior, o que permitia o cultivo de milhete, cana de açúcar, trigo, variedades de legumes e de árvores frutíferas. O cronista Manuel César Pereira relata que havia abundância de pomares e hortas nos arredores da cidade de Sofala, na costa. Nestes pomares abundavam figueiras e romeiras, árvores levadas pelos árabes para lá (DIAS, 1954, p. 112). 

“Frei João dos Santos, na sua mencionada crônica, também faz menção à fertilidade da terra que êle visitou nos primeiros anos do século XVII. O abnegado missionário encontrou em Sofala e nos seus arredores extensas hortas e pomares. O que mais o maravilhou foram as figueiras carregadas de figos prêtos durante todo o ano. Refere-se às parreiras que davam uvas duas vêzes por ano — em janeiro e em junho. As laranjeiras, romeiras, limeiras, manjaricões, jasmins com flores brancas, ananazes, coqueiros e canaviais que se estendiam ao longo dos rios, despertaram a atenção do cronista que menciona, ainda, a riqueza da terra em milho, arroz, batatas, feijões e gergelim que aproveitavam para fazer azeite. Valoriza igualmente o óleo de coco com que os cafres curavam as feridas, "o qual arde melhor e dá mais lume que o de oliveira". (DIAS, 1954, p. 112). 

Pelo fato de alguns rios serem piscosos, ou seja, abundavam em peixes, isso os tornava uma importante fonte de alimento para as populações rurais e ribeirinhas, além do fato de que tais rios eram rotas fluviais para a locomoção e o comércio. Os cronistas portugueses como o frei João dos Santos apontaram a importância destes rios para conectar o vasto império. 


As Cataratas Vitória no rio Zambeze. 
Mas além dos gêneros alimentícios provenientes do cultivo da terra, da caça, da pesca e da criação de gado, a economia também baseava-se no comércio de marfim de elefantes e rinocerontes, peles de leões e leopardos, âmbar de árvore; comércio de tecidos o qual seguia um duplo caminho: no império se cultivava algodão em abundância, pois grande parte da população usava roupas de algodão, e o excedente era vendido para outros povos e até mesmo exportado. Neste caso exportava-se o algodão grosseiro, o qual seria processado ou utilizado para fazer "panos", como se dizia na época. Por outro lado, a elite do Monomotapa apreciava os tecidos finos, assim, mercadores árabes traziam linho, seda, brocado, mussalina, damasco, etc.

Por outro lado, embora se cultivasse cana de açúcar, os cronistas portugueses como frei João dos Santos e Manuel César Pereira, apontaram que eles não fabricavam açúcar, apenas consumiam o sumo da cana (DIAS, 1954, p. 113). 

Chegando aos minerais, estes foram o grande quinhão da economia Monomotapa. Embora houvesse abundância em cobra, ferro e prata, era o ouro que atraía a atenção dos estrangeiros, pois é preciso salientar que nem todos os povos viam a cobiça da mesma forma, logo, por mais que o imperador fosse o "senhor das minas", não significava que ele morasse num palácio dourado como visto nas lendas, o povo do Monomotapa tinha apreço pelo metal dourado, mas não tanto como os portugueses, árabes e indianos, os quais foram por vários anos os principais compradores de ouro do Monomotapa.


“Em tôdas as terras do império havia ouro. As áreas dos mais ricos depósitos auríferos circunscreviam-se, entretanto, a uma vasta região geográfica representada pelas manchas geológicas situadas nas vizinhanças dos reinos de Butua, Mazói, Manica, Quitava, Mozimba, Botonga, Batougua e Barué.  As minas mais próximas de Sofala eram as de Manica — ficavam a 50 léguas da costa. As de Boro e Quitecuy, a 100 e 200 léguas de Sofala, eram as mais afastadas. Pertenceriam ao régulo de Butua. As regiões auríferas de Manica, que os portuguêses e mouros alcançavam, aproveitando-se dos trechos navegáveis dos rios Sa-ve, Zambeze, Buzi e do seu afluente Revué, estavam cercadas de montanhas. O ouro minerado em Manica pelos cafres era em pó. Nas comarcas de Boro e Quitecuy, o ouro era mais grosso, aparecendo em ricos veios de rochas. Geralmente era minerado durante o inverno. Mas ali havia ainda preciosos aluviões que no verão eram recolhidos dos leitos dos rios e em cuja lama se encontrava escondido o precioso metal amarelo”. (DIAS, 1954, p. 113). 

Organização administrativa e social:

Pouco se conhece acerca da organização administrativa do Monomotapa. Embora o imperador fosse o soberano absoluto de todas aquelas terras, suas riquezas e suas gentes, a administração era descentralizada. 


“O rei dispõe de um conselho cujos membros vivem de seus benefícios, ocupando o reino território bastante extenso; no entanto cada clã conserva sua estrutura fundiária e seus ritos particulares. Fato importante e o compromisso de fidelidade ao rei, que se traduz pelo pagamento de um imposto, frequentemente em gênero. Chefe politico, o rei mantem, normalmente, os atributos religiosos do chefe de clã; sua pessoa e sagrada. Esse caráter sagrado manifestase nitidamente no caso do rei do Congo, do soberano do Monomotapa e do imperador do Mali, cujos súditos juravam por seu nome”. (NIANE, 2010, p. 14). 

Inicialmente um reino, o Monomotapa ao longo dos séculos foi crescendo e se tornou um império. Mas para se tornar um império ele teve que conquistar as terras vizinhas as quais já eram ocupadas e pertenciam a outros reinos. Não se sabe se o processo de conquista foi inteiramente a base da guerra ou ocorreram acordos através de comércio, casamento, troca de reféns, tratados de defesa, etc. De qualquer forma, quando os portugueses passaram a relatar sobre o Monomotapa descreveram que vários senhores eram súditos do imperador, algo como se fossem vassalos, os quais eram obrigados a pagar tributos regulares ao monarca, embora dispusessem de certa autonomia administrativa. 

Todavia, em dados momentos alguns desses vassalos, se revoltavam contra outros vassalos ou contra o Estado, levando a origem de revoltas e de guerras. Segundo os cronistas portugueses algumas dessas revoltas levaram a fragmentação do poder real no século XVI e XVII. Sobre isso voltarei a comentar adiante, pois os portugueses também tiveram papel nesses conflitos ora apoiando os vassalos, ora apoiando o imperador. 

No que se refere também a administração está o princípio da hierarquia, e neste caso há algo peculiar a ser mencionado: a hierarquia do império era formada pela nobreza, a elite, a plebe e os escravos. Todavia dentro dessas classes haviam subdivisões e a variação entre indivíduo livre e escravizado. Em outras palavras, um escravo necessariamente não era uma pessoa pobre e sem direitos, mas poderia ser um homem ou mulher rico e pertencente a uma linhagem aristocrática. Tal prática era chamada em alguns lugares de jonya

“O jonya (do termo mande jon, que significa cativo) era difundido principalmente no Sudao ocidental, assim como na regiao do Níger e do Chade. Um jon (jaam em wolof, maccuba em fulfude, bayi em haussa) era um escravo ligado a uma linhagem. Não era cedível e possuía a maior parte do que produzia. Nas sociedades em que reinava esse sistema, ele pertencia a uma categoria sociopolítica integrada a classe dominante; era então cidadão exclusivo do Estado e pertencia a seu aparelho político. Enquanto sistema e categoria social, o jonya desempenhou um papel considerável e original nos Estados e impérios de Gana, Takrūr, Mali, KanemBorno, Ashanti, Iorubá e de Monomotapa (Mwene Mutapa)”. (DIAGNE, 2010, p. 28). 

No caso do Monomotapa os jon eram chamados de macamos, os quais eram indivíduos oriundos de famílias importantes os quais foram aprisionados, sequestrados ou conquistados, mas acabaram perdendo a liberdade, passando a serem escravos do Estado (FRATICELLI, 2006, p. 172). Mas pelo fato de pertencerem famílias importantes ou serem descendentes de alguma antiga linhagem real, os macamos formavam a elite dos escravos. 

Eles possuíam suas próprias propriedades e rendas, tinham direitos e deveres perante o governo, possuíam escravos, participavam da gestão do Estado, e dependendo até mesmo compunham o conselho real ou outro cargo importante. Na prática um macamo era um membro da elite como qualquer outro, a diferença é que estava preso aos interesses do monarca, estando privado da liberdade de ir e vir. Por sua vez, os escravos que não pertenciam a elite, não possuíam tantas regalias e normalmente se ocupavam do trabalho pesado. 

O exército do Monomotapa:

Para se manter um império é preciso dispor de uma força armada poderosa, treinada e eficiente, no caso do Monomotapa ele conseguiu manter tais características por parte de sua história. Todavia, as fontes portuguesas e italianas da época se contradizem e romanceiam acerca do exército do Monomotapa. 

Por exemplo, o escritor italiano Filippo Pigaffeta em seu livro Relatione del regno di Congo (1591), embora a obra trate sobre o Congo, Pigafetta acabou visitando várias outras nações africanas entre as quais o Monomotapa, logo, decidiu escrever sobre estas em seu livro; entretanto, o que se destaca na sua relação sobre o exército do Monomotapa diz respeito ao uso de guerreiras, as quais ele comparou as mitológicas amazonas. Posteriormente outro escritor italiano chamado Giovanni Botero, o qual escreveu Relatione universali (1595-1596), também fez menção as supostas amazonas do Monomotapa. 

A questão como apontada por Fraticelli (2006, p. 173-174) diz respeito que as descrições são fortemente influenciadas pelo referencial mitológico grego, ao ponto de não se saber o que seria real ou que seria mera fantasia dos autores. No entanto, sabe-se que havia alguns casos nos quais mulheres iam para guerra, mas não para ter sido ao ponto de haver regimentos inteiros de mulheres como sugerido por Pigafetta.

Não obstante, o padre João de Barros em seu livro Década 13 da História da Índia, aponta que uma das táticas de batalha do Monomotapa era o uso de cães de guerra, os quais eles levavam vários para o campo de batalha (FRATICELLI, 2006, p. 175). Barros não fornece mais detalhes sobre o emprego de tais cães, mas sabemos que os próprios romanos chegaram em alguns casos a usarem cães de guerra, logo, não era uma prática incomum, embora não fosse recorrente.

Os portugueses tomam conhecimento do Monomotapa: 

No ano de 1494 um navio português naufragou na costa de Sofala. Quatro anos depois Vasco da Gama em sua expedição para chegar as Índias, passava diante de Sofala. Todavia, anos depois em 1505, o rei Yusuf de Sofala autorizava os portugueses a fundarem uma feitoria em suas terras. Em 1506 a feitoria foi concluída e naquela época, os mercadores lusitanos começaram a tomar conhecimento acerca da fonte do ouro que era comercializado na cidade. Os habitantes de Sofala diziam que o precioso metal vinha do interior, vinha do "reino das minas de ouro", o Monomotapa (SERRÃO, 1994, p. 259-260). 


Localização de Sofala, atualmente uma província de Moçambique. 

“O ouro era, mais do que outra qualquer riqueza, o grande instrumento regulador das trocas à distância. Nele encontravam mouras e cristãos a melhor forma de pagamento. Por isso não admira que as douradas terras do Monomotapa sofressem tôdas as resultantes advindas da partilha política das grandes potências. Os seus ricos depósitos auríferos constituiam enorme atração. Sem ouro, todo o edifício dos poderosos impérios estaria, fatalmente, condenado à estagnação econômica. Por isso é que os sertões de Sofala atraíram ao aliciante e enigmático Monomotapa uma série contínua de ofensivas de natureza comercial. O ouro era a grande fôrça que chamava a si as atenções dos grandes impérios”. (DIAS, 1954, p. 114). 

Após fixar feitoria em Sofala, os portugueses ergueram outras feitoria na ilha de Moçambique, assim, ambas as cidades se tornaram pontos de apoio para a Viagem as Índias, como também tornaram-se mercadores fornecedores, neste caso, os portugueses tinham principalmente interesse no ouro, prata e marfim. Posteriormente, os escravos também fariam parte dos negócios lusitanos. De qualquer forma, os portugueses passaram a ter maior conhecimento sobre as minas de ouro do Monomotapa, ao mesmo também passaram a estarem ciente da política econômica da região, a qual volta e meia entrava em conflito devido a luta dos cafres com os régulos, termos usados para se referir aos governantes vassalos do Monomotapa. 


“Já em 1506 Alcaçova, na sua mencionada carta endereçada ao rei, lembrava, com insistências a necessidade de se encontrar um meio que pusesse têrmo às constantes lutas entre os cafres do interior que tanto prejudicavam os resgates de Sofala. Quando os potentados negros entravam em guerra, os mercadores cristãos não se aventuravam a penetrar até às feiras dos sertões. Igualmente, os cafres deixavam de visitar os estabelecimentos comerciais da costa. Havia, assim, uma perniciosa retração do trato. Os resgates sofriam, então, distorções imensamente prejudiciais para a Corôa portuguêsa. A paz entre os régulos precisava ser mantida — estava na ordem do dia, em caráter de urgência. E nisto, tanto mouros como cristãos estavam de acôrdo. O perspicaz Alcaçova informava D. Manuel que, quando os régulos do sertão viviam em paz, nada menos de um milhão de miticais de ouro eram anualmente embarcados no pôrto de Sofala, sendo que às vêzes o montante atingia a 1.300.000 miticais, sem dúvida um bom resgate, e sinal evidente do intenso tráfico”. (DIAS, 1954, p. 116-117).   

Entre os anos de 1511 e 1516, Antônio Fernandes realizou várias viagens pelas terras do império, relatando tudo que viu e ouviu, e depois enviando sua relação para a Coroa (GARCIA, 1992, p. 125). Com base nos relatos de Fernandes, a Coroa Portuguesa começou a perceber que o melhor não seria negociar com os mercadores de Sofala, mas ir negociar diretamente com os habitantes do Monomotapa, assim, mercadores portugueses guiados por mercadores locais, adentravam os domínios do Monomotapa para vender seus produtos e também comprar ouro e outras mercadorias. 

“Por volta de 1515 e 1516, época em que Gaspar Veloso escreveu de Sofala a D. Manuel, nas ricas terras de pau Butua, ao longo dos tributários do rio Hunyani cujas águas engrossavam o Zambeze, os cafres mineravam ouro em abundância. Tracey, apoiando-se nas circunstanciadas informações do sagaz Veloso, afirma que o régulo de Butua era tão rico e poderoso como o próprio Monomotapa. Assim sendo, ambos viveriam em disputa permanente pela hegemonia política do império. Não admira, pois, que os sertões de Sofala padecessem de tôdas as resultantes advindas da instabilidade político-militar que tanto afligia Alcaçova, pelo prejuízo que acarretava ao tráfico do ouro. As lutas pela supremacia política do império geravam, como não podia deixar de ser, enorme retração dos resgates”. (DIAS, 1954, p. 117).  

Os mercadores portugueses passaram a negociar com o monomotapa (imperador) para solicitar o direito ao comércio, assim, anos depois Moçambique a qual recebeu outro entreposto lusitano, tornou-se uma das rotas pelas quais Portugal enviava mercadorias ao interior, como também ia buscar ouro e outros produtos. O "capitão de feitoria" pagava uma taxa ao monarca para ter direito de comercializar em suas terras; com o pagamento de tal taxa, os mercadores portugueses eram autorizados a andarem por todo o império e comercializar com quem quisesse. 


“Além do tributo pago pelo capitão português aos imperadores mutapa, os mercadores portugueses e árabessuaílis deviam ceder uma peça de estofo por vinte peças introduzidas no Império. Além dos tecidos e das pérolas que eram largamente difundidas, os portugueses ofereciam aos imperadores mutapa artigos de luxo importados, tais como sedas, tapetes, objetos de cerâmica e de vidro, utilizados por eles para realçar seu prestígio no quadro de um sistema de patronagem. Tal regime de relações tributárias se perpetuou praticamente sem mudança até a segunda metade do século XVI”. (BILA, 2010, p. 765). 

“Os soberanos negros estavam perfeitamente conscientes do papel econômico e político de metais como o ouro, o cobre, o ferro, cuja exploração era controlada. Esse aspecto e essencial, pois em muitos estudos e artigos sobre a África temse a impressão de que este continente era um reservatório de ouro para árabes, berberes e persas, como se os soberanos só existissem para servir aos estrangeiros; nesses estudos transparece a negação implícita da existência de Estados organizados. Não e por acaso que os soberanos africanos proibiram, nessa época, o acesso de viajantes árabes as regiões auríferas!” (NIANE, 2010, p. 769). 

Além de entrarem em contato com os habitantes do Monomotapa, os quais os africanos islamizados de Sofala, chamavam de cafre (termo pejorativo para se referir a aquele que não era muçulmano), os portugueses também tomaram conhecimento sobre o antigo Reino do Grande Zimbábue, na época em decadência e assimilado pelo Monomotapa. Todavia suas vilas muradas, chamadas de zimbábues ainda estavam de pé, e impressionavam. 

Representação de um zimbábue, uma vila murada. 
“Quando o Estado do Grande Zimbábue esta no apogeu, o sul da África central achase no limiar da documentação histórica e da tradição oral. Pelo final do século XV, o Grande Zimbábue começa a ser abandonado por boa parte de sua população. As forcas associadas ao poder econômico e politico deslocaramse para o sul e para o oeste, sob a chefia do poderoso clã rozwi. As tradições orais registram o surgimento de um soberano hereditário, o mwene mutapa (senhor do saque), sendo o primeiro Mutota. Seu filho Mutope expandiu o território do mwene mutapa para o norte, transferindo sua capital para uma região setentrional, longe do Grande Zimbábue. Posteriormente, por volta de 1490, as partes meridionais do reino romperam com a autoridade central, constituindo, sob a liderança de Changamire, um poderoso Estado separado”. (FAGAN, 2010, p. 618-619).

Ruínas da muralha do grande zimbábue a capital do Estado homônimo. 
Portugal passa a lutar pelo ouro do Monomotapa: 


“Embora a chegada dos portugueses a Sofala remonte a 1506, somente foi de 1550 a 1630 que eles tentaram verdadeiramente submeter o Império Mutapa. Até 1540, o comércio entre portugueses e shona foi oficioso. Nessa data, as relações comerciais entre os negociantes portugueses, os monarcas mutapa e os seus súditos foram, entretanto, regularizadas e oficializadas através da abertura de uma missão diplomática e comercial no palácio real mutapa. Tal missão foi colocada sob o comando de um oficial nomeado capitão das portas. Ele era eleito vitalício pelos portugueses que comerciavam no Império, mas sua nomeação devia ser confirmada pelos imperadores mutapa. Suas principais funções consistiam em transmitir aos soberanos mutapa as ofertas, os requerimentos e as queixas dos comerciantes portugueses e viceversa. As relações entre a comunidade portuguesa e os soberanos mutapa eram essencialmente de natureza tributária: os portugueses pagavam um tributo, a curva. (BILA, 2010, p. 764). 

A boa relação perdurou até meados do século XVI, quando a instabilidade política do Monomotapa começou a afetar não apenas o comércio interno, mas também o comércio externo. Portugal percebendo que alguns de seus fornecedores e clientes estavam com problemas, pois compunham o grupo que se opunha ao imperador ou algum grupo que acabou se vendo em meio as disputas de ambos, os portugueses decidiram agir. Além disso, os portugueses também decidiram também terminar com os intermediários, neste caso, a maioria dos intermediários era formada pelos mercadores muçulmanos de Sofala e Moçambique, os quais nem sempre se davam bem com os portugueses. 

Na década de 1530, os portugueses já haviam comprometido o monopólio dos comerciantes de Sofala, passando a deter o controle daquele mercado, e para piorar a situação deles, foram fundadas feitorias em no Sene e no Tete, importantes rotas fluviais do império. Ainda assim, os comerciantes de Sofala continuaram a atuar com intermediários principalmente nas províncias pouco conhecidas pelos portugueses. As disputas entre mercadores cristãos e muçulmanos durou por quase dois séculos. No entanto, não foram apenas as autoridades de Sofala e Moçambique que se viram lesadas, as autoridades do Monomotapa também começaram a perceber problemas com o crescimento abusivo de estrangeiros em suas terras. 

Mapa de Cefala. Braun e Hogenberg. 1572. Neste mapa da ilha de Sofala ou Cefala, nota-se a Fortaleza de São Caetano de Sofala, construída pelos portugueses. A fortaleza foi a principal defesa da ilha por vários anos. 
“Com a derrota dos árabessuaílis, os portugueses não mais tinham maiores concorrentes ao longo da rota comercial do Zambeze e no interior do país. Primeiramente, a Coroa portuguesa havia se fixado com o objetivo de monopolizar a totalidade das trocas ocorridas em Sofala e no interior das terras. Porém, tal objetivo não foi alcançado, pois a cupidez conduziu os comerciantes a fecharem acordos independentes com os chefes africanos. Assim como que já foi notado, em 1541, havia tantos negociantes portugueses no interior das terras que era preciso formalizar e regulamentar suas atividades no Império Mutapa”. (BILA, 2010, p. 795).

Os monarcas monomotapas passaram a criar novas barreiras alfandegárias e fiscais para barrar o avanço dos mercadores portugueses. A ideia era limitar o acesso deles aos mercados internos, como também cobrar novas taxas para autorizar o livre comércio entre os dois países. Todavia, Portugal daquele tempo como outras nações europeias como Espanha, França e Inglaterra, eram países ambiciosos e gananciosos. Os reis portugueses não gostaram de saber de tais imposições, assim os portugueses começaram a tomar partido das desavenças entre os vassalos e o monomotapa. 

Padre Gonçalo da Silveira.
Entre 1560 e 1561, o padre jesuíta Gonçalo da Silveira (1526-1531) havia decido pregar a palavra de Cristo no Império Monomotapa, no entanto, a recepção não foi tão boa. Os habitantes já não haviam se convertido ao islamismo, o qual coexistia na região costeira desde a Idade Média, logo, eles se mantinham fiéis as suas crenças, sendo politeístas. Tendo chegado a Sofala em 11 de marcho de 1560 ele decidiu iniciar sua missão no sul do império. Na região de Gamba, ele converteu o chefe Makaranga e mais 400 pessoas. Nas semanas seguintes ele prosseguiu com seu trabalho, então decidiu antes do final do ano viajar para a capital, a fim de converter o imperador Negomo Mupunzagatu Monomotapa. Durante sua permanência na capital, o padre Silveira foi auxiliado por outros dois jesuítas advindos de Moçambique. Durante esse tempo pelo menos 200 ou 300 pessoas da Corte e da elite da capital foram convertidas ao catolicismo. Posteriormente o próprio monarca se converteu, no entanto, parte da população mostrou oposição em aderir a fé estrangeira, ao ponto de difundirem mentiras sobre o padre e seus missionários, o que levou o monomotapa Negomo a convocar um conselho para deliberar tais acusações dentre as quais estavam a de bruxaria e espionagem. O conselho votou pela execução dele (NICOLAIDES, 2011, p. 134-137). 

Com o assassinato do frei Gonçalo da Silveira a tensão entre os dois reinos aumentou ao ponto de eclodir desconfiança das duas partes, o que repercutiria em guerra. A morte do padre jesuíta foi apenas um pretexto para que Portugal pudesse por em ação o que já vinha sendo considerado a algum tempo: tomar a força algumas das minas e mercados da região. 

Entre 1569 a 1575 Portugal enviou soldados para lutarem nas guerras contra o Monomotapa, e no final destas guerras, dois reinos tributários, Uteve e Maniva recuperaram a independência, esta conquistada com o apoio militar de Portugal. A ideia de conseguir a emancipação de Uteve e Maniva dizia respeito ao comércio, pois acreditava-se que importantes minas de ouro existiriam em seus domínios, logo, Portugal tinha em mente que se conseguisse ajudar tais reinos, isso seria caminho para firmar um acordo bastante proveitoso. 

“Entre 1575 e 1684, assistiuse a uma modificação do comércio entre camponeses africanos e negociantes portugueses. Estes últimos consolidaram sua vitória militar e comercial sobre os árabessuaílis, modificando o sistema dos bazares para transformálos em feiras. Os terrenos onde eles aconteciam eram cedidos pelos chefes africanos locais. Com o tempo, as feiras tornaramse as matrizes do comércio entre africanos e portugueses. Tratavase de vastos recintos cercados com muretas feitas de paliçadas curtas de toras, com algumas cabanas de taipa, próximas das zonas de exploração aurífera. Cada feira possuía sua fortaleza, sua guarnição de 10 a 15 soldados, teoricamente, sua igreja com um padre e seu capitãomor. Algumas feiras eram administradas pelo Estado dos Rios de Sena, outras eram propriedades privadas”. (BILA, 2010, p. 799-800). 

Nos anos seguintes Portugal conseguiu assegurar certa autoridade sobre o Monomotapa, Uteve e Maniva através de acordos de paz e de comércio. Suas feiras e mercados favoreceram bastante o comércio português, embora necessariamente o ouro não fosse a principal mercadoria a ser negociada, pois por esse tempo o império Monomotapa estava em decadência e a exploração aurífera havia decaído. A trégua ou "paz" entre Portugal e o Monomotapa durou até 1590, quando novas rebeliões eclodiram.

“Este limitado sucesso incitou os portugueses a tentarem outras incursões no Império Mutapa. As rebeliões, que lá explodiram entre 1590 e 1607, forneceramlhes a oportunidade de mergulhar na complexidade da política mutapa. Um chefe mutapa, Gatsi Rusere, apelou para os portugueses e com eles assinou um tratado de assistência militar. Em troca, prometeu ceder todas as suas minas de ouro, de cobre, de ferro, de chumbo e de estanho. Certamente, o tratado conferia aos portugueses o prestígio da propriedade, mas eles não possuíam nem a mão de obra nem os conhecimentos técnicos necessários para explorar os metais. Na verdade, o tratado teve pouco valor porque os portugueses deixaram Gatsi Rusere afrontar sozinho as guerras civis, que não cessaram até sua morte em 1624. A sucessão de Gatsi Rusere coube ao seu filho, Nyambu Kapararidze, cuja legitimidade do trono real mutapa foi contestada por seu tio Mamvura. Na guerra que se seguiu entre os dois rivais, Mamvura solicitou a assistência militar dos portugueses, obtendoa em 1629. Após ter extorquido de Mamvura um certo número de promessas, os portugueses aliaram se a ele contra Kapararidze. Tais promessas incluíam, notadamente, um tratado de vassalagem e a alienação das minas de ouro e de prata. Como Gatsi Rusere em 1607, Mamvura subiu ao trono com o apoio militar dos portugueses. O tratado acertado com eles o obrigava a consentir aos mercadores portugueses o direito de circular livremente em todo o Império, de expulsar os mercadores árabessuaílis de seu território e de autorizar os missionários dominicanos a pregarem sua religião”. (BILA, 2010, p. 766).


“Mamvura comprometiase também a suprimir a curva, paga pelos portugueses aos chefes mutapa, aproximadamente, desde a metade do século XVI, e a pagar, a partir de então, um tributo a esses últimos. Após a assinatura deste tratado, era cada vez mais numerosa a quantidade de comerciantes e de aventureiros portugueses que chegavam ao território do Império Mutapa. Mamvura e sua mulher foram ambos batizados e, respectivamente, ganharam os nomes Domingos e Luiza. Esse tratado de 1629 encorajou aventureiros portugueses a se apossarem de terras, as quais, mais tarde, foram reconhecidas pela Coroa portuguesa sob o estatuto de prazos (terras da Coroa)”. (BILA, 2010, p. 766-767). 

O tratado obtido com Mamvura Monomotapa (os monarcas usavam o título monomotapa como parte de seu nome real) assegurou aos portugueses uma grande conquista em termos político-econômicos, a criação do sistema de prazos, os quais manteriam a Coroa Portuguesa bastante influente na economia e na política do reino africano até o final do século. 

“A partir deste momento, a aquisição de terras por aventureiros portugueses prosseguiu praticamente sem freios: foi desta forma que se constituíram numerosos prazos da coroa, pertencendo a funcionários, mercadores, ordens religiosas e a pioneiros portugueses. O regime do prazo era uma síntese de dois sistemas socioeconômicos. O primeiro era aquele dos shona, cuja sociedade dividiase em uma oligarquia dirigente e camponeses produtores. O segundo, que se sobrepunha ao precedente, era o dos prazeros, reinando como classe dominante sobre os chikunda (exércitos de escravos). Em outras palavras, os prazeros perpetuaram o sistema sociopolítico encontrado por eles ao chegarem a região do Zambeze. O chefe africano continuava a exercer as funções tradicionais, porém, “sem deter, a partir de então, a autoridade absoluta”, o prazero atribuindo a si próprio o título de suserano. Nesse sentido, sua relação”. (BILA, 2010, p. 767).

Mapa do Monomotapa. Willem Janszoon Blaeu. 1634. 
O sistema de prazos perduraria até meados do século XVIII, trazendo vários problemas para o reino, pois se antes o monomotapa detinha a autoridade em controlar e determinar os limites que os portugueses possuíam para comercializar em suas terras, agora era o contrário que ocorria; os portugueses se faziam senhores deste acordo, ao ponto ao qual por quase cem anos, Portugal praticamente controlou parte da economia do Monomotapa, pois embora na prática o governo mantivesse sua autonomia administrativa, eles eram "reféns" dos interesses da Coroa portuguesa. 

Considerações finais: 

Definir quando o Reino do Monomotapa chegou ao fim é outro problema de datação envolvendo a história deste reino africano. Assim como se há dúvidas quando ele teria surgido e quando ele teria se tornado um império, há também dúvidas de quando ele terminou. Todavia os historiadores se divergem entre si para definir se o fim do império se deu ainda no século XVII quando ele de fato se tornou dependente economicamente de Portugal, assim como, começou a perder vários de seus territórios. Para outros o império de fato termina no século XVII, mas o Estado sobrevive até meados do século XVIII. 

A dependência econômica para Portugal foi um duro golpe para o Monomotapa, pois o sistema de prazos manteve-se operante até o século XVIII, o que tornava vários portugueses arrendatários e senhores de terras no Monomotapa, como também obrigava o governo e a população a pagarem impostos a Coroa lusitana. 


Gravura do Grande Rei Monomotapa. A obra em questão representa um dos monarcas do século XVIII. 
Por outro lado, a fragilidade política levou ao aumento de revoltas entre os vassalos e o monarca, o que eclodiu em novos conflitos, gerando sessões territoriais. Se no século XVI os reinos de Uteve e Maniva haviam se separado do Monomotapa, ao longo dos séculos XVII e XVIII novos territórios iriam se desmembrar também, formando pequenos reinos como os de Maungwe, Barwe, Danda, Buhera, Butwa, Dande, Chidima. 

Todavia, a grande ameaça do reino não foram esses pequenos reinos rebeldes mas dois inimigos maiores: o Reino de Malavi ao norte do Zambeze e o Reino dos Rowzi o qual se tornou um poderoso império entre os séculos XVII e XVIII, sendo considerado por alguns historiadores como Bila (2010, p. 774) um dos fatores para o fim do Monomotapa, pois a Dinastia Rowzi desde o século XVI vinha combatendo os monomotapas, mas apenas décadas depois é que seus reis consolidaram sua autoridade, tornando-se uma ameaça tão grande que em dados momentos, o Monomotapa tornou-se Estado vassalo do Império Rowzi, para finalmente sucumbir no século XVIII.  

Com o fim do Império Monomotapa no século XVIII, terminava a história de mais de cinco séculos de um poderoso e rico Estado situado no sul da África, o qual por bastante tempo comandou vários povos e pequenas nações, como também fez negócios com os europeus e asiáticos, exportando seu cobiçado ouro, ao ponto de ser conhecido em alguns locais como o "reino das minas de ouro".

NOTA: O termo mwene mutapa possui mais de uma tradução; normalmente é traduzido como "senhor das minas", mas alguns historiadores o traduzem como "senhor dos metais" e "confiscador de metais". 
NOTA 2: O Monomotapa manteve-se fiel as suas crenças religiosas ao longo de toda a sua história, pois poucos foram aqueles que se converteram ao cristianismo e ao islamismo. No entanto, pouco se conhece sobre as religiões praticadas no reino. 
NOTA 3: Alguns historiadores consideram o Monomotapa como uma continuação do Reino do Grande Zimbábue, a meu ver, não seria uma continuação, pois ambos foram Estados que embora próximos, e até mesmo tivessem alguns aspectos culturais em comum, eles seguiram caminhos diferentes. 
NOTA 4: No século XVIII com as perdas territoriais do Monomotapa, a aversão dos Rowzi aos portugueses, Portugal foi perdendo influência no interior do continente e pouco a pouco foi ficando restrita a terras mais próximas da costa, no que hoje são Angola e Moçambique. 

Referências Bibliográficas: 
AZIZ, Philippe. Os impérios negros da Idade Média. Rio de Janeiro, Editiones Famot, 1977. (Coleção Grandes Civilizações Desaparecidas). 
BILA, H. H. K. A região ao Sul do ZambezeIn: OGOT, Bethwell Allan (ed.). História Geral da África V: África do século XVI ao XVIII. 2a ed. Brasília, UNESCO, 2010. (Capítulo 22).  
DIAGNE, P. As estruturas políticas, econômicas e sociais africanas durante o período considerado. In: OGOT, Bethwell Allan (ed.). História Geral da África V: África do século XVI ao XVIII. 2a ed. Brasília, UNESCO, 2010. (Capítulo 2).  
DIAS, Manuel Nunes. Os campos de ouro do Monomotapa. Revista de História, vol. 17, n. 35, 1958, p. 107-122. 
FAGAN, Brian Murray. As Bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500In: NIANE, Djibril Tamsir (ed.). História Geral da África IV: África do século XII ao XVI. 2a ed. Brasília, UNESCO, 2010. (Capítulo 21). 
FRATICELLI, Barbara. Una aventura más allá del Mar Tenebroso: El Monomotapa. Revista de Filologia Románica, ano IV, 2006, p. 163-181. 
GARCIA, José Manuel. Portugal e os Descobrimentos. Traduções de Maria de Jesus Hernandez, Richard Zenith e Xavier Madirolas. Lisboa, Comissariado de Portugal para a Exposição Universal de Sevilha, 1992. 
NICOLAIDES, A. Early Portuguese imperialism: Using the Jesuits in the Mutapa Empire of Zimbawe. International Journal of Peace and Development Studies, vol. 2, n. 4, 2011, p. 132-137. 
NIANE, Djibril Tamsir. ConclusãoIn: NIANE, Djibril Tamsir (ed.). História Geral da África IV: África do século XII ao XVI. 2a ed. Brasília, UNESCO, 2010.
NIANE, Djibril Tamsir. Introdução. In: NIANE, Djibril Tamsir (ed.). História Geral da África IV: África do século XII ao XVI. 2a ed. Brasília, UNESCO, 2010. 
PHIRI, K. M; KALINGA, O. J; BILA, H. H. K. A Zambézia do Norte: a região do Lago MalauiIn: OGOT, Bethwell Allan (ed.). História Geral da África V: África do século XVI ao XVIII. 2a ed. Brasília, UNESCO, 2010. (Capítulo 21).  
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Portugal e o Mundo: nos séculos XII ao XVI. São Paulo, Editorial Verbo, 1994. 

Links relacionados:  África Dourada: Tomboctu, Zanzibar e o Grande Zimbábue
Portugal e a Era dos Descobrimentos

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Egito Negro

No século XX as produções cinematográficas para o cinema, televisão, internet, e até mesmo representações teatrais, circenses e em outras mídias como a literatura, quadrinhos, videogames, desenhos, pinturas, esculturas, etc., tendem a representar o povo egípcio como tendo sido uma população predominantemente branca. Tal tendência não começou no século XX, mas foi durante ele que essa referência imagética de um "Egito branco" prevaleceu na cultura e na mentalidade contemporânea. E mesmo no século XXI, ainda vemos filmes, novelas, desenhos, etc., retratando os faraós sempre brancos, a nobreza egípcia sempre branca, o grosso da população sendo branca, e quando há negros e pardos, estes geralmente são camponeses ou escravos. 

A proposta deste texto foi apresentar com base em fontes históricas, literárias e iconográficas, que o Egito foi uma nação mestiça, mas predominantemente negra e parda, diferente desse "branqueamento" que a sociedade europeia e ocidental tentou impor, e que infelizmente ainda acaba gerando equívocos, pois já vi pessoas dizerem que os Egito por ser localizado na região norte da África, pertence a chamada "África branca", no entanto, essa ideia de "África branca" é um mito. A África como outros continentes do mundo, é um continente mestiço, embora que o grosso de sua população seja negra. 

Descrições de estrangeiros:

O historiador grego Heródoto de Halicarnasso (c. 480 - c. 425 a.C), em seu livro Histórias, em alguns momentos menciona que havia gente negra no Egito. Em uma das passagens de seu livro, Heródoto fala sobre o povo de Cólquida, região situada na Ásia, a costa do Mar Negro, no que hoje é território da Geórgia. De acordo com ele, os colquidianos se diziam ser descendentes dos egípcios; Heródoto mostra-se incrédulo quanto a isso, no entanto, diz que os colquidianos eram negros e de cabelo crespo como os egípcios, embora ele saliente que havia outros povos com estas mesmas características, o que significava que necessariamente os colquidianos não seriam descendentes dos egípcios (HERÓDOTO, 2006, p. 179). 


Pintura num mural retratando um homem e uma mulher participando da colheita. Percebe-se que ambos têm a pele parda e o cabelo crespo.
Segundo o tratado grego Fisionomia, supostamente atribuído ao filósofo Aristóteles (384-322 a.C), nesta obra, o autor em questão diz que os egípcios e etíopes eram negros (DIOP, 2010, p. 13). 

O escritor grego Luciano de Samósata (c. 125-190) em seu livro Navegações, menciona o diálogo entre dois homens chamados Licino e Timolaus; na ocasião os dois comentam a respeito de um homem negro que haviam visto, o qual usava o cabelo longo e trançado. Timolaus diz que aquele estilo de cabelo era comumente usado entre os egípcios, inclusive que eles eram negros. Já o geógrafo grego Estrabão (64-24 a.C) autor da volumosa obra Geografia, especificamente no livro 1, cap. 3, ele diz que os etíopes e os colquidianos, eram negros como os egípcios. 


Imagem comparando a fisionomia de quatro mulheres egípcias com uma mulher atual. Nota-se as semelhanças físicas
Os romanos durante sua República e Império conquistaram terras no norte da África, e ali se depararam com populações negras e pardas, diferente da ideia de que no Norte do continente africano, todos seus habitantes seriam na maioria brancos. Um exemplo interessante diz respeito aos Numidas, um povo de origem berbere, que era descrito como sendo mestiço. Os Numidas viviam na Numídia região hoje que compreende parte da Argélia. Nos relatos sobre sua aparência, nota-se que os escritores atestam que eles tinham a pele clara ou escura. Os romanos também viam os egípcios como um povo mestiço e não predominantemente branco. 

De acordo com a Bíblia Sagrada (Gênesis 10:6), Cam o caçula de Noé, teria tido quatro filhos inicialmente, chamados de Cuxe, Mizraim, Pute e Canaã. Tais filhos dariam origem as populações do Oriente Médio e da África. Curiosamente o nome Mizraim era usado pelos hebreus para se referir ao Egito, Cuxe, se referia a Kush, um antigo reino na Núbia; Pute corresponderia a uma região hoje no Marrocos, e Canaã é a PalestinaO historiador hebreu Flávio Josefo detalha melhor a história dos descendentes de Cuxe, Mizraim, Pute e Canaã dizendo como eles se espalharam da Mesopotâmia ao Marrocos, da Síria à Arábia, da Palestina à Etiópia (JOSEFO, 2004, p. 21-22). 

Por sua vez, Cam significa "queimado" em hebraico, o que é interpretado por alguns estudiosos como sendo uma alusão a cor da pele escura. De fato, Heródoto (2006, p. 180-181) menciona que haveria regiões na África que o sol era tão intenso que os homens tinham a pele escura, pois ela era queimada. Inclusive os gregos antigos possuíam o termo para se referir a tal condição, algo que será visto adiante no texto. 

 Egípcios jogando xadrez. Pintura de Sir Lawrence Alma-Tadena, 1865.
Embora não podemos garantir veracidade ao relato bíblico, porém sabemos que o encontro entre tais povos ocorria, de fato, o Egito foi terra de passagem de vários povos ao longo de milênios, daí ser visto como uma nação miscigenada. Por outro lado, atribuir-se que todos os supostos descendentes de Cam seriam negros e pardos, é um problema, pois a área do Oriente Médio no qual seus descendentes teriam se estabelecido, não possuem apenas populações negras e pardas, mas possuem populações brancas e amarelas. 

Para Jean Vercoutter (1980, p. 26-27), a população egípcia era miscigenada, no entanto, era puramente de origem africana, ou seja, o povo egípcio ele era naturalmente oriundo da África, embora não se saiba de onde eles vieram, provavelmente de terras do sul, migrando até a região do Nilo. Todavia, devido ao contanto com as terras vizinhas, elementos brancos, pardos, amarelos e negros se misturaram para formar o povo egípcio. O problema da opinião de Vercoutter é que ele não dava atenção a essa miscigenação, renegando a contribuição cultural de outros povos os quais habitaram e fundaram dinastias faraônicas como os hicsos e os núbios. 

Na Idade Média e no começo da Idade Moderna, a palavra egípcio estava associada em alguns países europeus com o sentido de se referir aos ciganos e a pessoas de pele escura. No romance gótico O Corcunda de Notre-Dame (1831), embora seja uma obra de ficção, ainda assim, como em outros livros de Victor Hugo, o autor fazia uso de referências históricas para conceder maior verossimilhança as suas narrativas. 

Menciono em particular esse livro pelo fato de que a cigana Esmeralda é várias vezes chamada de "egípcia" (gipsy em inglês, gitan em francês). As palavras gipsy e gitan são contrações da palavra egyptian, ou em português, egípcio. Neste caso, no medievo e na modernidade, "egípcio" era sinônimo de cigano em alguns países. E ainda hoje o termos gipsy, gitan, gitano, etc., são usados para identificar os ciganos. 

Na obra, Esmeralda é descrita como uma bela mulher de dezesseis anos, tendo longos cabelos negros, olhos castanhos e pele escura. Embora Esmeralda fosse uma francesa de nascença, mas devido a ser uma cigana e ter a pele mais escura, era considerada uma estrangeira, uma filha da Boêmia ou do Egito, locais que o imaginário europeu da época creditava serem a terra de origem dos ciganos. Além disso, muitos ciganos franceses naquele tempo era descritos como sendo pessoas mestiças, sendo brancos ou pardos. De fato, a relação de ciganos com o Egito é um mal entendido, pois não se sabe ao certo de onde vieram os ciganos, pois pelo fato deles terem se espalhados por três continentes, traçar suas origens é algo bastante difícil. No entanto, a referência a cor da pele não está errada. 


A cigana Esmeralda na versão de O Corcunda de Notre-Dame (1996), feito pelo Walt Disney. No livro Esmeralda era chamada de "egípcia" devido ao fato de ser cigana, mas também por ter a pele escura. 
Questão etimológica: 

Primeiramente é preciso dizer que o nome Egito, não é um nome de origem egípcia, mas sim de origem grega, advindo de Aígyptos, palavra essa que significava "templo dedicado ao deus Ptah", sendo que Aígyptos seria uma variação de Ha-k-Ptah. Por sua vez, os romanos latinizaram o termo grego para Aegiptos. Ptah foi um importante deus associado a cidade Mênfis, uma das capitais do país. 

Nota-se que o nome Egito é de origem grega, no entanto nada tem de referência a cor daquela população, porém, quando passamos para outro termo também de origem grega, surge uma certa proximidade. 

A palavra etíope vem do grego aithiops, que significava "aquele que tem o rosto queimado". Por sua vez os romanos latinizaram a palavra para aethiops. Assim quando colocamos lado a lado as palavras gregas aígyptos e aithiops, e, as palavras latinas aegiptos e aethiops, a grafia e a pronúncia são parecidas, talvez trata-se apenas de coincidência, no entanto, um fato é que a palavra etíope antes de ser utilizada para designar o habitante que nasce na Etiópia, era um termo genérico para se referir a qualquer africano negro. Sendo assim, em obras gregas e latinas, não era incomum encontrar o termo etíope para designar qualquer africano negro, independente de onde ele era oriundo. 

Os árabes quando começaram a melhor explorar a África, eles passaram a designar as populações negras do Saara, através do termo as-sudan que significa "gente negra". O nome dos dois países Sudão e Sudão do Sul vem do árabe bilad as-sudan "a terra dos negros". Antes dos árabes melhor conhecerem a África, eles ficaram restritos aos países que englobam o deserto do Saara e como a população ali era predominantemente negra, eles chamaram aquelas terras de bilad as-sudan. Tal aspecto por si só desmente a ideia de que os africanos da região saariana fossem predominantemente brancos.


Estátua do faraó Mentuhotep II da XI Dinastia, tendo governado por volta de 2061-2010 a.C. A ideia de que todos os faraós eram brancos, isso é uma invenção midiática.  
Um dos nomes usados pelos antigos egípcios para se referir a sua nação, era Kemet, que significava "terra negra". Normalmente os historiadores interpretam que o termo Kemet fosse uma referência as terras férteis situadas ao longo das margens do Nilo. De fato, tal terra é de coloração mais escura, devido a umidade e aos nutrientes ali presentes. Por outro lado, kemet era usado para se diferenciar as terras férteis das terras desérticas ou estéreis, chamadas de deshret "terra vermelha". Entretanto, existe um ponto peculiar no uso do termo kemet; os egípcios se autodenominavam em algumas épocas usando a expressão: remet-en-kemet que significava "o povo da terra negra" (SILLIOTTI, 2006, P. 16). 

Muitos historiadores preferem creditar que o uso de Kemet deve-se apenas a referência as terras férteis as margens do rio Nilo, mas alguns alegam que além dessa conotação, kemet também poderia ser uma alusão ao seu povo, algo como a "terra dos negros". Para respaldar isso vejamos a explicação do historiador e antropologista senegalês Cheikh Anta Diop 

“Os egípcios tinham apenas um termo para designar a si mesmos: kmt, = “os negros” (literalmente). Esse e o termo mais forte existente na língua faraônica para indicar a cor preta; assim, e escrito com um hieróglifo representando um pedaço de madeira com a ponta carbonizada, e não com escamas de crocodilo. Essa palavra e a origem etimológica da conhecida raiz kamit, que proliferou na moderna literatura antropológica. Dela deriva, provavelmente, a raiz bíblica kam. Portanto foi necessário distorcer os fatos para fazer com que essa raiz atualmente signifique “branco” em egiptologia, enquanto, na línguamãe faraônica de que nasceu, significava “pretocarvão”. Na língua egípcia, o coletivo se forma a partir de um adjetivo ou de um substantivo, colocado no feminino singular. Assim, kmt, do adjetivo = km = preto, significa rigorosamente “negros”, ou, pelo menos, “homens pretos”. O termo e um coletivo que descrevia, portanto, o conjunto do povo do Egito faraônico como um povo negro”. (DIOP, 2010, p. 21-22). 


Pintura retratando dançarinas e músicas egípcias. 
Baseado neste seu argumento, Diop defendia que o termo remet-en-kemet poderia significar "o povo da terra dos negros". Para ele, kmt era utilizado de duas formas: no sentido de cor, ou seja, aquelas pessoas se reconheciam como sendo negros, mas também kmt estaria ligado a uma ideia de identidade, ou seja, eles se reconheciam como habitantes de uma nação chamada Kemet. Para respaldar essa ideia de identidade, Diop (2010, p. 25) assinala que os egípcios chamavam os núbios de nahas. Lembrando que os núbios eram na sua maioria negros, mas os egípcios não usavam o termo kmt para se referir a eles. 

Representações iconográficas:

Existem um grande número de representações iconográficas, das quais algumas anteriormente apresentadas que apontam o fato dos egípcios serem pardos e negros, embora houvessem egípcios brancos. Todavia, vejamos mais algumas dessas representações, como a de baixo na qual retrata um homem pardo e uma mulher branca, ambos segurando vasos.  



A ideia de que o Egito era uma nação branca por se localizar no norte da África não é totalmente verdadeira. De fato, a proximidade com o Mediterrâneo, que os conectava a Europa, e por sua vez com o Oriente Médio, que os ligava aos povos asiáticos brancos e amarelos, tornava o Egito um local de passagem e conversão de várias pessoas. Sendo assim ao longo da História, o Egito teve uma população mestiça. Hicsos, hititas, mitanes, hebreus, núbios, persas, gregos, romanos, fenícios, bizantinos, árabes, etc., viajaram ao Egito e ali se estabeleceram. 


Estátua do faraó Akhenaton (ou Amenhotep IV) e da rainha Nefertiti. Percebe-se que o faraó era pardo e sua esposa era mais clara, talvez branca. 
Quando vemos outras representações do faraó Akhenaton percebemos que ele era pardo e suas filhas também. No caso de Nefertiti pelo que se conhece de suas feições, ela seria branca ou parda, embora como dito, exista a dúvida quanto a suas origens, as quais poderiam ser asiáticas. Ainda assim, revela como o Egito era uma nação mestiça, ainda mais neste caso em particular, pois era comum os faraós casarem-se com suas irmãs para manter a linhagem-real, mas Nefertiti não era irmã de Akhenaton, e haja dúvidas se fosse alguma prima ou uma estrangeira completa. 

Todavia, além de Akhenaton e suas filhas serem pardas, seu famoso filho Tutancâmon também era pardo, diferente do que a mídia tenta passar de que se tratava de um homem branco. Alguns creditam que o busto abaixo seja uma representação do jovem faraó que morreu aos 19 anos. Tutancâmon assumiu o trono por volta de seus oito ou nove anos, casando-se com sua irmã Anakshunamum. Tanto ele quanto ela, eram pardos, e mesmo que tal busto não seja uma representação do faraó, existem outras representações dele e de sua esposa, que mostram a cor mais escura de suas peles. 


Busto de um menino encontrado na tumba do faraó Tutancâmon. 
Por fim, exponho a imagem de um dos faraós mais conhecidos, Ramsés II, terceiro faraó da XIX Dinastia. Ramsés II cognominado "o Grande" foi um guerreiro e conquistador, além de supostamente ser o "faraó do Êxodo". Nos anos 70 quando sua múmia foi levada para Paris, a fim de se estudada, alguns dos cientistas que trabalhavam na pesquisa, especialmente P. F. Ciccaldi ao analisar a pigmentação dos cabelos de Ramsés II, constatou que havia pigmentos de origem vermelha, ou seja, o faraó teria sido ruivo. 


Ciccaldi publicou um artigo defendendo que o faraó Ramsés II, seu pai Seti I, e um de seus avós, todos seriam de linhagem ruiva, logo, seriam brancos. Todavia, mesmo os ruivos na Europa não são comuns, estando restritos ao Norte do continente. Além disso, hoje se sabe que existem povos negros que possuem naturalmente olhos azuis e cabelos louros, e em alguns casos, encontram-se negros e pardos que são ruivos naturais. O problema é como definir o fator que levou a tais pessoas nascerem ruivas. Teria sido alguma miscigenação de algum antepassado desconhecido? Ou uma mutação genética?

No caso de Ramsés, os cientistas concluíram que ele não seria ruivo como sugerido por Ciccaldi, provavelmente os testes que ele fez, foram contaminados com pigmentos encontrados na múmia, pois percebeu-se que os cabelos mesmo brancos, continham pigmentos de tinta. Os egípcios tinham o costume de pintar as perucas ou os próprios cabelos em alguns casos.  

De qualquer forma, os cientistas hoje na maioria descartam uma ascendência ruiva para Ramsés II e seus antepassados, e apontam que ele fosse mestiço, talvez sendo branco ou pardo, mas não negro como sugeriu Cheikh Anta Diop. Todavia, em 90% das representações midiáticas de Ramsés II, ele é retratado como sendo branco, mas quando vemos algumas representações da sua época, elas nos revelam outro ponto de vista. 


Pintura retratando o faraó Ramsés II durante a invasão a Núbia. Nota-se que os núbios são representados como sendo negros e pardos, assim como, os egípcios. E no caso do faraó em si, ele é retratado como sendo pardo.
Considerações finais: 

Depois desse breve estudo, acredito que fique mais nítido a percepção de que o povo egípcio era mestiço, mas sendo na sua maioria formado por pardos e negros. Se hoje no Egito há mais brancos do que negros, deve-se a colonização que o país sofreu ao longo de mais de mil anos. No século V a.C o Egito começou a ser atacado constantemente pelos persas, depois vieram os greco-macedônios com Alexandre, o Grande, por sua vez Ptolomeu fundou sua dinastia em Alexandria, abrindo ainda mais o país ao acesso dos gregos. No século I a.C, os romanos tomaram o país, tornando-o sua província e assim o mantiveram até o século V d.C. No século VII os árabes invadiram o Egito e por ali se estabeleceram pelos séculos seguintes. 

Assim, se hoje o Egito parece ser mais uma nação de pessoas claras, deve-se a essa grande mistura com os persas, gregos, romanos, árabes, turcos, bizantinos, etc., mas antes de tudo isso ocorrer, o chamado Egito Antigo embora fosse miscigenado, sempre foi mais escuro. Porém devido as teorias raciais do século XIX, era inconcebível para os europeus que uma civilização tão avançada como o Egito, fosse uma nação de povos negros e mestiços, pois de acordo com tais teorias raciais, os negros sempre foram uma "raça inferior", daí a tentativa de se "branquear" o Egito a todo o custo, pois era inaceitável que "gente negra" fosse tão ou mais desenvolvida que os gregos e romanos, os quais eram predominantemente brancos. 

NOTA: Na Europa da Idade Média e no começo da modernidade até o século XVI mais ou menos, os termos etíope, egípcio, abissínio e mouro eram usados de forma genérica para se referir a qualquer pessoa negra, independente dela ter nascido ou não nestes países. No poema português Os Lusíadas (1580) os termos etíope e mouro são bastante usados para designar os africanos negros e pagãos, e os africanos muçulmanos, sendo estes negros ou pardos. 
NOTA 2: Existe uma controvérsia se a rainha Cleópatra VII era parda, negra ou branca. A questão é que Cleópatra era descendente de greco-macedônios, além disso, a sua família praticava o incesto real à moda dos faraós, logo, considerar que Cleópatra fosse negra é um tanto difícil, pois a Dinastia Ptolomaica foi na sua maioria de pessoas brancas que se casavam entre si. No entanto, não se sabe exatamente quem era a mãe de Cleópatra, e há possibilidade que sua mãe fosse uma concubina e talvez de pele parda. Outro problema que não contribui para tal explicação é que as representações iconográficas conhecidas não fornecem detalhes sobre a cor de sua pele. E as fontes escritas dizem que ela era uma bela mulher, mas não dizem qual era a sua cor. 

Referências Bibliográficas:
DIOP, Cheikh Anta. A origem dos antigos egípcios. In: MOKHTAR, Gamal (ed.). História Geral da África II: África Antiga. 2a ed. Brasília, UNESCO, 2010. 8v. 
JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus: de Abraão à queda de Jerusalém. Tradução de Vicente Pedroso. 8a ed. Rio de Janeiro, CBAD, 2004. 
HERÓDOTO. Histórias. Tradução de J. Brito Broca. Rio de Janeiro, W. M. Jackson Inc., 1950 (2006). 
HUGO, Victor. O Corcunda de Notre-Dame. Tradução Jorge Bastos. Rio de Janeiro, Zahar, 2015. 
SILLIOTI, Alberto. Egito. Barcelona, Ediciones Folio, S. A., 2006. 
VERCOUTTER, Jean. O Egito Antigo. Tradução de Francisco G. Heidemann. 2a ed. São Paulo, Difel, 1980. 

Referência da internet:
EARLSON, Karl. Redheaded Pharaoh Ramsés II. Disponível em: http://marchofthetitans.com/earlson/rameses.htm. Acessado em 14 de novembro de 2015.