Essa postagem consiste em cinco capítulos do livro Raça e História do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009), publicado pela UNESCO em 1952. Lévi-Strauss teve como base para escrever este livro, algumas de suas viagens pelo mundo, dentre elas o período que viveu, trabalhou e viajou pelo Brasil nos anos 30, onde fora professor de Sociologia na Universidade de São Paulo.
1. Raça e Cultura
Falar da contribuição das raças para a
civilização mundial poderia assumir um aspecto surpreendente em uma coleção de
textos destinados a lutar contra o preconceito racial. Teria sido inútil consagrar
tanto tempo e esforço para demonstrar que, no estado atual das ciências, nada
permite afirmar a superioridade ou a inferioridade intelectual de uma raça em
relação a outra, para depois restituir a importância da noção de raça,
demonstrando que os grandes grupos étnicos trouxeram, enquanto tais, contribuições
específicas para o patrimônio comum da humanidade.
Nada mais longe do nosso objetivo, o que apenas
conduziria a formulação da doutrina racista ao contrário. Quando procuramos
caracterizar as raças biológicas mediante propriedades psicológicas
particulares, afastamo-nos da ciência, quer essa relação seja feita de maneira
positiva ou negativa. Não devemos esquecer que Gobineau (2), para quem a
história haveria de guardar o lugar de pai das teorias racistas, não concebia a
pretensa "desigualdade das raças humanas" de uma maneira quantitativa
mas sim qualitativa. Para ele, as grandes raças primitivas que formavam a
humanidade nos seus primórdios – branca, amarela, negra – não eram só desiguais
em valor absoluto, mas também diversas nas suas aptidões particulares.
O efeito negativo da degenerescência estava, segundo
ele, mais ligado ao fenômeno da mestiçagem do que a posição de cada uma delas
numa escala de valores comum; e destinada, portanto, a atingir a humanidade
inteira, condenada ao processo crescente de miscigenação(3). Mas o pecado
original da antropologia consiste na confusão entre a noção puramente biológica
da raça (supondo, por outro lado, que mesmo neste campo limitado esta noção
possa ter qualquer objetividade, o que é contestado pela genética) e as
produções sociológicas e psicológicas das culturas humanas. Bastou Gobineau ter
cometido este pecado para ficar preso ao círculo infernal que conduz de um erro
intelectual, não necessariamente de má-fé, à legitimação involuntária de todas
as tentativas de discriminação e de exploração.
Por outro lado quando falamos de contribuição
das raças humanas para a civilização não queremos dizer que as manifestações
culturais da Ásia ou da Europa, da África ou da América, extraiam sua
originalidade do fato destes continentes serem, na sua maioria, povoados por
habitantes de troncos raciais diferentes. Se a originalidade da sua
contribuição existe – e não há dúvidas sobre isso – ela está mais relacionada
com circunstâncias geográficas, históricas e sociológicas do que com aptidões
distintas ligadas a constituição anatômica ou fisiológica de negros, amarelos
ou brancos.
Mas não se pode deixar para segundo plano um
aspecto igualmente importante da história: esta não se desenvolve uniformemente,
mas através dos extraordinariamente diversos modos de sociedades e
civilizações. Esta diversidade intelectual, estética e antropológica não está
ligada por nenhuma relação de causa e efeito àquela que existe no plano biológico
entre determinados aspectos observáveis dos grupos humanos – apenas correm
paralelas, mas em terrenos diferentes. E ao mesmo tempo distingue-se dela por
dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, a diversidade sociológica situa-se
numa outra ordem de grandeza: existem muito mais culturas humanas do que raças(4).
Enquanto as culturas podem ser contadas aos
milhares, as raças contam-se pelas unidades; por outro lado duas culturas
pertencentes a uma mesma raça podem diferir tanto ou mais que duas culturas
provenientes de grupos raciais diferentes. Em segundo lugar, ao contrário da
diversidade entre as raças, que apresentam como principal interesse a sua
origem histórica e a sua distribuição no espaço, a diversidade entre as
culturas coloca uma série de problemas.
Por fim e sobretudo devemos perguntar em que
consiste esta diversidade, com o risco de ver os preconceitos raciais apenas
arrancados da sua base biológica para voltarem em novo campo. Seria inútil
conseguir que o homem comum(5) deixe de atribuir um significado intelectual ou
moral ao fato de alguém ter a pele negra ou branca, ou o cabelo liso ou crespo,
para permanecer em silêncio face a uma outra questão. Se não existem aptidões
raciais inatas, como explicar que a civilização desenvolvida pelo homem branco
tenha feito os imensos progressos que conhecemos, enquanto as outras permanecem
atrasadas, umas a meio do caminho, e outras submetidas a um atraso de milhares
ou dezenas de milhares de anos?(6)
Não podemos, portanto, pretender resolver
negativamente o problema da desigualdade racial se não nos debruçarmos também
sobre o da desigualdade – ou melhor, da diversidade – das culturas humanas, que
o público em geral relaciona com a racial.
2. Diversidade das culturas
Para compreender como, e em que medida, as
culturas humanas diferem entre si, devemos, em primeiro lugar, catalogá-las.
Mas é aqui que começam as dificuldades, porque as culturas humanas não diferem
entre si do mesmo modo, nem no mesmo plano. Estamos, primeiro, diante de
sociedades justapostas no espaço, umas ao lado das outras, umas próximas,
outras mais afastadas, mas contemporâneas, compartilhando o mesmo tempo
cronológico.
Depois, devemos levar em conta as formas de vida
social que se sucederam no passado e que não podemos conhecer por experiência
direta. Qualquer homem pode se transformar em etnógrafo e ir partilhar a
existência de uma sociedade que o interesse; mas, mesmo que se transforme em
historiador ou arqueólogo, nunca poderia entrar em contato direto com uma
civilização desaparecida; só poderia ter um acesso indireto, através dos documentos
escritos a seu respeito, ou dos objetos, ferramentas, obras de arte e outros
registros que esta sociedade porventura tiver deixado(7).
Enfim, não devemos esquecer que mesmo as sociedades
contemporâneas que continuam a ignorar a escrita, aquelas a que chamamos de
“selvagens” ou “primitivas”, foram, também elas, precedidas por outras formas,
cujo conhecimento é praticamente impossível, mesmo de maneira indireta; um
catálogo cuidadoso, portanto, deveria reservar um número de itens em branco
infinitamente maior do que aqueles em que somos capazes de escrever qualquer
coisa. Impõem-se uma primeira constatação: a diversidade das culturas é no
presente, e também foi no passado, muito maior e mais rica que tudo o que
pudermos dela conhecer.
Mas, mesmo se tomados por um sentimento de
humildade e convencidos desta limitação, encontraremos outros problemas. Que
devemos entender por culturas diferentes? Algumas assim parecem, mas quando
fazem parte de um tronco comum, não diferem da mesma forma que duas sociedades que
em nenhum momento mantiveram relações. Assim, o antigo Império Inca do Peru, e o Daomé na África, diferem entre si de maneira mais absoluta do
que, por exemplo, a Inglaterra e os Estados Unidos de hoje, se bem que estas
duas sociedades também devam ser tratadas como sociedades distintas.
Inversamente, sociedades que estabeleceram
contato recentemente parecem oferecer a imagem de uma mesma civilização, ainda
que tenham seguido caminhos diferentes. Operam simultaneamente, nas sociedades
humanas, forças que atuam em direções opostas, umas tendendo para a manutenção,
e mesmo para a acentuação dos particularismos, outras agindo no sentido da
convergência e da afinidade. O estudo da linguagem oferece exemplos
surpreendentes de tais fenômenos.
Assim, ao mesmo tempo que as línguas de uma
mesma raiz apresentam tendências para se diferenciar umas das outras (tais como
o russo, o francês e o inglês(8)), línguas de origens diversas, mas faladas por
povos que vivem próximos, desenvolvem características comuns; por exemplo, o
russo diferenciou-se, sob determinados aspectos, de outras línguas eslavas para
se aproximar, pelo menos por determinados traços fonéticos, das línguas urálicas e turcas faladas na sua vizinhança geográfica.
Quando estudamos tais fatos – e poderíamos achar
exemplos similares em outros domínios, tais como instituições sociais, arte,
religião – acabamos por perguntar se as sociedades humanas não se definem, face
as suas relações mútuas, por um determinado grau ótimo de diversidade
para além do qual elas não poderiam ir, mas abaixo do qual também não podem ficar.
Este grau ótimo de diversidade variaria em função do número das sociedades, do
seu tamanho demográfico, do seu afastamento geográfico, e dos meios de
comunicação (materiais e intelectuais) de que dispõem.
Com efeito, o problema da diversidade não se põe
apenas a nível das relações entre sociedades diferentes, como também dentro de
cada sociedade em particular, entre os grupos que na constituem: classes
sociais, categorias profissionais, grupos religiosos, e assim por diante; cada
grupo atribui uma extrema importância a essas diferenças que os distinguem uns
dos outros.
Podemos perguntar se esta diversificação
interna não tende a aumentar quando a população cresce, ou por outro lado,
quando se torna mais homogênea; esse talvez tenha sido o caso da Índia antiga,
com o aparecimento de um sistema de castas após o estabelecimento da hegemonia
ariana(9).
Vemos, portanto, que a noção da diversidade das
culturas humanas não deve ser concebida de uma maneira estática, como a que
encontramos em um catálogo de amostras dissecadas. É indubitável que os homens
elaboram culturas diferentes em função do afastamento geográfico, das
propriedades particulares do seu meio, e do maior ou menor grau de isolamento
em relação ao resto da humanidade; mas isso só seria rigorosamente verdadeiro
se cada cultura ou cada sociedade não tivesse nenhuma ligação com as demais, se
tivessem se desenvolvido isoladas umas das outras. Ora, isso nunca aconteceu,
salvo talvez em casos excepcionais como o dos aborígenes
tasmanianos (e mesmo assim, apenas por um período limitado
de tempo).
As sociedades humanas nunca se encontram
isoladas; quanto mais separadas parecem, ainda é sob a forma de grupos ou de
agrupamentos que vamos encontrá-las. Assim, não é exagero supor que as culturas
norte-americanas e as sul-americanas tenham permanecido separadas de todo
contato com o resto do mundo durante um período cuja duração se situa entre 10
e 25 mil anos. Mas este enorme fragmento por tanto tempo separado da
humanidade, consistia, na verdade, numa multidão de sociedades, grandes e
pequenas, que mantinham entre si contatos estreitos.
E a par com as diferenças devidas ao isolamento,
existem aquelas, também importantes, devidas a proximidade: do desejo de
oposição, de se distinguir, de serem elas próprias. Muitos costumes nascem não
de qualquer necessidade interna ou acidente favorável, mas apenas da vontade de
não ficar para trás em relação a um grupo vizinho que submeteu a determinadas
regras um domínio da vida social sobre a qual o primeiro nunca havia pensado
instituir normas. Portanto, a diversidade das culturas humanas não deve induzir
a uma observação fragmentária ou fragmentada. Ela é menos função do isolamento
dos grupos, do que das relações entre eles.
3. O etnocentrismo
A atitude mais antiga e que repousa, sem dúvida,
sobre fundamentos psicológicos sólidos, pois tende a reaparecer em
cada um de nós quando somos colocados numa situação inesperada, consiste em repudiar
pura e simplesmente as formas culturais, morais, religiosas, sociais e estéticas
mais afastadas daquelas com que nos identificamos. “Costumes selvagens”, “isso
não é nosso”, “não deveríamos permitir isso”: são expressões que fazem parte de
um sem-número de reações grosseiras que traduzem este mesmo calafrio, esta
mesma repulsa, em presença de maneiras de viver, de crer ou de pensar que nos
são estranhas.
Deste modo, a Antiguidade designava tudo o que
não participava da cultura grega, (depois greco-romana) com o nome de bárbaro;
em seguida, a civilização ocidental utilizou o termo selvagem no mesmo sentido.
Ora, por detrás destes termos dissimula-se um mesmo juízo: é provável que a
palavra bárbaro tenha origem etimológica na confusão e desarticulação do
canto das aves em oposição ao valor significante da linguagem humana(10); e
selvagem, que significa “da floresta”, evoca também um gênero de vida animal,
por oposição a cultura humana. Recusa-se, tanto num como no outro caso, a
admitir o próprio fato da diversidade cultural, preferimos jogar para fora da
cultura tudo o que não esteja de acordo com as normas sociais existentes.
E, no entanto, parece que a diversidade das
culturas raramente apareceu aos homens tal como é: um fenômeno natural, resultante
das relações diretas ou indiretas entre as sociedades; sempre se viu nela, pelo
contrário, uma espécie de monstruosidade ou de escândalo; em termos de diversidade
cultural, o progresso do conhecimento não consistiu tanto em dissipar esta
ilusão em proveito de uma visão mais exata, mas em aceitá-la, ou em encontrar
um meio de a ela se resignar.
Este ponto de vista ingênuo, mas profundamente
enraizado na maioria dos homens, não necessita ser discutido uma vez que a
coletânea de textos do qual este faz parte é precisamente a sua refutação.
Bastará observar aqui que ele encobre um paradoxo bastante significativo. Esta
atitude do pensamento, em nome da qual se colocam os “selvagens” (ou todos
aqueles que escolhemos considerar como tais) para fora da humanidade, é
justamente a atitude mais marcante e a mais distintiva destes mesmos selvagens.
Sabemos, na verdade, que a noção de humanidade, englobando, sem distinção de
raça ou de civilização, todas as formas da espécie humana, teve um aparecimento
muito tardio e uma expansão limitada(11). Mesmo onde ela parece ter atingido o
seu mais alto grau de desenvolvimento, não existe qualquer certeza, tal como a história
recente o prova, de estar estabelecida ao abrigo de equívocos ou de regressões(12).
Mas, para vastas parcelas da espécie humana, e
durante dezenas de milênios, esta noção parece estar totalmente ausente. A
humanidade acaba nas fronteiras da tribo, do grupo linguístico, por vezes
mesmo, da aldeia; a tal ponto que um grande número de populações ditas primitivas
se designam por um nome que significa os “homens” (ou, por vezes, com menos
discrição, os “bons”, os “excelentes”, os “perfeitos”), implicando assim que as
outras tribos, grupos ou aldeias, não participam das virtudes ou mesmo da
natureza humana, mas são, quando muito, compostos por “maus”, “perversos”,
“macacos de terra”, ou “ovos de piolho”(13).
Chegando-se mesmo, na maior parte das vezes, a
privar o estrangeiro do ultimo grau de realidade, fazendo dele um “fantasma” ou
uma “aparição”. Assim acontecem curiosas situações onde os interlocutores tem atitudes
simétricas. No Caribe, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os
espanhóis enviavam comissões de investigação para indagar se os indígenas
possuíam ou não alma, estes dedicavam-se a afogar os brancos feitos prisioneiros
para verificar se o cadáver estava sujeito a putrefação... Esta anedota,
simultaneamente barroca(14) e trágica, ilustra bem o paradoxo do relativismo
cultural que vamos encontrar mais adiante revestido de outras formas: é na
própria medida em que pretendemos estabelecer uma discriminação entre as
culturas e os costumes que nos identificamos mais completamente com aqueles que
tentamos negar. Recusando a humanidade àqueles que identificamos como
“selvagens” ou “bárbaros”, não fazemos mais que copiar-lhes as suas atitudes. O
bárbaro é, antes de mais nada, o homem que crê na barbárie.
É verdade que os grandes sistemas filosóficos e
religiosos da humanidade, sejam eles o budismo, o cristianismo ou o islamismo;
as doutrinas estoica, kantiana ou marxista, se insurgiram constantemente contra
esta aberração. Mas a simples proclamação da igualdade natural entre todos os
homens, e da fraternidade que os deve unir, sem distinção de raça ou cultura,
tem qualquer coisa de enganador para o intelecto, porque negligencia uma
diversidade de fato, que se impõe à observação, e em relação a qual não basta
dizer que não vai ao âmago do problema, para fingir que não existe. O que convence
o homem comum da existência das raças, como reconhece a declaração da Unesco sobre a questão das raças(15), é “a evidência imediata dos seus sentidos,
quando vê juntos um africano, um europeu, um asiático e um índio
americano”.
As grandes declarações dos direitos do homem
tem, também elas, esta força e esta fraqueza de, ao enunciar um ideal
grandioso, esquecer que o homem não realiza a sua natureza numa humanidade
abstrata, mas nas culturas tradicionais onde mesmo as mudanças mais
revolucionárias deixam intactos enormes setores da vida em sociedade(16); essas
declarações se explicam também em função de uma situação bem definida no tempo
e no espaço.
Preso entre a dupla tentação de condenar
experiências que o chocam afetivamente e de negar as diferenças que ele não
compreende intelectualmente, o homem moderno entregou-se a toda a espécie de
especulações filosóficas e sociológicas para estabelecer vãos compromissos
entre estes polos contraditórios; e para perceber a diversidade das culturas
procurando suprimir o que ela contem, para ele, de escandaloso e de chocante.
Mas, por mais diferentes e, por vezes, bizarras
que possam ser, todas estas especulações se reduzem a uma mesma receita, de que
o termo falso evolucionismo é, sem duvida, o mais adequado para
caracterizar. Em que consiste ela? Trata-se de uma tentativa para suprimir a diversidade
das culturas fingindo conhecê-las completamente. Por que, se tratarmos os
diferentes estados em que se encontram as sociedades humanas, tanto antigas
como longínquas, como estados ou etapas de um desenvolvimento
único que, partindo do mesmo ponto, deve convergir para o mesmo fim, deduzimos
que a diversidade é apenas aparente.
A humanidade torna-se una e idêntica a si mesma,
só que esta unidade e esta identidade não se realizam senão progressivamente, e
a variedade das culturas ilustra os momentos de um processo que dissimula uma
realidade mais profunda, ou retarda a sua manifestação.
Esta definição pode parecer sumária quando temos
presentes as imensas conquistas do darwinismo(17). Mas não é o darwinismo que
está em causa, porque evolucionismo biológico e o pseudo-evolucionismo que aqui
tratamos são duas coisas muito diferentes. A primeira nasceu como uma vasta hipótese
de trabalho, baseada em observações em que havia pouca necessidade de
interpretação. Os vários tipos que constituem a genealogia do cavalo podem ser
ordenados numa série evolutiva por duas razões; primeiro, é necessário um cavalo
para engendrar outro cavalo; segundo, as camadas de terreno sobrepostas historicamente
contém esqueletos que variam gradualmente desde a forma mais arcaica até a mais
recente. Torna-se assim altamente provável que o Hipparion seja o verdadeiro antepassado do Equus
caballus. O mesmo raciocínio provavelmente pode ser aplicado a espécie
humana e às raças que a constituem.
Mas quando passamos dos fatos biológicos para os
fatos culturais as coisas complicam-se de uma maneira singular. Podemos
recolher em sítios arqueológicos objetos materiais e constatar que a forma ou a
técnica de produzir um determinado objeto varia progressivamente de acordo com
a profundidade das camadas geológicas. E, no entanto, um machado não dá
fisicamente origem a outro machado, tal como acontece com o animal. Dizer que
um machado evoluiu a partir de um outro é apenas uma metáfora, desprovida
do rigor cientifico da expressão quando aplicada aos fenômenos biológicos.
O que é verdadeiro para os objetos materiais, é
ainda mais para as instituições, as crenças, os gostos, cujo passado geralmente
desconhecemos. A noção de evolução biológica é uma hipótese das mais prováveis
nas ciências naturais, enquanto a noção de evolução social ou cultural não
constitui, quando muito, um processo algo sedutor, mas perigosamente cômodo, de
apresentar os fatos.
Aliás, esta diferença, a maior parte das vezes
negligenciada, entre o verdadeiro e o falso evolucionismo, explica-se pelas
suas respectivas épocas de aparecimento. O evolucionismo sociológico recebeu um
vigoroso impulso do evolucionismo biológico, mas é anterior a ele. Sem remontar
às concepções da Antiguidade, retomadas por Pascal, comparando a humanidade a
um ser vivo que passa por fases sucessivas da infância, da adolescência e da
maturidade, foi no século XVIII que assistimos ao florescimento dos esquemas
fundamentais que viriam a ser depois objeto de tantas manipulações: as
“espirais” de Vico, as suas “três idades”, já anunciando os “três
estados” de Comte, a “escada” de Condorcet.
Os dois fundadores do evolucionismo social, Spencer e Tylor, elaboraram e publicaram a sua doutrina antes
do aparecimento da Origem das espécies, ou sem a ter lido.
Anterior ao evolucionismo biológico, teoria cientifica, o evolucionismo social
não é, na maior parte das vezes, senão a maquiagem falsamente científica de um
velho problema filosófico para o qual não há qualquer certeza de solução
através da observação e da indução.
4. Culturas arcaicas e culturas primitivas
Sugerimos que qualquer sociedade pode, segundo o
seu próprio ponto de vista, dividir as culturas em três categorias: as que são
suas contemporâneas, mas situadas em outro lugar do globo, as que se manifestaram
aproximadamente no mesmo lugar, mas que a precederam no tempo e, finalmente, as
que existiram num tempo anterior e num lugar diferente.
Vimos que estes três grupos podem ser conhecidos
de forma desigual. No último caso e quando se trata de culturas sem escrita,
sem ter deixado algum tipo de construção, e com técnicas rudimentares (e que
são a enorme maioria), nada podemos saber sobre elas, e tudo o que tentamos
saber a seu respeito não passam de hipóteses. Por outro lado, é extremamente
tentador procurar estabelecer, entre as diversas culturas do primeiro grupo,
relações que correspondem a uma ordem de sucessão no tempo. Como é que
sociedades contemporâneas, que continuam a ignorar a eletricidade e a máquina a
vapor, não evocariam a fase correspondente do desenvolvimento da civilização ocidental?
Como não comparar as tribos indígenas, sem escrita e sem metalurgia, gravando
figuras nas paredes das rochas e fabricando utensílios de pedra, com as formas
antigas das nossas civilização, cuja semelhança é atestada pelos vestígios encontrados
nas grutas da França e Espanha?(18)
Foi aí sobretudo que o falso evolucionismo se
propagou. E, no entanto, este jogo sedutor a que nos entregamos quase
irresistivelmente todas as vezes que temos ocasião para isso (não se compraz o
viajante ocidental em encontrar a “idade média” no Oriente, o “século de Luís
14” na Pequim de antes da Primeira Guerra Mundial, a “idade da pedra” entre os
indígenas da Austrália ou da Nova Guiné?) é extraordinariamente pernicioso.
Das civilizações desaparecidas, conhecemos
apenas alguns aspectos e estes diminuem à medida que são mais antigas, pois os
aspectos conhecidos são os únicos que puderam sobreviver à destruição do tempo.
O processo consiste, pois em tomar a parte pelo todo, em concluir que, a partir
do fato de que duas civilizações (uma atual, a outra desaparecida) ofereçam
semelhanças em alguns aspectos, pode-se estender a analogia à todos os
aspectos. Ora, esta maneira de raciocinar não só é logicamente insustentável,
mas ainda, num bom número de casos, é desmentida pelos fatos.
Até uma época relativamente recente, os tasmanianos e os patagônios possuíam ferramentas de pedra lascada, e certas tribos
australianas e americanas ainda os fabricam. Mas o estudo destes instrumentos ajuda-nos
muito pouco a compreender o seu uso no período paleolítico. Como eram, então, usados
os famosos machados de pedra oval, cuja utilização devia, no entanto, ser de
tal forma precisa, que a sua forma e técnica de fabricação permaneceram padronizadas
de maneira rígida durante cem ou duzentos mil anos, e num território que se
estendia da Inglaterra à África do Sul, da França à China?
Para que serviam as extraordinárias peças feitas
com a técnica Levallois, pedras lascadas de formato triangular que encontramos
às centenas nos jazigos e que nenhuma hipótese consegue explicar completamente?
O que eram os pretensos “bastões de comando”(19) em osso de rena? Qual poderia
ser a tecnologia da cultura tardenoisense que deixou para trás um número inacreditável de minúsculos
pedaços de pedra polida, com formas geométricas infinitamente diversificadas,
mas muito poucos utensílios na escala da mão humana?
Todas estas incertezas mostram que entre as
sociedades paleolíticas e determinadas sociedades indígenas contemporâneas
existe uma semelhança – serviram-se de utensílios de pedra polida. Mas mesmo no
plano da tecnologia, torna-se difícil ir mais longe; o emprego dos materiais,
os tipos de instrumentos, e, portanto o propósito com que eram usados, eram diferentes,
e mesmo neste aspecto limitado um grupo nos ensina muito pouco em relação ao
outro.
Como poderíamos então aprender qualquer coisa
sobre linguagem, instituições sociais ou crenças religiosas? Uma das
interpretações mais populares inspiradas pelo evolucionismo cultural trata as
pinturas rupestres legadas pelas sociedades do paleolítico médio como
figurações mágicas ligadas a rituais de caça.
O raciocínio é o seguinte: as populações
primitivas atuais têm rituais de caça, que a maior parte das vezes, nos aparecem
desprovidos de valor utilitário; as pinturas rupestres pré-históricas, tanto
pelo seu número como pela sua localização, bem no fundo das cavernas, não
aparentam ter qualquer valor utilitário; os seus autores eram caçadores, logo
podemos concluir que eram usadas em rituais de caça. Basta enunciar esta
argumentação para se perceber sua inconsequência.
Além disso, é sobretudo entre os
não-especialistas que ela ganha força, porque os etnógrafos estão de acordo em
afirmar que nada, nos fatos observados, permite formular qualquer hipótese
sobre a natureza destas pinturas. E, já que falamos das pinturas rupestres,
sublinharemos que, à exceção das sul-africanas (consideradas por alguns como
obras recentes(20)), as artes “primitivas” estão tão afastadas da arte do Paleolítico(21) como da arte europeia contemporânea. Porque esta se caracteriza
por um elevado grau de estilização, indo até às deformações mais extremas,
enquanto a arte pré-histórica oferece um realismo surpreendente.
Poderíamos cair na tentação de ver nesta última
a origem da arte europeia, mas isso seria inexato, uma vez que, no mesmo
território, a arte paleolítica foi seguida por outras formas que não apresentam
as mesmas características; a continuidade do lugar geográfico não muda o fato
de que sobre o mesmo solo se sucederam diferentes populações, alheias à obra
dos seus antecessores, e trazendo cada uma consigo crenças, técnicas e estilos
diferentes.
O ponto que as civilizações
da América pré-colombiana atingiram
na véspera da descoberta evocam o período neolítico europeu. Mas também esta comparação não resiste
a um exame mais atento; na Europa, a agricultura e a domesticação de animais
caminham de mãos dadas, enquanto na América, um desenvolvimento excepcional da
agricultura é acompanhado pela quase completa ignorância (ou, de qualquer modo,
por uma extrema limitação) do criação de animais domésticos.
Na América, o uso de utensílios de pedra convive
com uma economia agrícola que na Europa está associada ao início da metalurgia.
É inútil multiplicar os exemplos. Porque a tentativa de conhecer a riqueza e a originalidade
das culturas humanas, só para tomá-las como réplicas atrasadas da civilização
ocidental, choca-se com uma outra dificuldade que é muito mais profunda. De uma
maneira geral (e excetuando a América, a qual voltaremos) todas as sociedades
humanas têm atrás delas um passado aproximadamente da mesma ordem de grandeza.
Para considerar determinadas sociedades como “etapas”
do desenvolvimento de outras, seria preciso admitir que enquanto com umas se
passava qualquer coisa, com outras não acontecia nada, ou muito pouco.
E, na verdade, falamos dos “povos sem história” (para
dizer, por vezes, que são “os mais felizes”). Esta forma elíptica significa
apenas que sua história é e continuará a ser desconhecida, não a sua inexistência.
Durante dezenas e mesmo centenas de milênios, também nesses povos existiram
homens que amaram, odiaram, sofreram, inventaram, combateram.
Na verdade, não existem povos crianças, todos
são adultos, mesmo aqueles que não deixaram um diário de infância e da
adolescência. Poderíamos, na verdade, dizer que as sociedades humanas
utilizaram desigualmente um tempo passado que, para algumas, teria sido mesmo
um tempo perdido; que umas andavam rapidamente, enquanto outras divagavam ao
longo do caminho. Seríamos assim conduzidos a distinguir duas espécies de
histórias: uma progressiva, aquisitiva, que acumula os achados e as invenções
para construir grandes civilizações; e uma outra história, talvez igualmente
ativa e empregando outros dons, mas a que faltasse o talento da síntese.
Cada inovação em vez de acrescentar às
anteriores, e orientadas no mesmo sentido, dissolver-se-ia numa espécie de onda
que nunca consegue se afastar por muito tempo da direção original. Esta
concepção parece muito mais flexível e matizada que as visões simplistas descritas
anteriormente. Podemos guardar um lugar para ela na nossa tentativa de interpretação
da diversidade das culturas sem sermos injustos com as demais. Mas, antes, é
necessário que examinemos várias questões.
...
NOTAS:
1 Race et Histoire foi publicado na coleção Le racisme devant La Science, © Unesco 1960. Publicado no Brasil na coletânea em dois volumes Raça e ciência, Ed. Perspectiva, 1970. Além dessa, atualmente há outra edição disponível, publicada por uma editora portuguesa (que é a mesma da coleção Pensadores da Abril). Como a intenção da coleção era atingir um público amplo, a própria Unesco preparou as traduções. A versão em português é muito acidentada, para dizer o mínimo: há erros crassos de tradução e de revisão.
2 Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882): intelectual e escritor francês,
ficou famoso por desenvolver a teoria da superioridade racial ariana em seu
livro Um ensaio sobre a desigualdade das raças. Para uma história das
teorias raciais e seu impacto no Brasil ver O espetáculo das raças:
cientistas, instituições e a questão racial no Brasil, 1870-1930 de Lilia
Moritz Schwarcz (Cia das Letras, 1993).
3 Processo que está ligado ao das migrações, por
sua vez, tão antigo quanto as primeiras civilizações. A era das navegações e a
grande migração para as Américas teve com consequência uma intensificação ainda
maior do encontro de culturas, sem falar da globalização nas últimas décadas.
Enfim, seria possível deduzir das palavras de Lévi-Strauss que o intercâmbio e
o cruzamento de povos e culturas é da própria natureza da história em geral, e ainda
mais no caso da Civilização Ocidental, o que coloca sob outra luz a questão das
migrações.
4 O site www.cultures.com é dedicado à documentação de culturas, antigas e
modernas.
5 “Homem de rua”, no original. Nos anos 50 ainda
estava fresca a lembrança dos horrores da Segunda Guerra Mundial, quando em
muitos países, principalmente na Alemanha e na Itália, o racismo foi abraçado
por enormes parcelas da população, enfim, pelo “homem de rua”.
6 Referência a maioria dos países da África e da
Ásia, em grande desvantagem econômica em relação aos países industrializados
nos anos 50 quando este ensaio foi redigido. O extraordinário desenvolvimento
econômico alcançado por alguns países da Ásia nas últimas décadas,
principalmente Coreia do Sul e China, não prejudica o argumento.
7 É o caso, por exemplo, das tribos de caçadores
coletores que habitavam o continente sul-americano antes da chegada dos
europeus. Ver Os índios antes do Brasil, de Carlos Fausto (Jorge Zahar
Editor, 2000).
8 As três línguas provêm do mesmo tronco linguístico indo-europeu.
9 A civilização que floresceu no vale do rio
Indus entre 3.000 e 1.300 AC, aproximadamente, constituiu uma das grandes
civilizações da Antiguidade. No seu auge, entre 2.600 e 1.900 AC, pode ter
chegado a abrigar uma população de mais de cinco milhões de habitantes, maior,
portanto, do que a de muitos países da Europa no início do século 21.
10 Alguns sugerem que a palavra venha de pa-pa-ro,
uma imitação linguística onomatopáica do sons e erros gramaticais feitos pelos
não-gregos ao tentar falar o grego.
11 O autor se refere ao Iluminismo no plano das
idéias, e a “era das Revoluções” no plano político, com seu ideal igualitário
sintetizado no célebre lema “liberdade, igualdade e fraternidade”. O ideal
iluminista acreditava que a razão venceria a irracionalidade e o preconceito.
As duas guerras mundiais na primeira metade do século 20 foram várias vezes
interpretadas como uma evidência de que esse ideal teve um alcance muito
limitado.
12 Referência à Alemanha, onde o iluminismo
parecia ter alcançado seus voos mais altos, mas onde no entanto, o nazismo
floresceu.
13 Grave ofensa em francês equivalente a chamar
alguém de “parasita”.
14 “Barroca” aqui no sentido de bizarra.
15 Declaração da Unesco sobre a questão das raças,
redigida e publicada em 18 de julho de 1950, primeira de uma série de quatro
proposições sobre o tema. Lévi-Strauss participou da elaboração deste primeiro
documento. Novas versões foram publicadas em 1951, 1967 e 1978.
16 Apesar do enorme prestígio dos ideais
revolucionários no pós-Guerra, Lévi-Strauss aqui já parece desiludido com a
possibilidade de transformação das revoluções políticas. A União Soviética, por
exemplo, ainda tinha muito prestígio entre intelectuais quando da publicação
deste ensaio. A queda do Muro de Berlim, no entanto, mostrou o quanto muitas
características da sociedade russa permaneceram inalterados, apesar da
revolução de 1917.
17 Ressalva que só se tornou ainda mais importante
desde a publicação deste ensaio, com os enormes avanços ocorridos na genética e
na biologia, e que tomam o evolucionismo biológico como paradigma fundamental.
Os avanços nas chamadas ciências da vida tiveram enorme impacto também na
antropologia. Ver
M. Susan Lindre, Alan Goodman, e Deborah Heath, “Anthropology in an Age of
Genetics: Practice, Discourse, and Critique” em Genetic Nature/Culture,
Goodman et al. University of Californa
Press, 2003. (Reunião de trabalhos apresentados no simpósio da Fundação
Wenner-Gren realizado em Teresópolis, RJ, entre 11 e 19 de junho de 1999).
18 As pinturas nas cavernas de Chauvet, no sul da
França, constituem o tema do premiado filme de 2010 do cineasta alemão Werner
Herzog Cave of Forgotten Dreams. No YouTube há trechos deste documentário, inclusive o trailer oficial.
19 Nome dado pelos arqueólogos a um artefato
pré-histórico, feito de osso e perfurado. Não se sabe exatamente sua função, e
por isso o termo “bastão de comando”, tem sido substituído por “bastão perfurado” (ou pierced rod em inglês).
20 Lévi-Strauss se refere aqui à arte da cultura san (também chamados de bushmen, sho, barwa, kung, ou khwe), tribos
de caçadores-coletores que viveram no sul da África por milhares de anos, e dos
quais restam poucos remanescentes.
21 Veja a galeria
de arte pré-histórica.