Contribuições feministas para o pensamento político brasileiro: as sufragistas nos anos 1920
Ma. Lenina Vernucci da Silva
Este
trabalho, fruto da pesquisa em andamento de Mestrado, objetiva inserir a luta
feminina pelo direito ao voto enquanto fator importante para a construção da
cidadania republicana brasileira, estabelecendo os possíveis diálogos deste
primeiro momento do feminismo no país com os pensadores e políticos do período.
O movimento feminista que surgiu com a exclusão das mulheres do espaço público;
as lutas travadas; a pressão política e ousadia em publicação de artigos,
manifestos e pedidos de apoio público em jornais mostram uma parte importante
da historiografia brasileira ainda esquecida ou marginal dentro do debate mais
amplo de cidadania, História do Brasil, lutas sociais e pensamento político. De
origem burguesa, essas mulheres letradas questionaram poderes e barreiras
impostas durante séculos e ousaram ocupar o espaço masculino da política e,
mesmo com o conservadorismo do movimento, foi o início de uma série de ações
para que as mulheres brasileiras ampliassem sua inserção social, política e
econômica na vida nacional.
O
trabalho insere-se no campo de Estudos de Gênero e História das Mulheres e suas
interseções com a Ciência Política e a Sociologia. Os dois primeiros campos de estudos
problematizam o sexo na história: reconhecem que homens e mulheres ocupam
posições diferentes na sociedade e que as relações de poder entre eles escondeu
o segundo em detrimento do primeiro, como se a história fosse feita apenas de
homens (SCOTT, 1990; PERROT, 2005). Conforme Perrot (2005):
"As
mulheres são mais imaginadas do que descritas ou contadas e fazer a sua
história é, antes de tudo, inevitavelmente, chocar-se contra este bloco de
representações que as cobre e que é preciso necessariamente analisar [...]".
Essa
análise que a autora chama atenção contribui para que os demais campos de
estudos – no caso, a Sociologia e a Ciência Política – passem a reconhecer e
problematizar a presença do elemento feminino e possibilitem “novas
perspectivas às velhas questões” (SCOTT, 1990). Neste sentido, o que se propõe
aqui é pensar as lutas das sufragistas da Federação Brasileira para o Progresso
Feminino (FBPF), em particular sua ramificação estadual, a Aliança Paulista
para o Sufrágio Feminino, na figura de Diva Nolf Nazário e seu livro Voto
Feminino e Feminismo, como um movimento importante para questionar as
igualdades proposta pela República e o espaço destinado à mulher para a
concretização do projeto de nação proposto pelos republicanos.
As
mulheres sempre estiveram presentes na História, no centro – como rainhas,
princesas ou feiticeiras – ou nas margens – as mulheres camponesas,
trabalhadoras, operárias, escravas – mas são pouco estudadas ou reconhecidas em
seus próprios termos, ou seja, sob uma perspectiva feminina (HAHNER, 1981). É
importante ressaltar que a FBPF não foi o único movimento feminista do período,
tampouco a primeira expressão de mulheres que se reuniram por uma causa em
comum; porém foi o movimento que ganhou maior expressão e reconhecimento no
país, talvez por ser composto por mulheres da elite ou talvez por não ser
radical, embora, nas palavras da principal liderança, Bertha Lutz:
"O
movimento feminino é geralmente uma reforma pacífica, mas nem por isso deixa de
ser uma revolução de costumes, praxes e leis. A nenhum movimento melhor se
aplica o conceito de Revolução permanente, criado por um observador
contemporâneo" (LUTZ apud SOIHET, p. 220).
Essas
mulheres, sem dúvida, romperam com os ideais modernos de mulher e buscaram
expandir seu conhecimento e adentrar em espaços que não eram bem-vindas. O
presente trabalho é dividido da seguinte forma: em primeiro lugar será
feita uma breve explanação sobre a visão dos pensadores modernos sobre a mulher
e a sociedade moderna que se constitui sem reconhecê-las como cidadãs; em
seguida pretende-se mostrar como esse pensamento, em certa medida, influenciou
a sociedade brasileira republicana, que igualmente excluiu as mulheres da vida
pública, mesmo com debates travados sobre o assunto quando da Constituinte de
1891; o item 3 traz o debate da Federação Brasileira para o Progresso Feminino
que surgiu em 1922, ano de extrema importância para a historiografia
brasileira, e suas lutas em prol da instrução feminina e dos direitos
políticos; por fim, o item 4 debate as ideias de uma feminista que publicou um
livro sobre a temática do voto feminino, retratando as lutas e os debates em
torno da causa do voto feminino. Trata-se de Diva Nolf Nazário, acadêmica de
Direito no Largo de São Francisco e que trouxe a público sua angústia por não
ter podido votar nas conturbadas eleições de 1922. O livro provavelmente não
teve um grande alcance público, mas deve ser visto à luz dos estudos de gênero
e reconhecido como material histórico importante para a compreensão de um
período controverso na História do país. Afinal, as promessas de igualdade da
República não foram cumpridas até os dias hodiernos e localizar na História
suas falhas e suas exclusões é uma maneira entender quais as mudanças e
permanências para a construção de uma sociedade mais justa.
1
O anjo do lar: o papel da mulher para pensadores modernos
Segundo
Varikas (2003) a sociedade moderna resignificou o político como artifício
humano livre de quaisquer intervenções divinas ou religiosas, colocando o
natural como o limite da liberdade política, e o contrato civil como forma de
garantir aos indivíduos as promessas da propriedade, da liberdade, da vida
pública. Nessa divisão, as mulheres acabaram ficando ligadas à natureza e,
portanto, incapazes de participar da vida pública e do fazer político.
Para
os filósofos modernos do contrato social, a razão era a fundadora da sociedade
política. O que o contrato esconde, porém, é o sexo dessa razão, fundando junto
com o contrato social um contrato sexual não revelado (PATEMAN, 1988). Para
esses teóricos “as mulheres naturalmente não têm atributos e as capacidades dos
indivíduos. A diferença sexual é uma diferença política” (p. 21). Rousseau
afirmava que a posição dos órgãos sexuais determinava a posição dos sujeitos na
sociedade. A influência do homem é para fora, enquanto da mulher é para dentro
(SCOTT, 2005). Para o autor a mulher fala aquilo que agrada, aquilo de seu
gosto, enquanto que o homem detém a fala das coisas úteis e tem a necessidade
do conhecimento, afinal, “a mulher não tem que pensar, só amar (STREY; CABEDA;
PREHN, 2004).
Hobbes
define que o estado de liberdade, o estado de natureza, é o local onde todos
são iguais e livres, inclusive livres para matar e satisfazer seus desejos.
Segundo Varikas (2003, p. 183) nesse estado “as mulheres são iguais aos homens,
pois não existe entre os dois sexos uma diferença de força ou previdência capaz
de determinar o direito sem guerra (grifo da autora)”. Sua preocupação
consiste em estabelecer que a “dominação, toda dominação, tem origem
política, contratual, voluntária, nascida do consentimento” (p. 183), ou
seja, é artifício humano, refutando, assim como os demais pensadores
iluministas, as doutrinas absolutistas, no sentido de colocar como natural o
poder do pai de família. Mas se a mulher é igual ao homem no estado de
natureza, com igual capacidade de matar e detentora do privilégio de saber quem
é seu filho (algo que um homem não pode ter certeza absoluta), então o poder
caberia naturalmente à ela. Isso implica que a família moderna, assim como o
Estado é um artifício humano, surgida de um contrato que os indivíduos cedem à
um poder uno e indivisível. Portanto, a:
"relação
de dependência natural, anterior ao artifício político: a dominação dos homens
sobre as mulheres não é natural, vem depois do artifício; do mesmo modo, a
família é uma associação política, no sentido de que é um produto humano
e é regulada pelo princípio fundador de toda instituição política: ninguém
pode servir a dois senhores"
(p.184).
Então
por que a responsabilidade da família ficou para os pais? Ora, para Hobbes é
porque foram os homens, em outras palavras, os pais, que fundaram a República.
As
revoluções burguesas trazem os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade,
mas o indivíduo desses ideais caminha na linha dos teóricos citados acima: são
homens. É nesse contexto que a Declaração Universal do Homem e do
Cidadão toma forma e funda o quadro assimétrico de igualdade de gênero.
Os
ideais da Declaração não citavam a mulher. O indivíduo universal e livre não
incluía a mulher simplesmente porque ela não existia enquanto sujeito político.
Não que ela não fosse importante. Pelo contrário, a mulher é um elemento importante
para a família moderna, para o bom espírito do lar, o andamento saudável para o
desenvolvimento e progresso da nação. Quando Olympe de Gouges propõe, apenas dois
anos depois, a Declaração Universal dos direitos da Mulher e da Cidadã, é
incompreendida e esnobada pelos revolucionários, entre os quais Robespierre e
Marat. Embora encaminhe para a Assembleia aprovar, tal qual foi feito com a
Declaração do Homem, ela dedica à Rainha Maria Antonieta, esposa de Luís XVI,
daí talvez, ser considerada traidora e condenada à forca. Mesmo diante da
morte, mantém sua crença na igualdade da mulher, tendo afirmado: “A mulher tem
o direito de subir ao cadafalso; ela deve ter igualmente o direito de subir à
tribuna”. Na declaração, levanta a crítica à “ignorância, esquecimento ou
menosprezo” da mulher e dos seus direitos e lança igualmente 17 artigos com
foco no direito da mulher.
A
finalização da declaração é interessante. Reforça a crítica à revolução, que em
nada melhorou a situação da mulher, pelo contrário, usou-a para o processo e
depois a traiu. Antes era desprezada, mas respeitada, agora, é respeitada, mas
desprezada. Essa frase do pós-âmbulo da Declaração de Gouges resume o papel da
mulher na sociedade pensada pelos modernos: deve-se respeitá-la como um anjo do
lar, como o mais belo dos seres, sensível e amado, cujos dons naturais são
úteis para a paz e a preservação da família, junto com a construção da nação2,
mas este é o seu espaço e só. A dura vida pública deve ficar a cargo dos
homens.
A
cidadania moderna, construída a partir deste momento histórico e revolucionário
não apenas exclui a mulher, mas é construída em oposição a ele, enfatizando a
função da mulher na esfera doméstica como fonte importante para a elevação
moral da sociedade que se quer construir. O inglês Stuart Mill, no século
seguinte (XIX) já avança e reconhece a importância da mulher. Em 1869, como
Deputado dos Comuns, torna-se porta voz do movimento feminista e sua obra, A
sujeição das mulheres, é traduzida por toda Europa. É, entretanto, uma
exceção no pensamento político dos séculos XVIII e XIX. E não é o pensamento
vencedor dentro dessa temática específica, ainda que os demais temas que trata
– principalmente sobre o indivíduo e a liberdade – irradiaram grandes influências.
Embora
o processo de Proclamação da República tenha seguido um rumo muito distante das
demais revoluções burguesas na Europa, a formação assimétrica da cidadania em
relação ao gênero manteve-se. Não é foco deste trabalho as exclusões de classe
e de raça/etnia do processo, visto que são recortes amplos e importantes que
exigem um espaço maior para trabalhar na intersecção com o gênero e poucas
linhas não seriam suficiente para retratá-los3. Tampouco é foco entender a
Revolução Francesa ou o pensamento dos filósofos modernos, usados aqui somente
para ilustrar a situação da mulher moderna em âmbito mundial e as influências
que irradiaram na sociedade brasileira, como é possível perceber em alguns
discursos que serão apresentados mais adiante.
2
A República, a Constituinte e os debates sobre o voto feminino
A
Proclamação da República em 1889 ocorreu em meio às crises do Império e suas
relações com os proprietários rurais, os setores militares e a Igreja, gerando
insatisfações e movimentações entre esses setores e entre civis. O exército,
após a chamada Questão Militar4 passou a ter um papel importante na
política nacional além de construírem uma autoimagem que os identificavam como
os detentores da solução para a regeneração do país; também ganhava força no
país a ideia de que a melhor forma para essa regeneração fosse uma intervenção
rápida e pacífica (sem desordem ou violência) para a realização da república,
tal qual foi a independência, sem maiores riscos (LINHARES, et al, 1990).
A
Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, foi realizada na
madrugada, conduzida pelos militares que depuseram o ministério reunido no
quartel-general do Exército, sem reação de setores da sociedade ou manifestação
popular de apoio. O Imperador nada fez e dois dias depois a família imperial
partia para a Europa (LINHARES et al, 1990). Carvalho (1989) descreve, com base
na fala de Aristides Lobo, que o povo assistiu bestializado o que se passava.
Em termos de conquista cidadã, de ampliação de direitos e participação
política, a jovem República já começava com problemas: a apatia política da
população, falta de identidade – e a necessidade de produção de novos símbolos
– e uma disputa entre as camadas da elite dominantes que, no regime anterior,
não conseguiram avançar no poder político e apareciam com força no novo
cenário.
O
estabelecimento da República, a bem da verdade o estabelecimento da Federação,
permitiu que as diversas oligarquias locais ascendessem ao poder, no seu âmbito
regional, assumindo o controle da máquina administrativa, em particular da
fiscalidade, construindo mecanismos para sua eternização no poder. Essa era a
alma do coronelismo (LINHARES, et al, 1990)
Do
ponto de vista da representação política e da descentralização do governo, a
aproximação deste com o povo, sua concretização só deu-se através das elites
locais, favorecendo a prática oligárquica e coronelista e dificultando qualquer
oposição. As fraudes políticas e a corrupção – alvos de inúmeras críticas por parte
dos republicanos à monarquia – não foram resolvidas. E muitos dos ideais que
vinham sendo construídos pelos desejosos da República foram minados diante da
situação real. À sua maneira mantém, da mesma forma que as modernas revoluções
burguesas, a população alheia aos acontecimentos, reprimindo-a quando
necessário. Para as mulheres, a situação é ainda mais grave:
"É
uma “história onde os pobres, os negros e os índios são somente coadjuvantes
eventuais, e as mulheres (sem distinção de raça ou classe social) simplesmente
não existem” (COSTA, 1998, 91).
Seus
idealizadores ou seus opositores (monarquistas ou republicanos frustrados com
os resultados) retratam os fatos e eventos conforme seus lugares e seus papéis
no decorrer do processo histórico. Ao mesmo tempo, personagens e narradores,
constroem símbolos, imagens e discursos, em um país que tentava a todo custo
acompanhar as nações mais desenvolvidas sem, contudo, mexer nas estruturas de
poder. As interpretações sobre os
eventos que levaram à República, bem como seus desdobramentos, são variáveis e
contraditórias. Segundo Costa (2010):
"Cada
grupo explica a realidade à sua maneira, de forma diversa, quando não oposta
aos demais, o que complica o trabalho do historiador e dificulta a crítica
histórica. Um mero confronto das opiniões entre si não basta para esclarecer o
que se passou" (p. 388).
Ainda
mais quando se trata de reformas políticas ou processos revolucionários, que
envolvem também aspectos sociológicos e políticos. No caso deste trabalho, o
olhar de gênero para a história traz outra forma de ver os fatos do período em
questão. Conforme já foi dito, este olhar implica em contextualizar como a
sociedade estabelece os papéis para homens e mulheres em determinados contextos
sociais, políticos e econômicos e problematizar as relações de poder entre
eles. Nesta parte, as narrativas que serão analisadas foram feitas por
personagens esquecidos na história, que simplesmente não existem: as
mulheres e o diálogo que estabeleceram com outros personagens importantes, como
os políticos responsáveis pela Constituição Republicana. Estas moças educadas
da elite estiveram em contato com os políticos e pensadores de seu tempo para
que estes as envolvessem em suas agendas, para que pudessem contribuir para a
formação do país, visto que:
"É
de esperar que o Brasil, consciente da grandeza de sua alma nacional e da
nobreza do conceito de suas filhas, em breve acompanhe o sagrado movimento
regenerador de uma raça" (NAZÁRIO, 2009, p. 32).
As
mulheres de elite, que já começaram a se reunir pela causa abolicionista e já
publicavam jornais voltados para a educação das mulheres5, queriam, portanto,
continuar contribuindo para o progresso que o país necessariamente caminhava, e
fazer parte da política era um passo fundamental. Nas primeiras décadas que
seguiram a Proclamação, a luta pelo sufrágio passou a ser a bandeira dessas
mulheres, que já estavam exigindo sua participação desde a Assembleia
Constituinte de 1891, mas que fora negada. A causa reuniu alguns homens que
estavam em contato com os acontecimentos na Europa e nos Estados Unidos sobre o
direito de voto por parte delas (HAHNER, 1981). A frase de Diva Nolf Nazário
faz parte do comentário que escreveu em seu livro, assunto que será retomado no
item 4 deste trabalho, sobre o despacho negativo que recebeu do Juiz Eleitoral
sobre seu alistamento eleitoral para participar das eleições de 1922. Na
ocasião, a paulista decidiu que, com base em seus estudos sobre a Constituição
e das aulas e apoio de seus professores na Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco, não havia nada que a impedisse de participar das eleições e lutou
por esse direito.
De
fato, a Constituição de 1891 não excluía explicitamente as mulheres, como se
pode ver em seu artigo 70:
São
eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei.
§
1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as dos
Estados:
1º)
os mendigos;
2º)
os analfabetos;
3º)
as praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino
superior;
4º)
os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de
qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que
importe a renúncia da liberdade Individual.
§
2º - São inelegíveis os cidadãos não alistáveis (Constituição da República dos
Estados Unidos do Brasil de 24 de Fevereiro De 1891)
Outras
mulheres igualmente lutaram por isso, unindo-se a candidatos e políticos
simpatizantes de suas causas, organizando movimentos e até mesmo passeatas,
buscando formar uma opinião pública a seu favor e à sua causa. Muitas tentaram
seu alistamento eleitoral. Josefina Alvares de Azevedo, que editava o jornal A
Família desde 1888, era uma que incitava as brasileiras “agir como ser
complexo, intelectual, moral e materialmente considerada” (apud HAHNER, 1981,
p. 82). Como não tinha precedentes para citar afirmava que “alguma nação deverá
ser a primeira a iniciar-se nesse grande melhoramento: por que não ser o Brasil?”
(idem, p. 82).
Em
1910 é fundado o Partido Republicano Feminino. A ideia era representar a mulher
na esfera política, de forma direta (daí fundar um partido e não uma
associação). Segundo Pinto (2003):
"O
estatuto do partido dá uma idéia muito clara do que pretendiam essas mulheres:
não defendiam apenas o direito ao voto, mas falavam de emancipação e
independência. Atribuíam à mulher qualidades para exercer a cidadania no mundo
da política (o patriotismo) e no do trabalho. E, extrapolando a questão dos
direitos, propugnavam o fim da exploração sexual, adiantando em mais de 50 anos
a luta das feministas da segunda metade do século XX". (p. 18)
Mas
é em 1920 que as lutas pelo voto ganharam força, com a volta de Bertha Lutz da
Europa e a criação da Federação Brasileira para o Progresso feminino, maior
expressão do feminismo na época (PINTO, 2003), antes, porém, é importante
acompanhar o debate travado na Constituinte e suas consequências para as
mulheres.
Entre
os políticos essa não era uma questão simples. Poderia a mulher participar da
política sem colocar em risco a família brasileira? Teria ela capacidade
intelectual para a vida pública?
As
opiniões se dividam. Entre os defensores, havia figuras tão ilustres como os
posteriores presidentes da República, Nilo Peçanha, e Hermes Fonseca. Entre
seus opositores, Pedro Américo, Lauro Nina Sodré e Epitácio Pessoa (que
reconhecia parte dos direitos da mulher, mas opunha-se ao voto). Estes e outros
travaram debates sobre a temática com base na suposta função natural da mulher
e sua aptidão ou não para o mundo agressivo da política.
No
trecho abaixo, de Muniz Freire6, percebe-se claramente que a sociedade moderna
tem a política como um artifício humano, mas fundamenta-se em bases
pré-políticas e anteriores ao fazer humano quando situa parte do elemento
humano – as mulheres – na natureza, conforme análise de Varikas (2003), diz o
seguinte sobre estender o voto às mulheres:
Com
o maior respeito, que devo aos autores de semelhante ideia e àqueles que a
adotam, devo declarar, Sr. Presidente, que essa aspiração me afigura imoral e
anárquica [...], porque, no dia em que a convertermos em lei pelo voto do
Congresso, teríamos decretado a dissolução da família brasileira [...]. a
mulher sempre teve, e cada vez mais, a função que lhe é própria [...] querer
desviar o espírito feminil desse dever, dessa função, que é a base de toda
organização social, cujo primeiro grau é a família, para levá-lo ao atrito das
emulações práticas, no exercício de funções públicas, é decretar uma
concorrência dos sexos em relações da vida ativa, nulificar esses laços
sagrados da família em torno da vida puramente doméstica da mulher, e corromper
a fonte preciosa da moralidade [...]
E
continua:
"O
homem é, pela sua superioridade de caráter, votado principalmente para as
labutações da vida ativa, a mulher, pela superioridade de afetos, tem na sua
vida doméstica o seu destino a realizar.
Sua
concepção é de que a mulher é um elemento importante para a conservação de valores
morais e da família e que o espaço da vida pública pode corrompê-la, portanto,
não é seu lugar natural. Segundo o congressista Barbosa Lima não é por uma
questão de direito ou de capacidade da mulher, mas por seu papel social e
conceder o voto não faria diferença, pois:
[...]
Toda sua dedicação para com o filho não só quando o alimenta, como durante a
primeira infância, é pouco atenta quanto a complexidade da educação. [...] Dê a
mulher a faculdade de votar e raríssimas serão as que troquem os encantos do
seu nobre emprego pela ingratidão dos embates eleitorais ou pela secura e
aridez das lutas parlamentares [...]".
Segundo
Besse (1999) essa obsessão com os papéis e comportamentos da mulher aumentava
conforme o rápido progresso que passava o país, a chegada de imigrantes, a
migração do campo para a cidade, a introdução de novas ideologias, entre elas o
feminismo, tudo isso somado as invenções que o fim do século trazia, como o
trem, o cinema, rádio, a fotografia, o telégrafo, o telefone, vários utensílios
domésticos. No âmbito científico, as aplicações das modernas teorias
científicas, o contato que a elite tinha com os altos estudos das sociedades
mais avançadas, a educação de prestígio que inclusive algumas mulheres podiam
gozar em outros países, tudo levava à um avanço que tinha que ser controlado,
para que o progresso fosse o único caminho possível. Era necessário vigiar a
sexualidade das raças e das mulheres, cuidar para que o casamento e a
maternidade e a educação feminina não se desvirtuassem.
Mesmo
os que defendiam o direito de voto às mulheres o fazem sem questionar seus
papéis, isso inclusive por parte das sufragistas como será visto mais adiante.
Costa Machado afirma que se a questão se encontra no terreno dos direitos, as
mulheres devem gozar dos mesmos direitos e cita a fala de Olympe de Gouges
quando subiu ao cadafalso. E acredita que assim como a República foi vista como
utopia pelos monarquistas, mas venceu, há de vencer também o direito das
mulheres:
Estou
convencido que esses que contestam o direito das mulheres na vida pública
quando vencidos farão melífluos discursos e dirão – sempre fui partidário da
mulher; sempre combati para que ela tivesse na direção do país o mesmo direito
que os homens, como poderia consentir que os verdadeiros anjos tivessem posição
subalterna!
Depois
continua:
A
mulher é dotada de inteligência, ela ama este país, ela é instruída, ela paga
imposto, e entretanto não pode votar, não pode exercer o direito de voto, que é
tão pequenino e mesquinho, ao passo que um homem que só tem a enxada, que
apenas sabe ler e escrever um bocadinho, pode votar e ser votado?
E
na conclusão de sua defesa questiona como que o fato dela exercer uma profissão
pública (magistério, medicina, advocacia, entre outras) que exigem muito mais
tempo e dedicação não desorganiza a família, mas ir para um dia para deixar seu
voto iria atrapalhar?
Mas
encerram-se as sessões e a Constituição não define se deve ou não a mulher
votar. Os políticos mantêm suas plataformas em seus mandatos ou programas
eleitorais. As eleições de 1909, por exemplo, primeira campanha eleitoral
vivenciada no país com candidatos em lados opostos, desperta a opinião pública,
visto que o candidato vitorioso – o militar Hermes Fonseca – não foi
unanimidade: Rui Barbosa se elege em cidades mais independentes. Este último,
apesar de defensor dos direitos liberais, não inclui a bandeira do sufrágio
feminino, mas durante a constituinte havia manifestado a igualdade política entre
os sexos (PINTO, 2003). Juvenal Lamartine é outro que irá, no Rio Grande do
Norte, propor projetos que incluam a mulher, especialmente em relação ao voto.
Com
essas exclusões e as diversas manifestações e revoltas populares que eclodiam,
a República dava seus passos conforme previu Silvio Romero: incapaz de fundar
uma república democrática e livre (COSTA, 2010). Segundo Carvalho (2002), os
direitos políticos e civis beneficiavam poucos e os direitos sociais nem eram
alvos do governo, ficando a cargo das instituições religiosas ou particulares.
Com o coronelismo e as fraudes eleitorais, mesmo com a preocupação em votar,
qual seria a real vantagem nesse sistema? Por que as mulheres de elite tanto se
preocuparam com essa questão?
Duas
razões podem ser pensadas: porque o espaço da política é difícil de
transpassar, masculino, da fala e do debate e provar que eram capazes de ocupar
esse espaço sem masculinizar-se era algo importante para essas moças dos novos
tempos e porque era uma forma de participar do estimado progresso do país,
contribuindo para a elevação moral do país e sua grandeza. Segundo Soihet (2006),
o tom moderado do movimento sufragista também era uma estratégia: era possível
provar que podiam fazer parte do mundo da política sem prejudicar a família e
as estruturas sociais.
"(...)
uma sociedade de brasileiras que compreendessem que a mulher não deve viver
parasitariamente do seu sexo, aproveitando os instintos animais do homem, mas
que deve ser útil, instruir-se e a seus filhos e tornar-se capaz de cumprir os
deveres políticos que o futuro não pode deixar de repartir com ela".
(Bertha Lutz apud SOIHET, 2006, p. 29).
Os
debates em jornais e em reuniões promovidos pela Federação Brasileira para o
Progresso Feminino mantinham o tom moderado, porém enfático, do dever da mulher
em ser instruída e cidadã participativa. Era preciso mostrar para seus
contemporâneos que interessava a todos o envolvimento da mulher nas questões
públicas, tornando-a útil para a sociedade e para si mesma, conforme os
objetivos da própria Federação.
3 A década de 1920 e a
FBPF
O
Brasil dos anos 1920 passa, segundo Lourenzo e Costa et al (1997) por uma
espécie de aceleração histórica, com novas ideias e transformações que vão
refletir em todos os aspectos da sociedade: artístico, cultural, econômico e
político. Do ponto de vista econômico e político o país passava pela emergência
da indústria e a crise do modelo primário-exportador e, consequentemente, a
contestação do poder da burguesia cafeeira e o acirramento da polarização das
elites. Vários movimentos expressam esse momento: o tenentismo, a criação do
Partido Comunista Brasileiro, nas artes o movimento Modernista inaugura uma
crítica antropofágica da arte nacional e com mais força e organização, o
movimento feminista.
"Em
suma, foi um momento de grande efervescência e busca de soluções para os
problemas do Brasil nos mais diferentes âmbitos, observando-se o empenho de
inúmeros intelectuais em dar ao país uma face nacional e moderna, através da
valorização de uma cultura que integrasse as diversidades. E o movimento em
busca de reconhecimento de direitos das mulheres inseria-se neste bojo”
(SOIHET, 2006, p. 33).
A
cientista Bertha Lutz participa da Primeira Conferência Inter-Americana de
Mulheres, em Baltimore, realizada em 1922. começa a ligação com a NAWSA –
National American Woman’s Suffrage Association, organização sufragista
estadunidense, que vai ser a grande influência do feminismo liderado por Lutz
no Brasil. É fundada a Associação Pan-Americana de Mulheres, Bertha é eleita
Vice-Presidente, e fica determinado que cada país teria uma Associação
Nacional, subdividida em associações estaduais. Com o apoio da sufragista
estadunidense Carrie Chapman Catt para a elaboração dos estatutos da nova
associação é fundada a Federação Brasileira para o Progresso Feminino, FBPF,
substituindo a Liga para a Emancipação Intelectual da mulher que tinha sido
criada um ano antes. Data da inauguração oficial é em nove de agosto de 1922,
com a presença da líder americana, considerada por Bertha Luta a mãe espiritual
da entidade. Os primeiros objetivos consistem na educação e instrução das
mulheres e a luta pelos direitos políticos: mulheres incluídas na palavra
“cidadãos” da Constituição Republicana.
Conforme
dito anteriormente a Constituição não excluiu nem incluiu a mulher como eleitor
e, consequentemente, como candidata. Com aliados importantes, como o governador
e depois Senador Juvenal Lamartine, a FBPF consegue pareceres favoráveis para
uma nova discussão sobre o voto feminino no congresso, em 1927, mas sequer é
votado no Congresso. Durante os anos 20 a Federação promove palestras e
encontros sobre a temática da política e do sufrágio em inúmeras cidades que
tiveram filiais da federação.
Figura
1 - Diário Oficial 1927 - Estrato de Estatutos. Sobre a formação da FBPF em
nove de agosto de 1922.
A
principal tática era a pressão direta aos membros do Congresso, por meio de
suas influências e de seus familiares, participavam de reuniões e escreviam
cartas sobre a temática feminista.
Em
razão do Centenário da Independência, a FBPF realiza na capital Federal entre
os dias 19 e 23 de dezembro de 1922 a Conferência pelo Progresso Feminino.
Realizada no Edifício da Ordem dos Advogados, contou com grande assistência e
pessoal interessado. Entre os presentes que compuseram a mesa estavam: a Vice-Presidente
da Associação Pan-Americana de Mulheres e a Presidente da FBPF, Bertha Lutz;
Carrie Chapman Catt, presidente da Associação Americana de Mulheres; a delegada
norte-americana Van Lennap; O. Manys delegada da Aliança dos Sufrágios da
Holanda; a escritora Júlia de Almeida; Jeronyma Mesquita e Stella Duval. Essa
mesa mostra o diálogo travado entre as feministas brasileiras com as demais
feministas ao redor do mundo. Segundo Alves (1980) a aproximação maior ficou
com as sufragistas estadunidenses, o que decorre em certa medida o feminismo
mais liberal e com foco em um aspecto dos direitos. Ainda para essa autora, o
fato de Bertha Lutz carregar em torno de si as lutas travadas pela Federação
foi o ponto forte e fraco do movimento, pois mantinha a luta de forma
comportada e dentro dos limites possíveis. Por outro lado, reconhece que se
tivesse feito um embate mais direto o movimento não teria conquistado a
simpatia e a repercussão que alcançou.
Segundo
Besse (1999) e Alves (1980) as feministas ligadas à Federação de maneira geral
adotaram uma postura conciliadora com os homens, de tal forma que seus atos não
pudessem lembrar as segregacionistas radicais da Inglaterra e da França, ou de
algumas brasileiras isoladas que foram mais agressivas em suas lutas, como a
Pagu7 e Maria Lacerda Moura8. De maneira geral essas feministas sufragistas
ajudaram a legitimar os ideais burgueses.
Um
dos principais interlocutores, o Senador Juvenal Lamartine teve um parecer
sobre o voto feminino publicado no jornal A Noite em 14 de dezembro de 1921,
antes da emenda que ele propôs em 1927. Na notícia é interessante perceber a
crítica feita para as feministas radicais que, segundo o jornal não conseguiam
manter o tom pacífico, assumindo
um
caráter irritante e grave, determinando uma crise muito séria devida à ação
tumultuosa das “sufragetes”, que foram ao extremo do emprego de medidas
violentas, enquanto as “sufragistas” se mantinham dentro da ordem, na
propaganda das suas ideias.
Apesar
das críticas contemporâneas, no trecho em questão é possível perceber que se a
Federação Brasileira não se “comportasse” provavelmente teria ficado a margem, tal
qual ficaram outros movimentos, ou seriam seriamente reprimidas, como era de
praxe o tratamento dispensado aos movimentos sociais do período. Neste sentido,
a visão de Soihet sobre o feminismo tático de Bertha Lutz faz muito sentido:
a
utilização deste recurso revela uma das táticas próprias a sujeitos submetidos
a relações desiguais de poder, que percebem sua incapacidade, num dado momento,
de questionarem as prerrogativas da vontade dominante. Pelo contrário,
reverenciam as regras estabelecidas, embora busquem perseguir objetivos
próprios. Nesse sentido, impossibilitados de lutar abertamente por seus
objetivos, tentam alcança-los, fazendo crer aos dominantes que é vontade deles,
fazer o que eles, dependentes, querem que seja feito e para conseguir seus objetivos
recorrem a alguns signos consagrados por aqueles.
E
mesmo assim foi um movimento que encontrou resistência, conforme foi visto no
item 2. Para além das falas citadas por políticos, tem também as charges e peças
de teatro que ironizam as mulheres que tinham interesse por política, como
machonas, feias, amorais. Por isso é importante analisar a situação dentro do
seu contexto histórico, sem cair no anacronismo de exigir maiores
questionamentos – como a questão da sexualidade ou dos próprios papéis de
gênero – quando estavam ainda em um primeiro momento e a visibilidade política
era a mais urgente.
O
discurso de Catt na Conferência do Centenário é ilustrativo para o presente
trabalho. Primeiro por mostrar as estreitas relações que o Brasil buscava ter
com os Estados Unidos em pleno período da chamada Doutrina Monroe9 que, segundo
a sufragista, em princípio “se resumia em evitar que alguma monarquia tomasse
pé no Novo Mundo” e depois deu lugar as relações comerciais e a “união das
mulheres deste continente para o progresso geral” (apud NAZÁRIO, 2009, p. 82).
Mas o mais interessante talvez seja a compreensão que teve de seu período
histórico quando discursa sobre a mulher e o lar. Para ela os que ainda se opõe
ao voto feminino não percebem as mudanças que o novo tempo trouxe e que a
mulher já está há algum tempo fora do lar, principalmente após o surgimento da
grande indústria.
A
exaltação do moderno, do desenvolvimento econômico e da cultura e arte que o
tempo trazia era característico dos pensadores, artistas e políticos do período
e as feministas usavam disso em seus textos e discursos. E a comparação com as
outras sociedades evoluídas era ao mesmo tempo a plataforma e a crítica: tinha
que acompanhar o progresso, porém tinha que encontrar seu caminho e autonomia
com base em sua própria realidade. Na Constituinte isso ficou bem claro: os
contrários ao sufrágio feminino enfatizavam o perigo que isso poderia
representar e que por isso nenhuma nação tinha ousado aprová-lo. Os que
defendiam afirmavam que infelizmente o Brasil não tinha coragem para ser
pioneiro, mas que tão logo fosse feito em outra nação mais avançada
provavelmente não ficaria atrás, conforme o discurso de Costa Machado que, na
ocasião, afirmou: “o que é o progresso senão a novidade?”. E o Brasil não
conseguiu ser a novidade!
4 Diva Nolf Nazário e
o Voto Feminino
Em
São Paulo é fundada a Aliança Paulista pelo Sufrágio Feminino cuja finalidade é
“Assegurar às mulheres brasileiras o direito de sufrágio devendo manter-se
independente de partido político e orientação sectária” conforme estatuto10.
Ligada à FBPF tem entre suas finalidades a educação e a instrução feminina, o
estímulo à organização em temas de comum interesse das mulheres e “estreitar as
relações de amizade com os demais países americanos” (art. 9).
As
informações sobre a Aliança Paulista são encontradas no Arquivo Nacional
juntamente com os documentos da FBPF, porém nesta parte o objetivo é
compreender alguns discursos feitos pela paulista Diva Nolf Nazário em seu
livro, publicado em meio às lutas promovidas pela Federação e demais ligas
estaduais e municipais.
Regina
Cecília Maria Diva Nolf Nazário11 nasceu no município de Batatais, interior do
estado de São Paulo, em 22 de novembro de 1897, filha do Belga Ivão Nolf e da
brasileira Maria Rita de Paula Pinto Nazário. Com dez anos de idade empreendeu
uma viagem para a Bélgica em companhia de seus pais, onde permaneceu até 1917 e
realizou seus estudos. Provavelmente, assim como Bertha Lutz, teve seu contato
com o feminismo europeu durante sua estadia no país. Em sua volta ao Brasil,
decide cursar direito na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde
ingressa em 1921 e se forma com louvor em 1924. Seu companheiro de sala é
também seu futuro marido. A pesquisa de campo feita em Batatais conseguiu
localizar alguns outros recortes em jornais de publicações feitas pela
acadêmica depois de formada, porém não conseguiu até o presente momento
descobrir se chegou a exercer a profissão.
Diva
Nolf Nazário, secretária da Aliança, participa da Conferência promovida pela
FBPF no Rio de Janeiro e traz a liderança de Catt para São Paulo que faz seu
discurso pela emancipação da mulher, traduzido por Diva Nolf. Em seguida, a
paulista também faz um discurso. O conteúdo desse encontro e outros assuntos
foram publicados por Diva Nolf em 1923 em um livro que ela intitulou Voto
feminino e feminismo: um ano de feminismo entre nós, com o objetivo de reunir
artigos sobre voto feminino, direitos políticos da mulher ou assuntos
equivalentes, reproduzidos com seus comentários no jornal de sua cidade natal
Gazeta de Batataes que ela elogia em seu prefácio, visto que ele “amavelmente,
franqueou suas colunas a um pouco de propaganda feminista”.
Figura
2 – Capa do exemplar original do livro de Diva Nolf Nazário, com dedicatória
para a Gazeta de Batates. A obra encontra preservada pelo Memorial dos Caiapós,
em Batatais/SP.
De
maneira humilde, apresenta a obra como um livrinho sem grandes pretensões para
além de colaborar com “a nobre causa do Feminismo que, no Brasil, há de ser
brevemente vencedora, para a glória da nossa Pátria e o respeito de suas magnas
leis” (NAZÁRIO, 2009, p. 17). O tom quase se desculpando é muito presente em
outros discursos seus, mas não esconde suas convicções. Na verdade, consegue
fazer um debate ousado com sutileza e charme. Seu livro é uma coletânea de
publicações de artigos que escreveu sobre feminismo (ou que respondeu para quem
escreveu) e dos discursos que acompanhou sobre a temática. Dentre tantos temas interessantes,
o recorte para o trabalho será seu pronunciamento na Conferência em São Paulo e
o discurso de Catt.
Nas
páginas 61 a 68, a autora traz os resumos das reuniões feministas em São Paulo.
Segundo ela, o discurso de Chapmann Catt fazia uma análise de conjuntura sobre
“a evolução social, moral e intelectual da mulher nos diferentes países da
Europa e das Américas” (p. 61-62) e uma análise do pan-americanismo (a questão
da Doutrina Monroe, já citada) e dos direitos políticos do sexo.
Os
dados que traz inflamam as sufragistas brasileiras: das 54 nações
independentes, 28 já concederam o voto às mulheres, “começando pela América,
desde a ponto do Alaska até o México as mulheres votam. Na Europa o mesmo se dá
do Norte até a Itália, com exceção da França12 e da Suíça” (p. 67). E pensar
que o Brasil poderia ser pioneiro! Em suas palavras:
"No
entanto um continente escapou, o continente sul-americano, onde há ausência
total dos direitos femininos. Entretanto esta situação não pode deixar de ser
transitória. O voto é uma questão vencida, não podendo a América Latina, sempre
progressiva, escapar a este movimento que representa um destino mundial"
(p. 67)
É
recorrente o uso das palavras progresso, moderno, grandiosa, entre outros
adjetivos ufanistas, um discurso presente em praticamente todos os
idealizadores da nação. Ao final de sua fala, Catt ressalta a importância dos
homens que apoiam o movimento visto que “trabalharão pelo interesse único do
lar, para o estreitamento dos laços da família, ao lado do homem trabalhando
pelo progresso constante deste grande país” (p. 68). O homem não representava o
inimigo e muito menos era objetivo questionar a família. Pelo contrário, é
constante no movimento a exaltação da família e o reconhecimento do papel da
mulher enquanto mãe e responsável pela boa educação dos filhos para atuarem na
formação do país.
Após
aplausos, segue com a fala da Srta Dra. Walkyria Moreira Silva, advogada do
fórum paulista dissertou “com brilhantismo” sobre a situação jurídica da mulher
no país. Nesse discurso – sua dissertação – fez uma apreciação da mulher no
direito romano até a época presente, focando no Código Civil Brasileiro. Embora
Nazário não detalhe esse discurso em seu livro (ela não justifica o motivo, mas
lamenta não ter tido a oportunidade de publicar o “bem fundamentado discurso da
simpática advogada”), é interessante pensar seu conteúdo, pela atualidade do
tema em discutir direitos sociais da mulher, principalmente em relação ao
casamento e quem disse, visto que a jovem Silva era advogada em um período em
que poucas mulheres tinham ensino superior: Diva Nolf também estava na academia
de Direito13 e em sua turma havia apenas ela e outra aluna; Bertha Lutz era
cientista e foi a segunda mulher a entrar em um cargo público; tantas outras
eram professoras, profissão mais aceita para uma mulher do período.
O
discurso de Diva Nolf foi publicado na Revista Feminina, número 105, em
fevereiro de 1923 com o título O voto feminino; no Diário Popular de 25 de
janeiro de 1923; no jornal O comércio de 15 de janeiro do mesmo ano e na Gazeta
de Batatais, números 843 e 844. A Revista Feminina faz uma introdução sobre ela
em que destaca o fato de ser acadêmica de Direito e uma jovem que já tanto fez
em prol dos direitos femininos. Sua alocução começa dando mais um alerta da
função da FBPF e da Liga Paulista, não são radicais, são “senhoras pacíficas”.
Conforme já foi dito, o movimento adquiriu esse tom por sua aproximação
estratégica dos políticos, o que não tira seu caráter conservador. A fala
abaixo esume bem o que foi o feminismo do período:
"A
ideia de perturbação da ordem deve absolutamente ser-lhe tirada, visto não ser
possível admitir-se que o Papa enviasse a sua benção às sufragistas inglesas
por considera-las anarquistas e incendiárias, a desejarem a completa destruição
da sociedade e da família em troca apenas da satisfação de ver realizado o voto
feminino. Elas são o que nós somos: simples mulheres que desejam tomar parte na
discussão, na aprovação e na aplicação de leis que regem a sociedade a que
pertencem, muitas dessas leis referindo-se unicamente à sua pessoa" (p.
63).
Não
deixam de ser revoltadas, pois tiveram seus direitos negados. Mas sua luta é
melhorar a nação, engrandece-la. São colaboradoras e exigem somente isso:
colaborar com sua pátria. E não tardarão em fazer isso visto que:
"O
projeto que se acha na mesa das altas Câmaras da República, a do Exmo Sr.
Maurício de Lacerda, na Câmara dos Deputados do Estado do Rio, e a infelizmente
tão recente, mas ainda assim bem grata, do Exmo. Sr. Fontes Junior, no Senado
Paulista, vem provar à sociedade que homens importantes neste país não
pretendem deixar a pátria vegetar num recanto esquecido do grande e belo jardim
do progresso das nações civilizadas" (p. 63).
Aproveita
a citação sobre o Senado e a Câmara e expõe alguns argumentos debatidos tanto
na Constituinte como na carta que recebeu em 1922 negando seu alistamento
eleitoral. Dentre esses a questão do lar volta a cena: agora é possível usar
exemplos dos países que já concederam o direito ao sufrágio feminino e perceber
o que ocorreu lá. Diva afirma que ao contrário dos temores o que se tem visto é
justamente uma melhoria concorrência, uma melhoria para uma cooperação mais
eficaz para a paz universal e o bem estar da humanidade. Depois questiona: “o
que muitas mulheres escrevem nos jornais, e reuniões como esta não equivalem a
manifestação em praça pública?” Após mais algumas falas sobre os apoios que o
movimento constantemente recebe, finaliza com vivas para o país e ao voto
feminino.
Analisar
discursos, revistas e livros históricos é sempre um desafio para o pesquisador.
Sabe-se de suas limitações e imparcialidades, suas posturas e ideais políticos,
que quem escreveu é narrador e personagem, é sujeito e objeto do seu tempo
presente, mas, bem trabalhados, servem para uma reconstituição de um período de
forma muito rica e, neste caso, o livro publicado sobre um ano de feminismo
entre nós possui um valor inestimável para um novo olhar para a História. Ainda
que pouco usado nos cursos e disciplinas, os estudos de gênero oferecem
compreensões de relações de poder que são marcadas por continuidades e
rupturas. A questão da mulher na política ainda é um tema contemporâneo, então
por que não entender as raízes dessa exclusão? Entender que a questão não é saber
o porquê não houve grandes estadistas na história, mas indagar qual o espaço
que a História reservou às mulheres, ou até que ponto esse é o espaço mais
importante de ser estudado (daí os estudos sobre cotidiano e vida privada).
Afinal, se a Deusa Clio é a deusa da História, responsável por escrevê-la, nada
mais justo do que reconhecer a escrita e as falas das mulheres.
NOTAS:
2 O poema de Victor Hugo O homem e a mulher é ilustrativo do período, já
que “o homem está colocado onde termina a terra, A mulher, onde começa o céu”.
Se a mulher não é do mundo terreno, então não deve se envolver em suas
questões. Por isso ela é somente o “anjo do lar” e assim deve permanecer.
3
A questão de raça/etnia e classe social aparece o tempo todo nos diálogos com o
gênero, visto que as mulheres que aqui serão tratadas são da elite, ou seja,
brancas e ricas.
4
Segundo Linhares (et al,1990) a Questão Militar foi um conjunto de incidentes
entre o Exército e o governo, sendo que o principal problema estava na
tentativa do governo Imperial em disciplinar oficiais que questionassem
publicamente seu poder. Essas e outras punições severas revoltaram os
militares.
5
Sobre esse assunto ver os livros de Buitoni, Dulcília Schroeder. Mulher de
Papel: A Representação da Mulher na Imprensa Feminina Brasileira. São
Paulo: Loyola, 1981; e Imprensa Feminina. São Paulo: Ática, 1990.
6
As citações da Constituinte foram retiradas do livro de Diva Nolf Nazário, mas
é possível sua consulta online no seguinte endereço:
http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/PQ_Pesquisar.asp
7
A vida de Pagu é retratada em várias obras, entre elas FURLANI, Lucia Maria Teixeira.
Pagu, Patricia Galvão: livre na imaginação, no espaço e no tempo. Santos/SP:
Editora da UNICEB, 1989.
8
Sobre a história de Maria Lacerda Moura verificar a obra de LEITE, Miriam
Lifchitz Moreira. A outra face do feminismo. Maria Lacerda Moura. São Paulo:
Ática, 1984.
9
Em linhas gerais, a Doutrina Monroe tinha como objetivo a independência das
Américas em relação à quaisquer formas de governo. Porém foi uma maneira dos
Estados Unidos estender sua área de influência aos demais países do continente.
ALVES, Júlia Falivene. A invasão cultural norte-americana. São Paulo: editora
Moderna, 1989.
10
Os arquivos da Federação Brasileira para o Progresso Feminino estão disponíveis
no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, sob a anotação QO.ADM.CPA na seção de
Coordenação de Documentos Escritos. A pesquisa foi realizada em janeiro deste
ano.
11
A história da escritora é contada a partir de um artigo feito pela historiadora
Clotilde de Santa Clara Medina Cardoso, publicado em uma revista local de
Batatais. Além disso, a pesquisa de campo conseguiu localizar uma parente de
Diva Nolf, acrescentando informações necessárias sobre sua história.
12
A França foi um país que demorou para reconhecer os direitos das mulheres,
sendo incluídas na lista eleitoral apenas em 1944. A Suíça foi o último país
ocidental a reconhecer esse direito, em 1971.
13
Sobre as mulheres na USP, a professora Eva Blay escreveu o livro Mulheres na
USP: horizontes que se abrem (editora Humanitas). O livro retrata as
dificuldades das primeiras mulheres ingressantes que posteriormente tentaram a
carreira docente em sua universidade. O livro traz muitos dados da obra de Diva
Nolf Nazário para contextualizar o período, o que prova que o livro é de fato
uma fonte histórica importante.
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