História da Ciência da Religião
Frank Usarki
O status quo “ideal” da disciplina como referencial
O termo Ciência da Religião refere-se a um empreendimento acadêmico que, sustentado por recursos
públicos, norteado por um interesse de conhecimento específico e orientado por um
conjunto de teorias específicas, dedica-se de maneira não normativa ao estudo
histórico e sistemático de religiões concretas em suas múltiplas dimensões,
manifestações e contextos socioculturais.
A formulação “religiões concretas” alude ao fato de que a Ciência da
Religião encontra seus objetos no mundo empírico. Trata-se de uma consequência
do axioma de que religiões representam sistemas simbólicos elaborados em
relação a uma “realidade culturalmente postulada não falsificável”1 que
transcende o alcance de qualquer método cientificamente comprovado.
A investigação de elementos religiosos empiricamente acessíveis tem
como único objetivo aprofundar e aperfeiçoar o conhecimento sobre os fatos da
vida religiosa.2 Isso significa que a Ciência da Religião não instrumentaliza
seus objetos em prol de uma apologia a uma determinada crença privilegiada pelo
pesquisador. De acordo com essas ambições, a Ciência da Religião defende uma
postura epistemológica específica baseada no compromisso com o ideal da
“indiferença” diante do seu objeto de estudo. Trata-se de uma técnica de
observação e descrição que na literatura especializada é frequentemente associada
a termos como “ateísmo metodológico” ou “agnosticismo metodológico”.
Comprometido com este ideal, o cientista da religião exclui da sua agenda a
questão da “última verdade” e não se permite avaliar aspectos religiosos em
comparação com as normas de outra religião ou com quaisquer outros critérios ideológicos.
A formulação “empreendimento acadêmico” aponta para o status consolidado da respectiva área
de estudo. Trata-se, em outras palavras, de uma matéria institucionalizada que
faz parte integral do sistema universitário de alcance internacional. Esta
posição representa uma conquista relativamente recente e constitui uma das
marcas simbólicas para distinguir a Ciência da Religião propriamente dita de
movimentos intelectuais precedentes e em termos do seu estatuto legal ainda
“provisórios”.
O status institucional
da disciplina é, em parte, fruto de uma demanda pública no sentido da
relevância prático-social da disciplina que, por sua vez, sanciona o apoio
político e material da disciplina por órgãos públicos. A essa demanda
corresponde uma oferta da Ciência da Religião no sentido de produção de um
conhecimento específico não fornecido por nenhuma outra disciplina acadêmica. A
originalidade desta oferta é epistemologicamente baseada em um matiz heurístico
subjacente que norteia o trabalho de um cientista da religião. Na literatura
especializada, tal matiz é tematizado
em termos de um etos intelectual3 ou de escolas próprias de investigação. Em outras palavras, a diferença entre a Ciência da Religião e outras
disciplinas engajadas no estudo das religiões se dá no sentido de uma
determinada tradição da segunda ordem, isto é, uma visão coletiva das principais escolas de interpretação,
métodos operacionais, herança de erudição e, sobretudo, uma memória vital compartilhada
das maneiras mediante as quais todos esses fatores constitutivos são inter--relacionados.
Na prática acadêmica da comunidade científica em questão, a compartilhada tradição da segunda ordem manifesta-se
em um consenso sobre a legitimidade ou não de um problema de pesquisa do ponto
de vista disciplinar.4
Ao mesmo tempo, implica um acordo sobre a estrutura interna da
disciplina no sentido de duas áreas complementares nas quais o trabalho
diversificado da Ciência da Religião se encaixa. A definição no início do
artigo alude a essa dupla estrutura da disciplina quando destaca estudos históricos e sistemáticos como tarefas
da Ciência da Religião.
Todos os elementos esboçados apontam para uma ciência
paradigmaticamente madura e homogênea. Em vários pontos, essa descrição está em
tensão com a atual situação diversificada da disciplina no âmbito mundial. As
respectivas contradições, porém, não invalidam essa imagem “pura”, desde que o
leitor tenha em mente que os constituintes encontrados no início deste artigo
foram destacados por razões heurísticas em prol da reconstrução do caminho através
do qual a Ciência da Religião tem se aproximado do ideal construído.
Desse ponto de vista, a época mais instigante pode ser datada, grosso modo, entre 1875 e a Primeira Guerra
Mundial. Trata-se de um período altamente produtivo durante o qual convergiram
vários impulsos intelectuais já rudimentarmente identificáveis em momentos
anteriores. Antes de fornecer um esboço dessa fase-chave da história disciplinar,
vale um olhar genérico sobre conquistas e movimentos intelectuais centrais que
antecederam a consolidação da Ciência da Religião propriamente dita.
Tendências constitutivas para a formação da Ciência da Religião
O longo caminho do estudo das religiões na direção da sua formação programática
e institucionalização é marcado por duas tendências principais inter-relacionadas,
a saber: (a) o crescente conhecimento sobre outras culturas, inclusive suas
características religiosas; (b) a crescente submissão do estudo das religiões
ao pensamento científico-racional em desfavor das abordagens apologéticas e
exigências dogmáticas.
O CRESCENTE SABER SOBRE OUTRAS RELIGIÕES
O processo da acumulação do saber sobre outras religiões foi durante
muito tempo uma função imediata do avanço tecnológico que facilitou a
comunicação entre as diferentes culturas. Grosso
modo, vale como regra que a frequência e a
intensidade do contato entre as religiões repercutiram na quantidade e
qualidade do conhecimento sobre “o outro”. Exemplos para narrativas
rudimentares resultando de contatos relativamente esporádicos entre povos interessados
na delimitação do “próprio” diante do “vizinho diferente” encontram-se no
Antigo Testamento, no qual o discurso negativo em relação a práticas “alheias”
revelam esforços retóricos em prol da plausibilização da veneração exclusiva de
Yahweh. Motivos apologéticos também predominam na maioria dos Padres da Igreja
que tematizaram os cultos “pagãos” e seus desafios para a fé cristã. Mais
tarde, obras teológicas mostraram-se preocupadas com cultos de tribos
germânicas e finalmente, sobretudo, com o Islã.
Apenas na segunda metade do século XI surgiu, com a Gesta Hammaburgensis ecclesiae pontificum de Adam von Bremen (circa 1050 a circa de
1085), uma obra de um autor cristão que — na tentativa de recuperar detalhes de
práticas religiosas de tribos saxônias resistentes a esforços de cristianização
no século IX — contenta-se com uma mera descrição de fatos históricos. Cerca de
dois séculos mais tarde, o franciscano Roger Bacon (1214-1294) completou seu Opus maius, que opta por uma
abordagem alternativa a um tratamento generalizante e normativo dos “outros”
como “incrédulos” e apresenta uma classificação sêxtupla das religiões
conhecidas na sua época.
Paralelo ao crescimento do conhecimento sobre aspectos de outras
religiões no âmbito da tradição judaico-cristã, foram produzidos relevantes
relatos e reflexões por autores gregos, chineses e muçulmanos. Um representante
dos “estudos” primordiais da religião na Grécia antiga é Heródoto (484-425),
com suas descrições sobre os costumes religiosos do Egito, da Babilônia e da
Pérsia. Os contatos entre os gregos e outras culturas tornaram-se mais
frequentes a partir do período helenista.
Um representante dessa época e testemunha das oportunidades aperfeiçoadas
para adquirir um conhecimento sobre os povos localizados no império expandido foi
o etnógrafo Megástenes (cerca 350-cerca de 290 a.C.). Mandado por Seleuco I
Nicator, primeiro rei do Império Selêucida, como diplomata para Índia,
Megástenes dedicou-se à elaboração dos quatro volumes de sua Índica. Nessa obra, encontra-se
uma série de informações sobre o Hinduísmo, porém diversas delas prejudicadas
por material fictício que o autor tinha ouvido de terceiros. Quanto a
protagonistas chineses, vale a pena lembrar o peregrino chinês Fa-Hien (cerca
de 337-cerca de 422 d.C.), que permaneceu entre 399 e 413 d.C. na Índia.
Um ano mais tarde, publicou seu Relato
sobre países budistas, que contém um grande contingente de
informações, inclusive anotações exatas de dados históricos e detalhes sobre as
rotinas de comunidades budistas monásticas nas regiões visitadas. Cerca de
duzentos e quarenta anos mais tarde, Hieun-Tsiang (603-664 d.C.), outro
viajante chinês famoso, voltou para sua terra depois de uma longa viagem pela
Índia trazendo do subcontinente uma série de artefatos e manuscritos budistas
assim contribuindo para o conhecimento dos chineses sobre as doutrinas e
práticas indianas da época.
A partir do século IX, autores muçulmanos começaram a se articular
sobre outras religiões. Entre eles encontram-se Tabari (838-923) interessado na
religião persa, e Mas’udi (morte 956), cuja obra contém dados sobre o Judaísmo,
o Cristianismo e as religiões indianas. Outros estudantes da religião reputados
foram Al Biruni (973-1050), que informou seus leitores sobre as crenças e
práticas na Índia e Pérsia, e o erudito multidisciplinar andaluz Ibn Hazm (994-1064),
que colecionou um grande espectro de informações sobre o Judaísmo e o
Cristianismo. Nessa lista não pode faltar o nome do historiador das religiões persa
Sharastani (1086-1153), que — devido à sua descrição sistemática de todas as
religiões então conhecidas — foi retrospectivamente considerado o autor de um
livro excepcional que supera qualquer contribuição de autores cristãos
anteriores e contemporâneos.
Do ponto de vista europeu, progressos filológicos a partir da segunda
o século XVII foram responsáveis por um grande salto em termos de aquisição de
conhecimento sobre outras religiões. Nesse contexto, vale lembrar conquistas
como a decifração de hieróglifos egípcios e de caracteres cuneiformes
mesopotâmios, a elaboração de dicionários e gramáticas de línguas orientais
(como o árabe, o chinês, o malaio, a língua persa, o páli ou o sânscrito) e o
lançamento da gramática comparada de Franz Bopp (1833).
Baseado nessas e em outras contribuições, os filólogos começaram a
tradução de uma série ampla de textos religiosos dos povos que tinham
despertado o interesse dos intelectuais europeus.5 Este trabalho teve seu
início com fragmentos de textos filosófico-religiosos chineses por jesuítas
engajados em atividades missionárias no Reino do Meio. Os referentes esforços
culminaram na publicação da primeira tradução completa dos quatro clássicos
confucianistas por Francisco Noël (1651-1729) para o latim em 1711. Sessenta
anos mais tarde, Abraham Hyacinthe Anquetil-Duperron (1731-1805) lançou, depois
de um estudo intenso de cerca de 180 manuscritos avésticos em Surat, Índia, sua
tradução de textos zoroastrianos para o francês. Em 1785, Charles Wilkins
(1749-1836) publicou à primeira tradução do Bhagavad Gita para o inglês. O
especialista na língua páli George Tornour (1799-1843) apresentou em 1837 sua tradução do
Mahavamsa para o inglês.
Entre 1840-1847, Eugène Burnouf (1801-1852) lançou os três volumes da
sua tradução francesa do Bhagavad Purana. Em 1855, o filólogo dinamarquês
Michael Viggo Fausböll (1821-1908), professor de sânscrito em Copenhagen,
ofereceu sua tradução latina do Dhammapada, texto budista originalmente escrito
em páli. Também não devem ser esquecidos os méritos arqueológicos dos séculos
XIX e XX, como, por exemplo, as escavações em Troia, em Creta, na Turquia, no
Egito e no vale do Indo, bem como a descoberta da arte rupestre em grutas no
sul da França.
A CRESCENTE ORIENTAÇÃO DO ESTUDO DAS RELIGIÕES AO ESPÍRITO MODERNO
Um pré-requisito intelectual sine qua non para o estabelecimento da
Ciência da Religião no sentido estrito foi que o termo “religião” tinha se
libertado de sua identificação dogmática com uma determinada tradição, na
maioria dos casos com o Cristianismo. À medida que a religião deixou de ser
tratada como uma “naturalidade cultural”, ganhou plausibilidade o entendimento histórico
dos fenômenos associados.
A literatura especializada é uma fonte rica de atribuições, suspeitas
e especulações relativas a movimentos, impulsos e raízes de elementos que por
volta da virada do século XIX para o século XX se consolidariam como o estatuto
da Ciência da Religião no sentido moderno. A lista de eventos, nomes e
publicações supostamente decisivos no sentido da formação final da disciplina é
longa e não necessariamente consensual nas obras interessadas na recuperação da
pré-história da disciplina.
Autores mais “generosos” na identificação de abordagens que — de uma
forma ou outra — teriam antecipado o “etos intelectual” da Ciência da Religião rejeitam
o tratamento pejorativo de religiões “alheias” pela tradição bíblica e Teologia
patrística, e apontam para exemplos positivos precoces representados por
determinadas correntes do pensamento grego. Nesse contexto, são lembrados
filósofos como Tales (585 a.C.), Anaximandro (610-540 a.C.) ou Xenófanes (cerca
de 570-457) como precursores da disciplina.
Esses e outros intelectuais da época chamariam a atenção, não por suas
críticas explícitas a convicções e práticas religiosas “naturalmente” aceitas por
seus contemporâneos, mas por causa de sua postura emancipada do então senso
comum, ou seja, graças a uma atitude que se aproximaria de maneira
“protodisciplinar” ao ideal epistemológico do cientista da religião moderno. Um
mérito ainda maior é atribuído ao historiador e mitógrafo Evêmero (cerca de 350-290
a.C.). Com seu relato fictício Hiera anagraphê, no qual defende a ideia de que
as divindades e os mitos associados teriam sua base antropológica em
reminiscências de personagens heroicos, iniciou uma especulação sobre a origem
da religião posteriormente conhecida como “evemerismo”.
Restringindo a busca a sinais de uma abstração do pensamento de
predefinições religiosas a tendências mais recentes, vale a pena lembrar os
esforços de intelectuais leigos do século XII para elaborar raciocínios em
oposição à até então dominante visão histórica defendida pelos clérigos. Um
resultado dessas aspirações foi a valorização da história mundana como verdadeiro
cenário do progresso humano, um conceito que se especificou em uma posterior “história das religiões” do ponto de vista
secular.
Entre os protagonistas que a médio prazo se beneficiaram dessas conquistas
intelectuais, encontra-se Jean Bodin (1530-1596), cujo trabalho é considerado
uma obra paradigmática em termos da reflexão “distanciada” sobre o pluralismo
religioso da época. Apesar da sua atitude religiosa subjacente e de um quadro
referencial normativo, Bodin abordou o tema da religião, inclusive o
Cristianismo, de maneira crítica e privilegiou o princípio da razão em
detrimento da ideia da revelação. Mais consequentemente do que Bodin, Edward
Herbert de Cherbury (1583-1648) rejeitou a referência à revelação como fonte de
conhecimento.
Sensibilizou seus leitores para a necessidade do controle de
convicções religiosas no âmbito da ciência e argumentou que conclusões sobre a
vida religiosa deveriam ser tomadas exclusivamente a partir de dados empíricos.
Algo semelhante valeu para Bernard le Bovier de Fontenelle (1657-1757), representante
do pré-iluminismo francês, e sua busca por raízes psicológicas da religião.
Outro pensador citado como um dos antecipadores de abordagens compatíveis com a
Ciência da Religião atual é o filosofo e historiador italiano Giambattista Vico
(1668-1744), apreciado por seu esforço de pôr sua fé católica entre parênteses
enquanto elaborava sua descrição naturalista de todas as instituições humanas,
inclusive a religião. Logo, depois Charles de Brosses (1709-1777) lançou seu
tratado Du culte des dieux fétiches, ou, Parallèle de l’ancienne religion de
l’Egypte avec la religion actuelle de Nigritie (1760), visto como uma das
primeiras obras programáticas em termos de uma posterior Ciência da Religião
comparada.
O “mentor” precoce do estudo científico da religião mais
frequentemente citado, porém, é David Hume (1711-1776) devido a sua abordagem
da religião dentro de um quadro referencial estritamente científico. Conforme a
literatura especializada, Hume, não interessado na defesa mas sim na explicação
do seu objeto, fechou o círculo aberto por intelectuais anteriores e inaugurou
uma tradição do tratamento racional da religião que, no âmbito da Filosofia, foi
retomada por pensadores mais recentes, entre eles Jean-Jaques Rousseau
(1712-1778), Immanuel Kant (1724-1804), Friedrich Schleiermacher (1768-1834),
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Arthur Schopenhauer (1788-1860).
Nessa sequência encaixa-se também Johann Gottfried Herder (1744-1803), lembrado
como o primeiro autor moderno a destacar a importância de um olhar histórico
para a Filosofia em geral e para as reflexões sobre religião em particular.6
Embora todas essas contribuições tenham sido passos importantes na
direção do estudo da religião no sentido moderno, elas foram articuladas sem a
perspectiva do surgimento da Ciência da Religião no sentido de uma disciplina
própria e institucionalmente contextualizada no sistema universitário europeu.
Igualmente, acadêmicos associados ao chamado “círculo de Göttingen”, como
Johann Gottfried Immanuel Berger (1773-1803), Karl Friedrich Stäudlin (1761-1826)
ou Christian Wilhelm Flügge (1773-1827), mencionaram termos como “História das
Religiões” ou “Ciência da Religião” nos seus cursos ou publicações, porém sem
se referirem a uma disciplina autônoma e distinta da Teologia.7
A fase formativa da Ciência da Religião
CRESCENTE NITIDEZ DA NOMENCLATURA
No decorrer da segunda metade do século XIX, aumentaram os sinais de
uma consciência disciplinar cada vez mais consolidada. Uma das primeiras expressões
dessa tendência encontra-se no uso aperfeiçoado do termo “Ciência da Religião”,
que deixa de ser uma nomenclatura vaga e aleatória e assume uma denotação
específica apontando para uma matéria acadêmica própria. De certo modo, isso já
vale para a percepção cristã de diversas religiões de Théodore Prosper Le Blanc
d’Ambonne (1802-1868) elaborada na obra Les
Religions et leur Interprétation Chrétienne, publicada em 1852 em
Paris, e para o livro sobre a mitologia comparada de Ferdinand Stiefelhagen
(1822-1902) Theologie des Heidenthums, lançado em 1858 em Regensburg.
Um passo decisivo foi dado pelo indólogo alemão e desde 1854 professor
na universidade de Oxford Friedrich Max Müller (1823-1900). No horizonte da
institucionalização de uma série de novas matérias universitárias, entre elas a
Sociologia, a Etnologia ou a Psicologia, Müller declarou no prefácio do seu
livro Chips from a German Workshop (1867) que o termo Ciência da Religião devia ser reservado para
designar uma disciplina autônoma.
INÍCIO DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO
Os desenvolvimentos subsequentes comprovaram a pertinência da visão de
Müller. Em 1873 foi fundada a primeira cátedra em História Geral da Religião na
Universidade de Genebra, Suíça. Em 1877 seguiram quatro cátedras nas
universidades holandesas de Amsterdã, Leiden, Groningen e Utrecht. Em 1879 foi
inaugurada a primeira cátedra em História das Religiões na França, seguida por
uma cátedra na universidade de Bruxelas, Bélgica (1884).
No mesmo ano surgiu em Roma a primeira cátedra de História das
Religiões. Dois anos mais tarde, porém, ela foi transformada na cátedra de
História do Cristianismo. O resultado foi que a Ciência da Religião na Itália
ganhou um status autônomo
duradouro apenas em 1924. A força da Teologia e sua abertura para métodos
estritamente históricos dificultaram também a institucionalização da Ciência da
Religião na Alemanha, onde a primeira cátedra foi fundada em 1910 (Berlim).
À primeira vista, surpreende também o fato de que a institucionalização
da Ciência da Religião na Grã-Bretanha tenha demorado até 1904 (Universidade de
Manchester). Todavia, esse atraso não reflete o grande interesse público por
temas relacionados à disciplina. A atenção acadêmica para assuntos afins
articulou-se explicitamente no âmbito de séries de palestras regulares
oferecidas em diferentes centros universitários. Esses eventos tinham uma base
financeira sólida devido a fundações de cidadãos que mantiveram uma relação
forte com a universidade onde se formaram ou com o sistema acadêmico nacional.
Em termos cronológicos, a primeira série de palestras que deve ser
lembrada é a das chamadas Burnett Lectures, possibilitadas por uma contribuição financeira do negociante escocês
John Burnett (1729-1784). Os eventos foram organizados a partir de 1887 em
Aberdeen.
Logo depois, foi convidado Robertson Smith, que entre 1888 e 1891 deu
três palestras sobre a religião de semitas, aproveitando essas oportunidades
para chamar a atenção para a Ciência da Religião como uma nova disciplina
acadêmica em ascensão. Algo semelhante vale para as chamadas Hibbert Lectures, intituladas
assim em homenagem ao negociante inglês Robert Hibbert (1769-1849), cuja doação
generosa em 1847 possibilitou a posterior realização dos respectivos eventos no
Manchester College. A palestra inaugural em 1878 foi proferida por Friedrich
Max Müller, que falou sobre as religiões da Índia. Em 1881 foi convidado um dos
melhores especialistas britânicos da época no Budismo, T. W. Rhys Davids
(1843-1922).
Alguns anos mais tarde, o nome de William James (1842-1910), conhecido
como um dos fundadores da Psicologia da Religião, apareceu no programa das comunicações
em Manchester. Alguns dos eruditos que honraram as Hibbert Lectures apresentaram-se
também no âmbito das Gifford Lectures, financiadas por um fundo
criado pelo advogado e juiz escocês Adam Lord Gifford (1820-1887), que tinha
laços fortes com a universidade de Glasgow. Entre os palestrantes, encontra-se
novamente Friedrich Max Müller, que entre 1888 e 1892 deu quatro palestras em Glasgow
sobre temas relacionados ao seu trabalho como cientista da religião. Algo
semelhante vale para William James e suas comunicações sobre as variedades da experiência religiosa oferecidas entre 1900 e 1902 em Edinburgh.
ESFORÇOS FILOLÓGICOS COORDENADOS E SISTEMATIZADOS
Durante as “décadas formativas”, o trabalho filológico como um dos
subsídios centrais para a investigação ampla e profunda de religiões concretas
ganhou uma nova qualidade. Na área da sinologia destaca-se, entre outros, o
escocês James Legge (1815-1897). Legge, na sua função como tradutor de diversas
fontes fundamentais para a religiosidade chinesa, desempenhou um papel
importante em relação à famosa seleção de Sacred
Books of the East. Atuou junto com Max Müller como coorganizador
dessa coletânea publicada entre 1879 e 1910.
A série é composta por 50 volumes de textos sagrados-chave do
Hinduísmo, Budismo, Taoísmo, Confucionismo, Zoroastrismo, Jainismo e Islã
traduzidos por filólogos reputados, entre eles o inglês especialista em
Zoroastrismo Edward William West (1824-1905), o orientalista inglês e conhecedor
da língua árabe Edward Henry Palmer (1840-1882), o orientalista francês James Darmesteter
(1849-1894), o indólogo alemão George Frederick William Thibaut (1848-194), o
orientalista inglês e especialista na língua chinesa Samuel Beal (1825-1889) e
outros, além de Müller e Legge, também os já citados especialistas Michael
Viggo Fausböll e T. W. Rhys Davids.
Além da sua contribuição para os Sacred
Books of the East, Rhys Davids é lembrado por seu engajamento na Pali Text Society. A sociedade
foi fundada em 1881 com o objetivo de promover o estudo de textos em páli e
ganhou fama no mundo acadêmico através do corpo maciço de traduções de textos
do Budismo primitivo para o inglês, além do lançamento de dicionários, concordâncias
e manuais úteis para o estudo de fontes budistas escritas na língua páli.
REFERÊNCIAS, PERIÓDICOS E CONGRESSOS
Ao lado de esforços filológicos, intensificou-se por volta da virada
do século XIX para o século XX o trabalhou com enciclopédias e compêndios que
serviram aos pesquisadores da religião como referências comuns. Uma dessas obras
foi a enciclopédia Die Religion in Geschichte und Gegenwart, cujos cinco volumes foram lançados entre 1900 e 1913. Outros manuais
na língua alemã foram as edições do Religionsgeschichtliches
Lesebuch, publicadas por Alfred Bertholet (1868-1951) a partir de 1908, e o Textbuch
zur Religionsgeschichte, organizado pelo historiador
das religiões dinamarquês Johannes Edvard Lehmann (1862-1930), cuja primeira versão
surgiu em 1912. Provavelmente a fonte mais relevante da época (e até hoje
frequentemente consultada) é a Encyclopedia
of Religion and Ethics, coordenada pelo
presbiteriano e biblista escocês James Hastings (1852-1922). Os treze volumes
dessa obra magna foram lançados entre 1908 e 1927.
Outro parâmetro para o avanço do processo da consolidação da Ciência
da Religião nas décadas em questão é a fundação de periódicos dedicados à divulgação
da pesquisa e do trabalho teórico da área. Entre esses jornais encontram-se a Revue de l’histoire des religions (1880), o Archiv für Religionswissenschaft (1898) e o periódico Anthropos
(1904). Paralelamente, foram organizados os
primeiro congressos associados à Ciência da Religião. Em 1897, os pesquisadores
da religião encontraram-se pela primeira vez em âmbito internacional em
Estocolmo; esse encontro foi seguido por um congresso na Exposição Mundial em
Paris (1900). Outros eventos de destaque até a Primeira Guerra Mundial ocorreram
na Basileia (1904), em Oxford (1908) e em Leiden (1912).
ARTICULAÇÕES EM PROL DA “SECOND-ORDER TRADITION”
As décadas em torno da virada do século XIX para o século XX foram
também o período da fixação de “caminhos intelectuais proeminentes específicos
para o estudo da religião”.8 Diversas publicações hoje consideradas clássicas
contribuíram para essa delineação do perfil disciplinar no sentido de uma second-order tradition.
Em 1877, ou seja, no mesmo ano em que assumiu a primeira cátedra em
Ciência da Religião na Universidade de Leiden, Cornelius Petrus Tiele (1830-1902)
lançou em Londres sua primeira obra programática na área da História das
Religiões intitulada Outlines of the history of religion: to the spread of the
universal religions. Cinco anos mais tarde, Müller publicou em
Oxford sua obra Introduction to the Science of Religion, nela exigindo dos seus colegas uma postura neutra diante das
reivindicações da verdade pelas religiões pesquisadas. Na vida cotidiana prática,
seria errado não se posicionar normativamente diante de perspectivas
conflituosas de diferentes tradições religiosas.
Mas o cientista da religião se aproximaria dos seus objetos com uma
perspectiva elevada e mais serena, tomando uma atitude de indiferença igual a
um historiador da ciência que se dedica a um estudo histórico da alquimia. Além
da formulação de um dos princípios epistemológicos centrais da Ciência da
Religião até hoje, Müller vislumbrou também a organização interna da disciplina
no sentido da distinção entre um ramo que se ocupa com as formas históricas da
religião e um ramo sistemático interessado na explicação das condições sob as
quais as religiões se manifestam.
Em 1893, por ocasião do Parlamento Mundial das Religiões, novamente Tiele
deixou claro que a comparação das religiões não deveria ser confundida com um
empreendimento apologético. Em vez disso, tratar-se-ia de um estudo não
preconceituoso de dogmas, textos, ritos e crenças.9
Independentemente do uso explícito da Ciência da Religião, a
comparação das religiões como tarefa-chave dos estudos da religião no sentido
moderno é também um assunto destacado em outras publicações lançadas na década
de 1890, entre elas o livro Ten Great Religions, de James Freeman Clarke, e as Lectures
on the Religion of the Semites, de Robertson
Smith. Mais uma vez, Tiele, na sua obra de dois volumes Elements of the Science of Religion, publicados em 1897 e 1899, respectivamente, informa seu leitor não
apenas sobre as manifestações e constituintes da religião e sua evolução
histórica, mas também oferece uma introdução à constituição, ao objetivo e aos
métodos da Ciência da Religião.
Em 1901, Edmund Hardy (1852-1904), professor de indologia na
universidade de Friburgo (Suíça), delineou no seu artigo “Zur Geschichte der
vergleichenden Religionsforschung”, publicado no volume inaugural do novo órgão
Archiv für Religionswissenschaft (1901), o método da Ciência da Religião comparada enquanto uma
abordagem sistemática baseada na pesquisa histórico-empírica. Quatro anos mais
tarde, o pesquisador das religiões canadense Louis Henry Jordan (1855-1923) lançou
em Edinburgh sua obra Comparative Religion. Its Genesis and
Growth, sobre a gênese e o desenvolvimento da sua
disciplina. Conforme o prefácio, o livro representa uma tentativa de oferecer
um esboço da emergência de uma nova linha de pesquisa, as dificuldades que ela enfrenta,
os problemas que ela pretende resolver e os resultados obtidos até então.
Essa nova ciência tem uma raison
d’être própria que consiste em colocar as inúmeras
religiões do mundo lado ao lado com o objetivo de compará-las. Diferentemente da
apologética cristã, não tem o objetivo de assegurar a superioridade de uma religião
diante das outras.
A história inacabada da Ciência da Religião
A história mais recente comprova a receptividade de sistemas
acadêmicos em todas as partes do mundo para a implementação de estudos da
religião no sentido moderno. Um olhar atual panorâmico revela a existência de
inúmeros cursos, ofertas de estudo em programas de Ciência da Religião institucionalizados,
bem como a presença de associações que representam e coordenam os interesses de
cientistas da religião no âmbito nacional e, na maioria dos casos, no âmbito da Internacional Association for the History of Religion (IAHR), fundada em 1950 com o objetivo de promover as atividades de
todos os membros (42 associações nacionais e seis regionais em 2012) que
contribuem para o estudo histórico, social e comparado da religião.
O início e a velocidade da internacionalização da Ciência da Religião,
bem como os resultados desse processo variam de país para país, dependendo de
uma série de fatores intra e extra-acadêmicos. Para o Japão, por exemplo, foi
decisiva a abertura do país para o Ocidente e suas tradições intelectuais a
partir do último terço do século XIX. A Fundação da Japanese Association for Religious Studies em 1930 é uma das manifestações dessa nova atitude e indica que nas
décadas anteriores da criação do órgão nacional os estudos da religião se
articularam em algumas universidades locais.
Para o Leste Europeu, a queda da cortina de ferro criou um novo
horizonte para os estudos da religião, seja no sentido de uma retomada de uma
tradição mais antiga representada por renomados filólogos e orientalistas como
o húngaro Alexander Csoma de Körös (1784-1842) ou os russos Vasili P. Vasiliev
(1818-1900), Nikolai F. Petrovsky (1837-1908) e Ivan Pavlovich Minaev
(1840-1890), seja no sentido de fundação de departamentos de Ciência da
Religião, como na Ucrânia (1991), em Bucareste (2003) ou em Budapeste (2005).
Uma pesquisa profunda sobre a situação atual nos respectivos países
teria que também abranger associações acadêmicas no âmbito nacional como, por
exemplo, a Czech Association for the Study of
Religions, que existe desde 1990, a Slovak Association for the Study of Religions, inaugurada um ano depois, ou a Romanian
Association for the History of Religions, fundada em
1997.
Na Austrália, a Ciência da Religião se beneficiou de uma onda de
institucionalizações na década de 1970 que culminou na fundação da Australian Association for the Study of Religions em 1976. Três anos mais tarde, surgiu a Association for the Study of Religions in Southern Africa, que, do ponto de vista da IAHR, atua no nível sub-regional
diferentemente, por exemplo, da Nigerian Association for the Study of Religions (nacional), por um lado, e da African
Association for the
Study of Religions, fundada em 1992 como associação regional, por
outro lado. A Asociación Latinoamericana para el Estudio de las
Religiones (ALER) foi fundada em 1990 e associou-se no mesmo
ano à IAHR como associação regional.
Do ponto de vista de associações nacionais como a Associação Brasileira da História das Religiões (ABHR, fundada em 1999 e associada à IAHR desde 2000) ou a Associação
de Pós-graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião (Anptecre, que
iniciou suas atividades em 2008), os modos de cooperação com a ALER e a
representatividade atribuída a ela pela IAHR mereceriam um esclarecimento
melhor.
Todos os exemplos mencionados não apenas comprovam a dinâmica contínua
da história da Ciência da Religião em geral, mas sensibilizam também para a
heterogeneidade cultural dos contextos em que a disciplina se articula e busca
manter sua identidade. Essa busca torna-se particularmente delicada em
situações em que uma determinada comunidade científica sente a necessidade de
conciliar exigências disciplinares originalmente formuladas a partir do último
quarto do século XIX por eruditos europeus com os princípios e o “estilo” da
tradição intelectual nacional. Nesses casos, os respectivos cientistas da religião
estão diante da tarefa de reinterpretar os padrões predominantes na discussão
internacional. Não cabe a este resumo da história disciplinar se posicionar
diante dos riscos e ganhos de esforços de aculturação da Ciência da Religião.
Referências
bibliográficas:
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Walter. Religious Studies; the Making of a Discipline. Minneapolis: Fortress Press, 1965.
COLPE,
Carsten. Religious Studies. In: The Encyclopedia
of Christianity.
Grand Rapids: Eerdmans-Brill, 2005. pp.637-638.
HARDY,
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vergleichenden Religionsforschung. Archiv
für Religionsforschung, n. 4 (1901), pp. 45-66;
97-135; 193-228.
KIPPENBERG, Hans G. Die Entdeckung der Religionsgeschichte; Religionswissenschaft
und Moderne. München: Beck, 1997.
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traduções e das obras filológicas orientalistas (séc. XVIII e XIX). Nuntius antiquus, n. 5 (2010), pp.149-159.
SEAGER,
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Parliament of Religions; the East/West Encounter. Chicago: s.n., 1893.
USARSKI, Frank. O caminho da
Institucionalização da Ciência da Religião — Reflexões sobre a fase formativa
da disciplina. Religião & Cultura, v. II, n. 3 (2003), pp.11-28.
VAN BEEK,
W. E. A.; BLAKELY, T. D.
Introduction. In: BLAKELY, T. D.; VAN BEEK, W. E. A.; THOMSON, D. L. (eds.). Religion in Africa. London: James
Currey, 1994. pp.1-20.
WIEBE, Donald. The Politics of Religious Studies. New York: Palgrave, 1999.
Notas
1 Van Beek;
Blakely, Introduction, p. 2.
2 Hardy, Zur
Geschichte der vergleichenden Religionsforschung, p. 45.
3 Wiebe, The
Politics of Religious Studies, pp.3ss.
4 Capps, Religious
Studies, p. xv.
5 Santos, Cronologia das traduções e das obras filológicas
orientalistas.
6 Kippenberg, Die
Entdeckung der Religionsgeschichte.
7 Colpe,
Religious Studies.
8 Capps, Religious
Studies, p. xiii.
9 Seager, The World’s Parliament of Religions, p. 69.
Fonte: USARKI, Frank. História da Ciência da Religião. Revista Ciberteologia: teologia e cultura, ano X, n. 47, 2013, p. 139-150.
2 comentários:
seu site é excelente parabéns
Obrigado por ter gostado de meu trabalho. Venho fazendo isso desde 2009. Quando decidi me tornar historiador, durante o período da graduação, percebi que muito do conhecimento histórico que eu via na universidade, pouco saía de seus muros. Decidi criar esse blog para levar a história as pessoas de forma mais ampla, interessante, instigante e boa de se ler. A História é um bem da humanidade, porque ela perfaz nossa identidade, seja em aspectos bons ou ruins.
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