Cultura material
e civilização: a exposição antropológica de 1882
prof. Dr. Johnni Langer
prof. Ms. Luiz Fernando Rankel
Introdução
A Exposição Antropológica de 1882, realizada pelo Museu Nacional do Rio
de Janeiro, foi um dos eventos científicos mais importantes do Brasil
oitocentista. Mas, infelizmente, ainda muito pouco estudado. A meta deste
artigo é conceder algumas perspectivas de interpretação, apontando novas
direções, fontes e bibliografias para este tema. A partir da década de 1870,
ocorreu uma verdadeira proliferação de instituições de caráter científico na América
Latina.
Os museus, através de seus cientistas pesquisadores e exposições ao
público, foram os locais de vulgarização das teorias evolucionistas em voga na
Europa. Tais teorias foram adaptadas e tomaram formato específico no Brasil, no
intuito de legitimar algumas especulações acerca da posição em que se
encontravam índios, negros e mestiços na cadeia evolutiva do futuro de um país que,
para ser civilizado, teria que lidar com os problemas das “raças”1 aqui
presentes.
Havia teses diversas sobre, por exemplo, os indígenas do país. Mas uma
posição intrínseca comum permeava as diferentes considerações sobre o assunto:
essas “raças” degeneradas estariam, a partir de um processo evolutivo irrevogável,
em vias de extinção. No entanto, segundo o antropólogo John Monteiro, “o que
estava em jogo, evidentemente, era a caracterização do Brasil enquanto país
civilizado ou, pelo menos, como um país capaz de superar o atraso e as
condições para alcançar um lugar ao lado das luminosas civilizações do
hemisfério norte” (MONTEIRO, 1986: 18).
O Museu Nacional, enquanto entidade geradora de pesquisas e questões
acadêmicas, rivalizava com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
principalmente a partir de 1874, com a posse de seu novo diretor, Ladislau
Netto2. Em 1876, surgiu a nova revista da instituição, Archivos do Museu
Nacional. Netto preocupava-se muito com o prestígio mundial que o periódico poderia
alcançar, sempre colocando algum acadêmico de renome em suas páginas (LOPES,
1997: 184).
Logo na estréia da revista, um artigo do médico João Batista de Lacerda3
constituiu um dos definidores teóricos da imagem sobre os indígenas
brasileiros, que influenciou a academia nacional até final do século XIX:
Contribuições para o estudo anthropologico das raças indigenas do Brazil, que
considerava os Botocudos como uma raça primitiva, inferior e selvagem, enquanto
os índios Tupis formavam o grupo heróico da nação. Uma idéia originada no contexto
do IHGB, no final da década de 1840, mas que cristalizou-se como teoria
científica com as pesquisas do Museu Nacional (LANGER & SANTOS, 2002:
38-51).
Saindo dos domínios acadêmicos, o tema dos Botocudos parecia interessar
toda a sociedade. Preparava-se na capital uma grande exposição de Antropologia.
Antes mesmo de ela acontecer, ansiava-se muito em conhecer os afamados
indígenas. Em uma charge da então influente Revista Illustrada, dirigida por
Angelo Agostini, percebe-se toda essa expectativa. Satirizando a morte de um
colaborador do periódico, o desenhista colocou sua charge junto aos Botocudos,
com a legenda:
“Estes tambem fazem como elle, não cogitam em coisa alguma. O que o Martinho
tem de menos no beiço, sobra-lhe na lingua” (REVISTA, 1882a: 5). Essa
comparação com os adereços labiais recorda a indignação de Ladislau Netto em um
artigo do Archivos do Museu Nacional, de 1876. Com certeza, era a
característica que mais impressionava nestes indígenas. Após a abertura da
aguardada Exposição Antropológica Brasileira, ocorrida em 29 de julho de 1882,
num sábado, essa imagem, aferida pela ciência, solidificou-se no imaginário
coletivo.
O imaginário de uma exposição
Novamente, a Revista Illustrada nos concede um quadro nítido das
percepções do período, com ilustrações em duas páginas. Um arlequim, ao entrar
no Museu Nacional, assusta-se com a enorme quantidade de objetos, troféus e
armas expostas. Em seguida, o monarca D. Pedro II é representado portando
trajes de cacique, sendo observado por um pequeno menino Tucano. Uma sátira ao excesso
de importância que a elite manteve com a imagem indígena.
No final, retorna o tema dos adereços labiais, em que dois Botocudos tentam
beijar-se! O arlequim do início, em tamanho miniatuarizado, é devorado por um
selvagem em seu enorme disco labial. Horror e fascinação, sem dúvida, sempre andam
juntas. Não poderia haver, nesta época, um indígena mais antagônico aos
princípios civilizatórios, com as regras de bem viver de qualquer cidadão do império.
Por outro lado, que outro “selvagem” poderia atrair mais pessoas numa única
exposição? Isso é o que responde o último quadro: “Mas quem diria! Esses anthropophagos
é que ficaram com medo de serem devorados pela curiosidade publica. Só a muito
custo o director do Museu impediu que elles fugissem” (REVISTA, 1882b: 4-5). Em
uma hilariante cena, um cidadão tenta retirar com suas mãos o disco de madeira da
boca de um Botocudo que foge assustado!
Nesta mesma revista, há também divertidos textos escritos por Julio D.,
recuperando a celeuma provocada pela exposição. O autor visitou o evento um dia
após ser aberto, num domingo, para evitar a imensa quantidade de discursos oficiais...
A imagem que se percebe em seu texto é uma verdadeira invasão de pessoas
buscando, a todo custo, encontrar até índios de verdade pelo museu! As visitas prosseguiram
com imenso sucesso até meados de agosto, quando encontramos uma curiosa
anedota, também transcrita por Julio D.:
“Quinta-feira, 10, são onze e meia horas da noite, o Dr. Ladislau Netto,
quebrado de trabalho, morto de cansaço, está em dever de dar um pouco de
repouso ao seu corpo, quando lhe batem á porta.
A criada vae ver quem é.
- É um negocio importantissimo que só ao doutor posso
confiar, e é urgente, amanhan já não há mais tempo, vá
chamal-o.
- Uma robe-de-chambre, um gorro, e eis o director do Museu
bocejando ao individuo:
- Então, o que há?
- Queria pedir-lhe um favor: parto amanhan para São Paulo,
pelo trem das seis, e não queria ir, sem ter visto os botocudos!
-
Sem commentários, não acham?” (REVISTA, 1882c: 7).
Nossos indígenas possuíam a capacidade de fascinar os habitantes do
império, seja pelas imagens elaboradas pela literatura ou pela ciência que os
converteu simbolicamente em peças museológicas. Nesse contexto de modernidade,
progresso e civilização, o olhar para criaturas primitivas devia criar uma satisfatória
sensação de bem-estar e de orgulho para cidadãos, membros de um império
tropical, cuja capital refletia todo esse avanço social. Agora, que sabemos os
motivos de tanto sucesso público, vamos examinar mais de perto as teorias e
imagens vinculadas a essa importante exposição, por parte de seus criadores.
A ciência e o progresso civilizatório da Nação
A origem do grande evento foi ocasionada pelo apoio do ministro da
Agricultura, Pedro Souza, aos projetos de Netto para divulgar as pesquisas do
Museu Nacional. Este último enviou solicitações a todas as províncias, esperando
receber materiais: os moldes de Botocudo chegaram de Goiás e do Espírito Santo;
objetos etnológicos vieram do Amazonas e Mato Grosso; peças líticas e cerâmicas
foram remetidas pelo Museu Paranaense4 e coleções particulares, além de muitas
escavações organizadas especialmente para essa finalidade; os livros expostos
foram emprestados da Biblioteca Nacional (LOPES, 1997: 176).
Segundo o Guia da Exposição, as coleções foram organizadas em oito
salas: Vaz de Caminha, Lery, Rodrigues Ferreira, Hartt, Lund, Martius, Gabriel
Soares e Anchieta. Apesar de cada uma destas seções ter uma proposta histórica
e conceitual diferente, os variados objetos arqueológicos estavam presentes em
praticamente todas elas, em maior ou menor número. A sala Lund foi a que mais
recebeu restos humanos fossilizados, enquanto que a Hartt continha a maior
parte dos fragmentos cerâmicos, e a Lery os restos de sambaquis.
A exposição durou três meses e teve um público com mais de 100.000
visitantes, um verdadeiro êxito no país e com repercussão internacional. Um
periódico especialmente impresso, em diversos fascículos, foi entregue para o público:
a Revista da Exposição Anthropologica Brazileira. Pouco depois, foi encadernada
em um único volume e distribuída para todas as províncias. Com uma linguagem
muito mais acessível do que os Archivos e a Revista do Instituto, pode ser considerada
uma antecipadora das modernas revistas de popularização científica.
Num total de 112 artigos, escritos por especialistas do momento – como
Netto, Lacerda, Magalhães, Hartt; políticos e viajantes – A. Soido, A. Campos,
E. Deiró; e antigos cronistas – João Daniel, Vasconcelos, Anchieta. Além da
linguagem simples, a publicação chama a atenção por sua grande estrutura iconográfica,
uma das mais belas de todo o império. Com a média de uma figura por página, resgatando
antigas ilustrações ou contextualizando os artigos, a revista popularizou ao
extremo o imaginário indígena no Brasil.
A capa da edição encadernada e o primeiro artigo, evidentemente,
trataram dos índios Botocudo. Neste texto, J. Lacerda acentuou a imagem
negativa sobre eles: baixos, fracos, com pernas delgadas e mãos delicadas; as
mulheres com seios caídos e muito feias; o tipo osteológico deprimente. E, é
claro, o repulsivo disco de madeira e seus hábitos canibalescos. Qual o destino
para tão miserável etnia, a raça humana mais inferior? A extinção, prevista por
Lacerda para no máximo 50 anos... Quase em seguida, outro texto deste médico,
que não fosse por seu caráter etnocêntrico ao extremo, soaria como cômico em nossos
dias. A força muscular e a delicadeza dos sentidos de nosso indios reconstituiu
um experimento prático feito pelo investigador.
Empregando um aparelho chamado dinamômetro de Mathieu, mediu a força de
5 indígenas e as comparou com alguns brancos de tamanho medíocre. O resultado obtido
seria que os selvagens, apesar de muito mais musculosos, tinham força menor,
ocasionada pela sua inferioridade racial. Portanto, muito menos aptos ao trabalho
que os negros, justificando o sistema econômico e social em vigor.
Devemos sempre ter em mente que as hipóteses defendidas por Lacerda,
apesar de radicais, não iam contra os pressupostos da elite imperial. A
historiadora Lilia Schwarcz, comentando sobre o mesmo assunto, pensa a posição
de Lacerda como uma mudança de perspectiva, oposta à imagem romântica de um
índio ideal: “Por oposição à imagem idealizada do romantismo, que via nos Tupis
um modelo rousseauniano vivo, apareciam agora os Botocudos” (SCHWARCZ, 1993:
75).
Ao contrário, nos identificamos muito mais com a visão do antropólogo
John Monteiro, para o qual não teria existido uma política única sobre os
índios brasileiros. As novas teorias raciais tiveram que conviver com o
discurso tradicional, que identificava as raízes da nacionalidade na mesma
figura indígena (MONTEIRO, 1996: 20). Os experimentos científicos, as medições cranianas
e as pesquisas arqueológicas, a partir dos anos 1870, apenas confirmaram um
modelo já estabelecido. O indígena idealizado, o herói das virtudes nacionais
da literatura imperial ainda era o Tupi. O representante da selvageria, que deveria
ser extinto pela civilização, ou seria exterminado pelas próprias deficiências
da raça, foi o Botocudo.
Todavia, é evidente que ocorreram algumas opiniões diferentes no
emaranhado teórico que foi o Oitocentos. Por exemplo, um intelectual chamado J.
Serra, ex-deputado, assinou um revelador artigo com o nome Os typos indígenas.
Ao visitar a exposição antropológica, constatou criticamente que as reproduções
restringiram-se a “duas ou tres physionomias de filhos da selva, e sem grande
variedade de tribus.” (SERRA, 1882a: 15). Sendo conhecedor de vasta
bibliografia, Serra ressentiu-se da ausência de menções a outras etnias
existentes no Brasil, desde referências existentes no período colonial, a
indígenas que ainda existiriam em muitos cantos do império, descritos por
exploradores mais recentes.
Podemos deduzir, com esse relato, que a distribuição de representações
etnológicas da exposição deve ter sido concentrada nos modelos antagônicos
Tupi-Guarani e Botocudo5. Em outro estudo, Meios de catechese, Serra colocou a
religião como instrumento de assimilação das raças inferiores ao processo
civilizatório do império. A evangelização torna-se uma solução viável, impedindo o extermínio desnecessário
e compatibilizando o selvagem para a economia pastoril e de extração. Nesse
ponto, percebemos que o erudito foi contra a linha inaugurada por Varnhagen –
defensor do massacre dos selvagens, e filiou-se diretamente aos pressupostos de
Couto Magalhães. Inclusive, em outro artigo, Desenvolvimento da raça,
indiretamente criticou as pesquisas de João Lacerda no Museu Nacional:
“Para o estudo do homem americano mais convém o conhecimento das
línguas, mythos, indústrias, e todos os attributos da condição social em que
viviam, do que o estudo zoológico pelos caracteres anatômicos” (LACERDA, 1882c:
81). A nosso ver, essas críticas se devem muito mais a diferenças metodológicas
do que a conflitos teóricos relacionados com a imagem indígena.
Para exemplificar melhor: J. Serra, Netto e Couto de Magalhães foram
favoráveis às análises etnológicas, tradicionalmente monogenistas. O homem
americano teria vindo de outras regiões e conservou características ancestrais
ainda visíveis na atualidade. Por isso, a importância dos estudos culturais,
principalmente a linguagem e a mitologia, para esses pensadores. Por outro
lado, J. Lacerda encabeçou os estudos antropológicos, que neste momento
concediam muita atenção para os exames físicos e biológicos, preponderando a craniologia.
A exemplo de Paul Broca e Samuel Morton, Lacerda foi poligenista: o homem teria
sido originado de diversas regiões da terra, simultaneamente6. Com o advento da
teoria evolucionista, os posicionamentos de ambas as correntes foram amenizados
por aqui, mas sem cessarem os embates sobre o espinhoso tema dos fósseis humanos.
Entre os intelectuais, a origem (poligenia ou monogenia) e o futuro (conversão
ou extermínio) dos indígenas não eram temas pacíficos. Mas as suas
características primitivas, inferiores – em alguns casos degeneradas –,
tuteladas sob o prisma da evolução, foram genericamente aceitas.
O homem das cavernas do Brasil
Além de perpetuar velhos embates, a Revista da exposição também trouxe
diversos termos inéditos por aqui: troglodita, Neandertal, Cro-Magnon. Um reflexo
da influência da arqueologia européia. A primeira destas palavras foi citada
por Ladislau Netto em seu prefácio Ao leitor, caracterizando o tipo mais
primitivo das Américas, em oposição ao mais culto – o Quíchua (incaico). Mais adiante,
em outro parágrafo, o arqueólogo caracterizou o homem troglodita como aquele
que primeiro manipulou a pedra, em diversas partes do mundo, tendo as mãos como
principal diferenciador biológico. Uma idéia que diferenciava nossa espécie de
outros animais. Mas a origem dessa palavra parece estar associada às
características bestiais do ser humano. Advindo do grego troglodytes, significa
aquele que mora em cavernas. Foi popularizada com Lineu, que em seu Antropomorpha
(1760), caracterizou um tipo muito semelhante ao homem, porém peludo.
Para Thomas Huxley (1868: 112), Lineu teria copiado sua figura do
orangotango de Bontius. Seja como for, é inegável a vinculação da terminologia com
os macacos, tanto que o nome científico do chimpanzé é Pan troglodytes. Vamos
encontrar sua utilização novamente em 1857, referindo-se a habitantes de cavernas
do continente africano. (DEZOBRY & BACHELET, 1857: 2666). Seres
animalescos, peludos, morando em cavidades naturais, distantes do mundo civilizado.
Essa imagem vai identificar-se durante os anos 1870 com o estereótipo clássico
do homem pré-histórico, o Neandertal (descobertos em 1856, na região de
Neander, Alemanha).
Ao estudar aspectos frenológicos no artigo As deformações da face e do
crâneo entre os povos americanos, Ladislau Netto utilizou a frase “conformação
neanderthaloide” (NETTO, 1882c: 17). Ora, atualmente sabemos que os índios
brasileiros, mesmo os préhistóricos, são representantes diretos do Homo sapiens
sapiens, e que os Neandertais foram de um grupo considerado extinto, os Homo neanderthalensis
(HUBLIN, 1996: 37). Em outras palavras, são crânios muito diferentes entre si.
Não há qualquer parâmetro de comparação, a não ser o fato de que foram todos
antigos hominídeos.
O que Netto tinha em mente eram as imagens de selvageria, de primitivismo
associado a estes fósseis da Alemanha. E não podemos esquecer que ambos, os
mais antigos crânios brasileiros e os neandertalensis, foram encontrados em cavernas,
o receptáculo simbólico da bestialidade7. Encontramos uma concepção semelhante,
ainda na mesma revista, desta vez com Lacerda: No estudo O Craneo da Lagoa
Santa. Este médico afirmou sobre o fóssil de Minas Gerais: “elle está abaixo do
homem quaternario da Europa.
O Cro-Magnon era artista, cinzelava e insculpia o marfim, copiava as
fórmas dos animais, e dispunha de armas e de astúcia capazes de vencer na luta
o mammouth” (LACERDA, 1882e: 146). Caso levemos em conta que este fóssil,
analisado por Lacerda, seja antagonizado com um tipo fóssil superior, podemos
dizer que encontra paralelo com as idéias de Netto.
O modelo de homem primitivo, para os arqueólogos imperiais, era o
Botocudo. Assemelhado ao Neandertal por sua extrema inferioridade, só poderia
ser antagonizado com um tipo fóssil superior. A descrição de uma visita à Sala
Lund por João Lacerda, durante a exposição no Museu Nacional, confirma nossas idéias:
“O espírito do visitante, absorto na contemplação daquella peça
anthropologica, remonta às idades passadas e transporta-se pela imaginação ao
theatro do descobrimento. Então, meditando, elle diz consigo mesmo: Quão longa não
foi a evolução humana, que, partindo de tão modestos principios, chegou por gradações
infinitas até produzir as maravilhas e grandesas da civilização actual! (...)
até transformar inteiramente o homem primitivo, tão chegado aos brutos, sem
moral, sem lei, sem organização social, no homem civilizado” (LACERDA, 1882e:
146).
Temos, aqui, a mesma conclusão que utilizamos para explicar o sucesso
popular da exposição. Seja ao olhar uma reprodução etnológica de um Botocudo, com
seus ornamentos labiais tão escandalosos ou ao observar um crânio fossilizado,
o cidadão do império brasileiro contemplou estas amostras museológicas como uma
espécie de espelho, situando-se este dentro da escala evolutiva, no ponto
extremo da civilização e dos bons costumes. A natureza não poderia ter tomado
outro rumo, afinal a sociedade moderna também representava o triunfo do
intelecto sobre o irracional.
A repercussão ocasionada pela Exposição Antropológica de 1882
prolongou-se ainda por muito tempo. Três anos depois, um volume especial do
Archivos do Museu Nacional foi impresso especialmente para comemorar a antiga
exibição, e os estudos envolvendo a origem de nossos indígenas. Todos os
artigos envolveram temas antropológicos e de cultura material.
Compreendemos a Arqueologia do Segundo Reinado como um sistema de
conhecimentos que estuda o passado material, mas também relacionada a concepções
ideológicas do Oitocentos. Vestígios reais foram resgatados, ao lado da criação
de relíquias e monumentos imaginários, consolidando o projeto nacional da monarquia.
Podemos dizer que com a morte de Ladislau Neto em 1894, também acabou um tipo
de Arqueologia no Brasil, romântica e sonhadora, filha do século XIX. Novos
personagens surgiram posteriormente, renovando o cenário acadêmico com um tipo
de ciência mais condizente com sua época e realidade cultural. A monarquia
brasileira sobrevive apenas nos livros didáticos e nas salas de museus, mas
parte de sua herança cultural e científica ainda está para ser resgatada
plenamente, com possibilidades de pesquisas futuras.
Notas
* Doutor em História pela UFPR, Pós-Doutorado em História pela USP.
Membro da ABREM, SBEC, NUPPER, NEVE. E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br
** Mestre em História pela UFPR.
1 Para uma discussão balizada sobre o conceito de raça em seus aspectos
sociais e biológicos. Ver PENA (2005).
2 Ladislau Netto (1838-1894) era naturalista e como diretor do Museu
Nacional (1874-1893) foi responsável por sua reforma em 1876, modernizando e
reorganizando as seções que, segundo Lopes (1997, p. 159), refletem o processo
de individuação crescente das ciências em que aspectos antropológicos,
arqueológicos e etnológicos ganham corpo ao lado das pesquisas de ciências
naturais.
3 João Batista de Lacerda (1846-1915) era médico fisiologista,
antropologista de linha craniométrica, e foi diretor do Museu Nacional de 1895
até 1915. Possui extensa obra científica, na qual se destacam os estudos sobre
a “raça” brasileira. Publicou artigos nos Archivos do Museu Nacional desde seu
primeiro número em 1876, momento em que investiga as “raças indigenas do
Brazil” e tira suas famosas conclusões sobre os Botocudos.
4 Além dos artefatos mencionados, o Museu Paranaense, criado em 1876,
enviou também para a exposição antropológica o cacique Bandeira, da tribo dos
camés ou coroados, para representar o “exótico provincial” (LOPES, 1997, p.
209-210), bem como alguns textos editados especialmente para a ocasião
(FERNANDES, 1936, p. 4-5).
5 No estudo Civilisações extinctas, também publicado nesta revista, J.
Serra criticou a ausência de artefatos das civilizações Astecas, Incas e Maias,
na exposição do Museu Nacional. Para ele, o estudo do homem brasileiro não
poderia ser desvinculado do resto da América.
6 Deve-se ressaltar ainda que entre os poligenistas havia os que
defendiam que as espécies não mudavam com a ação do meio ou do tempo, chamados de
fixistas, e, ao contrário, os que defendiam a mutação sob as condições
referidas, chamados de transformistas. Além disso, a partir de Poliakov (1974,
p. 131-159), percebemos as linhas que diferenciam monogenistas e poligenistas
são muitas vezes tênues até a primeira metade do século XIX, pois as bases
religiosas (atribuídas aos monogenistas) de autores como Pierre Camper
(1722-1789), Pierre-Louis de Maupertuis (1698-1759), George Louis Leclerc de
Buffon (1707-1788), Johann-Friedrich Blumenbach (1752-1840) não impediram que
desenvolvessem experimentos científicos de anatomia comparada a partir dos estereótipos
raciais correntes, como o caso de Camper que estudou crânios de um europeu, de
um calmuco (mongóis), de um negro e de um macaco para estabelecer um ângulo
facial correspondente a cada raça, sendo o de maior ângulo o de maior desenvolvimento
intelectual e, portanto, superior naturalmente, o europeu. Estudos estes que
seriam a base de ciências como a frenologia, antropologia física e,
posteriormente, a eugenia (atribuídas ao poligenismo). WENDT, Herbert. À
procura de Adão. São Paulo: Melhoramentos, 1953.
Referências
BUCHNER, Louis. Ancienneté,
etat primitive du genre humaine; se barbarie originelle. In: _____ L’homme
selon la science. Paris: C. Remuald, 1878.
DEZOBRY, Ch. & BACHELET,
Tl. Dictionnaire général de biographie et d’histoire de mythologie, de
géographie ancienne et moderne. Paris: Dezobry Éditeurs, 1857.
FERNANDES, José Loureiro. Museu Paranaense: resenha histórica (1876-1936).
João Haupt, 1936.
FERREIRA, Félix. As artes induastriaes indígenas. Revista da Exposição
Anthropológica Brazileira. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & Cia,
1882.
HUBLIN, Jean-Jacques. The
first europeans. Archaeology, vol. 49, n. 1, p. 36-44, jan. 1996.
HUXLEY, Thomas Henry. Sur
quelques ossements humains fossiles. In: _____ De la place de l’homme dans la
nature, 1863. Paris: J.B. Baullière et fils, 1868.
KOSERITZ,
Carl Von. Imagens do Brasil, 1883. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.
LACERDA, João. Botocudos. Revista da Exposição Anthropológica
Brazileira. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & Cia, 1882a.
_____ A morphologia craneana do homem dos sambaquis. Revista da
Exposição Anthropológica Brazileira. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro
& Cia, 1882b.
_____ A força muscular e a delicadeza dos sentidos de nossos índios.
Revista da Exposição Anthropológica Brazileira. Rio de Janeiro:
Typographia de Pinheiro & Cia, 1882c.
_____ Sobre a conformação dos dentes. Revista da Exposição Anthropológica
Brazileira. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & Cia, 1882d.
_____ O craneo da Lagoa Santa. Revista da Exposição Anthropológica Brazileira. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro &
Cia, 1882e.
LANGER,
Johnni. Ruínas e mitos: a Arqueologia no Brasil Imperial. 2001. Tese (Doutorado
em...) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2001.
_____ Expondo o passado: as pesquisas arqueológicas do Museu Nacional
durante o Brasil Império (1876 a 1889). Cadernos do CEOM. n. 21, jun. 2005.
LANGER, Johnni & SANTOS, Sérgio. Império selvagem: a Arqueologia e
as fronteiras simbólicas da nação brasileira (1850-1860). Dimensões: Revista de
História da UFES, n. 14, 2002.
LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os
museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.
MONTEIRO, John Manuel. As “raças” indígenas no pensamento brasileiro do
império. In: MAIO, Marcos & VENTURA, Ricardo (orgs.). Raça, ciência e
sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.
NADAILLAC, Marquês de. L’Amérique préhistorique. Paris: G. Masson, 1882.
NETTO, Ladislau. Ao leitor. In: Revista da Exposição Anthropológica Brazileira. Rio de Janeiro:
Typographia de Pinheiro & Cia, 1882a.
_____ Do atavismo. In: Revista da Exposição Anthropológica Brazileira.
Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & Cia, 1882b.
_____ As deformações da face e do craneo entre os povos americanos. In:
Revista da Exposição Anthropológica Brazileira. Rio de Janeiro: Typographia de
Pinheiro & Cia, 1882c.
_____ Discurso inaugural da exposição antropológica. In: Revista da
Exposição Anthropológica Brazileira. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro
& Cia, 1882d.
_____ O elemento japonez na America. In: Revista da Exposição Anthropológica
Brazileira. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & Cia, 1882e.
_____ Investigações sobre a archeologia brazileira. Archivos do Museu
Nacional, Vol. VI, 1885.
PEIXOTO, J. Rodrigues. Novos estudos craniológicos sobre os Botocudos.
Archivos do Museu Nacional. vol. VI, 1885.
PENA, S. D. J.: Razões para banir o
conceito de raça da medicina brasileira. História, Ciências, Saúde – Manguinhos,
v. 12, n. 1, maio/ago, 2005.
POLIAKOV, Leon. O mito ariano: ensaio sobre as fontes do racismo e dos
nacionalismos. São Paulo: Perspectiva, 1974.
PROUS, André. Arqueologia brasileira. Brasília: Editora UNB, 1992.
REY, Philippe. Présentation d’objets ethnographiques et de cranes de Botocudos.
Bulletins de la Société D’Anthropologie de Paris. tomo X, segunda série, 1879a.
QUATREFAGES. Recherches sur les populations actuelles et préhistoriques
du Brésil. In: Compte rendus de l’academie des sciences. Paris, vol. 101, 1885.
REVISTA
ILLUSTRADA. Rio de Janeiro, ano 7, n. 306, 1882a.
_____ Chronicas fluminenses. Rio de Janeiro, ano 7, n. 310, 1882b.
_____ Chronicas fluminenses. Rio de Janeiro, ano 7, n. 311, 1882c.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições
e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Cia das
Letras, 1993.
SERRA, J. Os typos indigenas. In: Revista da Exposição Anthropológica
Brazileira. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & Cia, 1882a.
_____ Desenvolvimento da raça. In: Revista da Exposição Anthropológica
Brazileira. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & Cia, 1882c.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Carta ao Instituto. 23 de setembro de
1874. Revista do IHGB. tomo XXXVII, parte 2a., 1874.
Fonte: LANGER, Johnni; RANKEL, Luiz Fernando. Cultura material e civilização: a exposição antropológica de 1882. Cadernos do CEOM, vol. 19, n. 24 - cultura material, p. 13-29, 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário