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Leandro Vilar

terça-feira, 3 de maio de 2016

Cultura material e civilização: a exposição antropológica de 1882

Cultura material e civilização: a exposição antropológica de 1882


prof. Dr. Johnni Langer
prof. Ms. Luiz Fernando Rankel


Introdução

A Exposição Antropológica de 1882, realizada pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro, foi um dos eventos científicos mais importantes do Brasil oitocentista. Mas, infelizmente, ainda muito pouco estudado. A meta deste artigo é conceder algumas perspectivas de interpretação, apontando novas direções, fontes e bibliografias para este tema. A partir da década de 1870, ocorreu uma verdadeira proliferação de instituições de caráter científico na América Latina.

Os museus, através de seus cientistas pesquisadores e exposições ao público, foram os locais de vulgarização das teorias evolucionistas em voga na Europa. Tais teorias foram adaptadas e tomaram formato específico no Brasil, no intuito de legitimar algumas especulações acerca da posição em que se encontravam índios, negros e mestiços na cadeia evolutiva do futuro de um país que, para ser civilizado, teria que lidar com os problemas das “raças”1 aqui presentes.

Havia teses diversas sobre, por exemplo, os indígenas do país. Mas uma posição intrínseca comum permeava as diferentes considerações sobre o assunto: essas “raças” degeneradas estariam, a partir de um processo evolutivo irrevogável, em vias de extinção. No entanto, segundo o antropólogo John Monteiro, “o que estava em jogo, evidentemente, era a caracterização do Brasil enquanto país civilizado ou, pelo menos, como um país capaz de superar o atraso e as condições para alcançar um lugar ao lado das luminosas civilizações do hemisfério norte” (MONTEIRO, 1986: 18).

O Museu Nacional, enquanto entidade geradora de pesquisas e questões acadêmicas, rivalizava com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, principalmente a partir de 1874, com a posse de seu novo diretor, Ladislau Netto2. Em 1876, surgiu a nova revista da instituição, Archivos do Museu Nacional. Netto preocupava-se muito com o prestígio mundial que o periódico poderia alcançar, sempre colocando algum acadêmico de renome em suas páginas (LOPES, 1997: 184).

Logo na estréia da revista, um artigo do médico João Batista de Lacerda3 constituiu um dos definidores teóricos da imagem sobre os indígenas brasileiros, que influenciou a academia nacional até final do século XIX: Contribuições para o estudo anthropologico das raças indigenas do Brazil, que considerava os Botocudos como uma raça primitiva, inferior e selvagem, enquanto os índios Tupis formavam o grupo heróico da nação. Uma idéia originada no contexto do IHGB, no final da década de 1840, mas que cristalizou-se como teoria científica com as pesquisas do Museu Nacional (LANGER & SANTOS, 2002: 38-51).

Saindo dos domínios acadêmicos, o tema dos Botocudos parecia interessar toda a sociedade. Preparava-se na capital uma grande exposição de Antropologia. Antes mesmo de ela acontecer, ansiava-se muito em conhecer os afamados indígenas. Em uma charge da então influente Revista Illustrada, dirigida por Angelo Agostini, percebe-se toda essa expectativa. Satirizando a morte de um colaborador do periódico, o desenhista colocou sua charge junto aos Botocudos, com a legenda:

“Estes tambem fazem como elle, não cogitam em coisa alguma. O que o Martinho tem de menos no beiço, sobra-lhe na lingua” (REVISTA, 1882a: 5). Essa comparação com os adereços labiais recorda a indignação de Ladislau Netto em um artigo do Archivos do Museu Nacional, de 1876. Com certeza, era a característica que mais impressionava nestes indígenas. Após a abertura da aguardada Exposição Antropológica Brasileira, ocorrida em 29 de julho de 1882, num sábado, essa imagem, aferida pela ciência, solidificou-se no imaginário coletivo.

O imaginário de uma exposição

Novamente, a Revista Illustrada nos concede um quadro nítido das percepções do período, com ilustrações em duas páginas. Um arlequim, ao entrar no Museu Nacional, assusta-se com a enorme quantidade de objetos, troféus e armas expostas. Em seguida, o monarca D. Pedro II é representado portando trajes de cacique, sendo observado por um pequeno menino Tucano. Uma sátira ao excesso de importância que a elite manteve com a imagem indígena.

No final, retorna o tema dos adereços labiais, em que dois Botocudos tentam beijar-se! O arlequim do início, em tamanho miniatuarizado, é devorado por um selvagem em seu enorme disco labial. Horror e fascinação, sem dúvida, sempre andam juntas. Não poderia haver, nesta época, um indígena mais antagônico aos princípios civilizatórios, com as regras de bem viver de qualquer cidadão do império. Por outro lado, que outro “selvagem” poderia atrair mais pessoas numa única exposição? Isso é o que responde o último quadro: “Mas quem diria! Esses anthropophagos é que ficaram com medo de serem devorados pela curiosidade publica. Só a muito custo o director do Museu impediu que elles fugissem” (REVISTA, 1882b: 4-5). Em uma hilariante cena, um cidadão tenta retirar com suas mãos o disco de madeira da boca de um Botocudo que foge assustado!

Nesta mesma revista, há também divertidos textos escritos por Julio D., recuperando a celeuma provocada pela exposição. O autor visitou o evento um dia após ser aberto, num domingo, para evitar a imensa quantidade de discursos oficiais... A imagem que se percebe em seu texto é uma verdadeira invasão de pessoas buscando, a todo custo, encontrar até índios de verdade pelo museu! As visitas prosseguiram com imenso sucesso até meados de agosto, quando encontramos uma curiosa anedota, também transcrita por Julio D.:

“Quinta-feira, 10, são onze e meia horas da noite, o Dr. Ladislau Netto, quebrado de trabalho, morto de cansaço, está em dever de dar um pouco de repouso ao seu corpo, quando lhe batem á porta.
A criada vae ver quem é.
- É um negocio importantissimo que só ao doutor posso
confiar, e é urgente, amanhan já não há mais tempo, vá
chamal-o.
- Uma robe-de-chambre, um gorro, e eis o director do Museu
bocejando ao individuo:
- Então, o que há?
- Queria pedir-lhe um favor: parto amanhan para São Paulo,
pelo trem das seis, e não queria ir, sem ter visto os botocudos!
- Sem commentários, não acham?” (REVISTA, 1882c: 7).
Nossos indígenas possuíam a capacidade de fascinar os habitantes do império, seja pelas imagens elaboradas pela literatura ou pela ciência que os converteu simbolicamente em peças museológicas. Nesse contexto de modernidade, progresso e civilização, o olhar para criaturas primitivas devia criar uma satisfatória sensação de bem-estar e de orgulho para cidadãos, membros de um império tropical, cuja capital refletia todo esse avanço social. Agora, que sabemos os motivos de tanto sucesso público, vamos examinar mais de perto as teorias e imagens vinculadas a essa importante exposição, por parte de seus criadores.

A ciência e o progresso civilizatório da Nação

A origem do grande evento foi ocasionada pelo apoio do ministro da Agricultura, Pedro Souza, aos projetos de Netto para divulgar as pesquisas do Museu Nacional. Este último enviou solicitações a todas as províncias, esperando receber materiais: os moldes de Botocudo chegaram de Goiás e do Espírito Santo; objetos etnológicos vieram do Amazonas e Mato Grosso; peças líticas e cerâmicas foram remetidas pelo Museu Paranaense4 e coleções particulares, além de muitas escavações organizadas especialmente para essa finalidade; os livros expostos foram emprestados da Biblioteca Nacional (LOPES, 1997: 176).

Segundo o Guia da Exposição, as coleções foram organizadas em oito salas: Vaz de Caminha, Lery, Rodrigues Ferreira, Hartt, Lund, Martius, Gabriel Soares e Anchieta. Apesar de cada uma destas seções ter uma proposta histórica e conceitual diferente, os variados objetos arqueológicos estavam presentes em praticamente todas elas, em maior ou menor número. A sala Lund foi a que mais recebeu restos humanos fossilizados, enquanto que a Hartt continha a maior parte dos fragmentos cerâmicos, e a Lery os restos de sambaquis.

A exposição durou três meses e teve um público com mais de 100.000 visitantes, um verdadeiro êxito no país e com repercussão internacional. Um periódico especialmente impresso, em diversos fascículos, foi entregue para o público: a Revista da Exposição Anthropologica Brazileira. Pouco depois, foi encadernada em um único volume e distribuída para todas as províncias. Com uma linguagem muito mais acessível do que os Archivos e a Revista do Instituto, pode ser considerada uma antecipadora das modernas revistas de popularização científica.

Num total de 112 artigos, escritos por especialistas do momento – como Netto, Lacerda, Magalhães, Hartt; políticos e viajantes – A. Soido, A. Campos, E. Deiró; e antigos cronistas – João Daniel, Vasconcelos, Anchieta. Além da linguagem simples, a publicação chama a atenção por sua grande estrutura iconográfica, uma das mais belas de todo o império. Com a média de uma figura por página, resgatando antigas ilustrações ou contextualizando os artigos, a revista popularizou ao extremo o imaginário indígena no Brasil.

A capa da edição encadernada e o primeiro artigo, evidentemente, trataram dos índios Botocudo. Neste texto, J. Lacerda acentuou a imagem negativa sobre eles: baixos, fracos, com pernas delgadas e mãos delicadas; as mulheres com seios caídos e muito feias; o tipo osteológico deprimente. E, é claro, o repulsivo disco de madeira e seus hábitos canibalescos. Qual o destino para tão miserável etnia, a raça humana mais inferior? A extinção, prevista por Lacerda para no máximo 50 anos... Quase em seguida, outro texto deste médico, que não fosse por seu caráter etnocêntrico ao extremo, soaria como cômico em nossos dias. A força muscular e a delicadeza dos sentidos de nosso indios reconstituiu um experimento prático feito pelo investigador.

Empregando um aparelho chamado dinamômetro de Mathieu, mediu a força de 5 indígenas e as comparou com alguns brancos de tamanho medíocre. O resultado obtido seria que os selvagens, apesar de muito mais musculosos, tinham força menor, ocasionada pela sua inferioridade racial. Portanto, muito menos aptos ao trabalho que os negros, justificando o sistema econômico e social em vigor.

Devemos sempre ter em mente que as hipóteses defendidas por Lacerda, apesar de radicais, não iam contra os pressupostos da elite imperial. A historiadora Lilia Schwarcz, comentando sobre o mesmo assunto, pensa a posição de Lacerda como uma mudança de perspectiva, oposta à imagem romântica de um índio ideal: “Por oposição à imagem idealizada do romantismo, que via nos Tupis um modelo rousseauniano vivo, apareciam agora os Botocudos” (SCHWARCZ, 1993: 75).

Ao contrário, nos identificamos muito mais com a visão do antropólogo John Monteiro, para o qual não teria existido uma política única sobre os índios brasileiros. As novas teorias raciais tiveram que conviver com o discurso tradicional, que identificava as raízes da nacionalidade na mesma figura indígena (MONTEIRO, 1996: 20). Os experimentos científicos, as medições cranianas e as pesquisas arqueológicas, a partir dos anos 1870, apenas confirmaram um modelo já estabelecido. O indígena idealizado, o herói das virtudes nacionais da literatura imperial ainda era o Tupi. O representante da selvageria, que deveria ser extinto pela civilização, ou seria exterminado pelas próprias deficiências da raça, foi o Botocudo.

Todavia, é evidente que ocorreram algumas opiniões diferentes no emaranhado teórico que foi o Oitocentos. Por exemplo, um intelectual chamado J. Serra, ex-deputado, assinou um revelador artigo com o nome Os typos indígenas. Ao visitar a exposição antropológica, constatou criticamente que as reproduções restringiram-se a “duas ou tres physionomias de filhos da selva, e sem grande variedade de tribus.” (SERRA, 1882a: 15). Sendo conhecedor de vasta bibliografia, Serra ressentiu-se da ausência de menções a outras etnias existentes no Brasil, desde referências existentes no período colonial, a indígenas que ainda existiriam em muitos cantos do império, descritos por exploradores mais recentes.

Podemos deduzir, com esse relato, que a distribuição de representações etnológicas da exposição deve ter sido concentrada nos modelos antagônicos Tupi-Guarani e Botocudo5. Em outro estudo, Meios de catechese, Serra colocou a religião como instrumento de assimilação das raças inferiores ao processo civilizatório do império. A evangelização torna-se uma solução viável, impedindo o extermínio desnecessário e compatibilizando o selvagem para a economia pastoril e de extração. Nesse ponto, percebemos que o erudito foi contra a linha inaugurada por Varnhagen – defensor do massacre dos selvagens, e filiou-se diretamente aos pressupostos de Couto Magalhães. Inclusive, em outro artigo, Desenvolvimento da raça, indiretamente criticou as pesquisas de João Lacerda no Museu Nacional:

“Para o estudo do homem americano mais convém o conhecimento das línguas, mythos, indústrias, e todos os attributos da condição social em que viviam, do que o estudo zoológico pelos caracteres anatômicos” (LACERDA, 1882c: 81). A nosso ver, essas críticas se devem muito mais a diferenças metodológicas do que a conflitos teóricos relacionados com a imagem indígena.

Para exemplificar melhor: J. Serra, Netto e Couto de Magalhães foram favoráveis às análises etnológicas, tradicionalmente monogenistas. O homem americano teria vindo de outras regiões e conservou características ancestrais ainda visíveis na atualidade. Por isso, a importância dos estudos culturais, principalmente a linguagem e a mitologia, para esses pensadores. Por outro lado, J. Lacerda encabeçou os estudos antropológicos, que neste momento concediam muita atenção para os exames físicos e biológicos, preponderando a craniologia. 

A exemplo de Paul Broca e Samuel Morton, Lacerda foi poligenista: o homem teria sido originado de diversas regiões da terra, simultaneamente6. Com o advento da teoria evolucionista, os posicionamentos de ambas as correntes foram amenizados por aqui, mas sem cessarem os embates sobre o espinhoso tema dos fósseis humanos. Entre os intelectuais, a origem (poligenia ou monogenia) e o futuro (conversão ou extermínio) dos indígenas não eram temas pacíficos. Mas as suas características primitivas, inferiores – em alguns casos degeneradas –, tuteladas sob o prisma da evolução, foram genericamente aceitas.

O homem das cavernas do Brasil

Além de perpetuar velhos embates, a Revista da exposição também trouxe diversos termos inéditos por aqui: troglodita, Neandertal, Cro-Magnon. Um reflexo da influência da arqueologia européia. A primeira destas palavras foi citada por Ladislau Netto em seu prefácio Ao leitor, caracterizando o tipo mais primitivo das Américas, em oposição ao mais culto – o Quíchua (incaico). Mais adiante, em outro parágrafo, o arqueólogo caracterizou o homem troglodita como aquele que primeiro manipulou a pedra, em diversas partes do mundo, tendo as mãos como principal diferenciador biológico. Uma idéia que diferenciava nossa espécie de outros animais. Mas a origem dessa palavra parece estar associada às características bestiais do ser humano. Advindo do grego troglodytes, significa aquele que mora em cavernas. Foi popularizada com Lineu, que em seu Antropomorpha (1760), caracterizou um tipo muito semelhante ao homem, porém peludo.

Para Thomas Huxley (1868: 112), Lineu teria copiado sua figura do orangotango de Bontius. Seja como for, é inegável a vinculação da terminologia com os macacos, tanto que o nome científico do chimpanzé é Pan troglodytes. Vamos encontrar sua utilização novamente em 1857, referindo-se a habitantes de cavernas do continente africano. (DEZOBRY & BACHELET, 1857: 2666). Seres animalescos, peludos, morando em cavidades naturais, distantes do mundo civilizado. Essa imagem vai identificar-se durante os anos 1870 com o estereótipo clássico do homem pré-histórico, o Neandertal (descobertos em 1856, na região de Neander, Alemanha).

Ao estudar aspectos frenológicos no artigo As deformações da face e do crâneo entre os povos americanos, Ladislau Netto utilizou a frase “conformação neanderthaloide” (NETTO, 1882c: 17). Ora, atualmente sabemos que os índios brasileiros, mesmo os préhistóricos, são representantes diretos do Homo sapiens sapiens, e que os Neandertais foram de um grupo considerado extinto, os Homo neanderthalensis (HUBLIN, 1996: 37). Em outras palavras, são crânios muito diferentes entre si. Não há qualquer parâmetro de comparação, a não ser o fato de que foram todos antigos hominídeos.

O que Netto tinha em mente eram as imagens de selvageria, de primitivismo associado a estes fósseis da Alemanha. E não podemos esquecer que ambos, os mais antigos crânios brasileiros e os neandertalensis, foram encontrados em cavernas, o receptáculo simbólico da bestialidade7. Encontramos uma concepção semelhante, ainda na mesma revista, desta vez com Lacerda: No estudo O Craneo da Lagoa Santa. Este médico afirmou sobre o fóssil de Minas Gerais: “elle está abaixo do homem quaternario da Europa.

O Cro-Magnon era artista, cinzelava e insculpia o marfim, copiava as fórmas dos animais, e dispunha de armas e de astúcia capazes de vencer na luta o mammouth” (LACERDA, 1882e: 146). Caso levemos em conta que este fóssil, analisado por Lacerda, seja antagonizado com um tipo fóssil superior, podemos dizer que encontra paralelo com as idéias de Netto.

O modelo de homem primitivo, para os arqueólogos imperiais, era o Botocudo. Assemelhado ao Neandertal por sua extrema inferioridade, só poderia ser antagonizado com um tipo fóssil superior. A descrição de uma visita à Sala Lund por João Lacerda, durante a exposição no Museu Nacional, confirma nossas idéias:

“O espírito do visitante, absorto na contemplação daquella peça anthropologica, remonta às idades passadas e transporta-se pela imaginação ao theatro do descobrimento. Então, meditando, elle diz consigo mesmo: Quão longa não foi a evolução humana, que, partindo de tão modestos principios, chegou por gradações infinitas até produzir as maravilhas e grandesas da civilização actual! (...) até transformar inteiramente o homem primitivo, tão chegado aos brutos, sem moral, sem lei, sem organização social, no homem civilizado” (LACERDA, 1882e: 146).

Temos, aqui, a mesma conclusão que utilizamos para explicar o sucesso popular da exposição. Seja ao olhar uma reprodução etnológica de um Botocudo, com seus ornamentos labiais tão escandalosos ou ao observar um crânio fossilizado, o cidadão do império brasileiro contemplou estas amostras museológicas como uma espécie de espelho, situando-se este dentro da escala evolutiva, no ponto extremo da civilização e dos bons costumes. A natureza não poderia ter tomado outro rumo, afinal a sociedade moderna também representava o triunfo do intelecto sobre o irracional.

A repercussão ocasionada pela Exposição Antropológica de 1882 prolongou-se ainda por muito tempo. Três anos depois, um volume especial do Archivos do Museu Nacional foi impresso especialmente para comemorar a antiga exibição, e os estudos envolvendo a origem de nossos indígenas. Todos os artigos envolveram temas antropológicos e de cultura material.

Compreendemos a Arqueologia do Segundo Reinado como um sistema de conhecimentos que estuda o passado material, mas também relacionada a concepções ideológicas do Oitocentos. Vestígios reais foram resgatados, ao lado da criação de relíquias e monumentos imaginários, consolidando o projeto nacional da monarquia. Podemos dizer que com a morte de Ladislau Neto em 1894, também acabou um tipo de Arqueologia no Brasil, romântica e sonhadora, filha do século XIX. Novos personagens surgiram posteriormente, renovando o cenário acadêmico com um tipo de ciência mais condizente com sua época e realidade cultural. A monarquia brasileira sobrevive apenas nos livros didáticos e nas salas de museus, mas parte de sua herança cultural e científica ainda está para ser resgatada plenamente, com possibilidades de pesquisas futuras.

Notas
* Doutor em História pela UFPR, Pós-Doutorado em História pela USP. Membro da ABREM, SBEC, NUPPER, NEVE. E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br
** Mestre em História pela UFPR.
1 Para uma discussão balizada sobre o conceito de raça em seus aspectos sociais e biológicos. Ver PENA (2005).
2 Ladislau Netto (1838-1894) era naturalista e como diretor do Museu Nacional (1874-1893) foi responsável por sua reforma em 1876, modernizando e reorganizando as seções que, segundo Lopes (1997, p. 159), refletem o processo de individuação crescente das ciências em que aspectos antropológicos, arqueológicos e etnológicos ganham corpo ao lado das pesquisas de ciências naturais.
3 João Batista de Lacerda (1846-1915) era médico fisiologista, antropologista de linha craniométrica, e foi diretor do Museu Nacional de 1895 até 1915. Possui extensa obra científica, na qual se destacam os estudos sobre a “raça” brasileira. Publicou artigos nos Archivos do Museu Nacional desde seu primeiro número em 1876, momento em que investiga as “raças indigenas do Brazil” e tira suas famosas conclusões sobre os Botocudos.
4 Além dos artefatos mencionados, o Museu Paranaense, criado em 1876, enviou também para a exposição antropológica o cacique Bandeira, da tribo dos camés ou coroados, para representar o “exótico provincial” (LOPES, 1997, p. 209-210), bem como alguns textos editados especialmente para a ocasião (FERNANDES, 1936, p. 4-5).
5 No estudo Civilisações extinctas, também publicado nesta revista, J. Serra criticou a ausência de artefatos das civilizações Astecas, Incas e Maias, na exposição do Museu Nacional. Para ele, o estudo do homem brasileiro não poderia ser desvinculado do resto da América.
6 Deve-se ressaltar ainda que entre os poligenistas havia os que defendiam que as espécies não mudavam com a ação do meio ou do tempo, chamados de fixistas, e, ao contrário, os que defendiam a mutação sob as condições referidas, chamados de transformistas. Além disso, a partir de Poliakov (1974, p. 131-159), percebemos as linhas que diferenciam monogenistas e poligenistas são muitas vezes tênues até a primeira metade do século XIX, pois as bases religiosas (atribuídas aos monogenistas) de autores como Pierre Camper (1722-1789), Pierre-Louis de Maupertuis (1698-1759), George Louis Leclerc de Buffon (1707-1788), Johann-Friedrich Blumenbach (1752-1840) não impediram que desenvolvessem experimentos científicos de anatomia comparada a partir dos estereótipos raciais correntes, como o caso de Camper que estudou crânios de um europeu, de um calmuco (mongóis), de um negro e de um macaco para estabelecer um ângulo facial correspondente a cada raça, sendo o de maior ângulo o de maior desenvolvimento intelectual e, portanto, superior naturalmente, o europeu. Estudos estes que seriam a base de ciências como a frenologia, antropologia física e, posteriormente, a eugenia (atribuídas ao poligenismo). WENDT, Herbert. À procura de Adão. São Paulo: Melhoramentos, 1953.

Referências
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